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Da rediscussão pelo Supremo Tribunal Federal da criminalização do porte de arma desmuniciada e o Estatuto do Desarmamento

            Há muito, polemiza-se sobre a posição adotada pelo Supremo Tribunal Federal – STF no julgamento do Habeas Corpus nº 81.057 [01]. Nesta oportunidade, entendeu aquela corte, por maioria [02], que o simples porte de arma desmuniciada, em que a arma de fogo não está "carregada", e nem é possível ao agente viabilizar sem demora significativa o seu municiamento, não configura o tipo previsto no art. 10 da lei 9437/97 [03]. Assim, tal fato seria indiferente penal, restando o agente apenas, eventualmente, sujeito à infração administrativa.

            Autorizadas vozes guerrearam [04] o assunto e fortes argumentos foram lançados nos dois sentidos. A balança da dialética se equilibrava tendo de um lado os ideais modernos de um direito penal fincado na idéia de subsidiariedade, onde seus tentáculos não deveriam atingir condutas sem ofensividade e lesividade real a algum bem jurídico, e de outro a necessidade de uma política criminal (política pública) voltada à repressão da escalante estatística criminal, e a arrefecer a idéia daqueles que tem por costume o uso de tais artefatos de elevada potencialidade lesiva aos seus semelhantes e lesividade moral à sociedade em geral.

            Ficar do lado dos ensinamentos estruturantes do moderno Direito Penal ou do lado dos gritos da já apavorada sociedade, da mídia, e das estatísticas que apontam no uso indiscriminado da arma de fogo como um dos grandes fatores da elevada criminalidade? Eis a difícil questão que se colocava aos cultos ministros da nossa corte maior. Questão mais que jurídica, política. Como a finalidade deste trabalho não é discutir filosoficamente os fins e os meios da atuação da suprema corte, a questão de se a decisão deve ser jurídica ou política fica apenas aqui tangenciada.

            Recentemente, tivemos a oportunidade de saber, através do periódico informativo do STF [05], que a questão foi novamente trazida a plenário pelo Ministro Carlos Brito, para nova análise, incidentalmente, nos autos do HC 85240/SP. Pretende o combativo ministro rever o posicionamento do STF, tentando alterá-lo para a outra tendência mais rigorosa. Entretanto, aqui, como lá, nos dois Habeas Corpus, parte-se de fatos em que o ato eventualmente delituoso fora cometido sobre a incidência da lei 9437/97. Assim, a discussão é de pouca utilidade prática para aqueles que precisam se inteirar sobre o atual ordenamento vigente.

            Hoje, rege o assunto a lei 10.826/2003 (Estatuto do Desarmamento) que, sob os clamores posteriormente não ratificados em referendo, entre outras providências, entendeu que deveria ser extremamente rigoroso com o cidadão que portasse ou tivesse arma de fogo nas condições não autorizadas pelo referido diploma legal, independentemente de usá-la em atividade criminosa e mesmo, ao que parece, de estar ou não municiada.

            Se na vigência da lei 9437/97 o espaço hermenêutico dos dispositivos parecia dar maior liberdade criativa ao intérprete julgador, já que a incidência ou não da norma proibitiva no caso de a arma estar desmuniciada não era explicada textualmente, a situação parece mudar com a lei 10.826/2003. Se o diploma antigo era impreciso nesse ponto, o atual parece ser de clareza solar.

            É que o art. 14 do estatuto do desarmamento prevê que configura o crime tanto o porte de arma de fogo quanto o simples porte de qualquer artefato ou mesmo de munição, veja-se por oportuno:

            Art. 14. Portar, deter, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob guarda ou ocultar arma de fogo, acessório ou munição, de uso permitido, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar:

            Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.

            Parágrafo único. O crime previsto neste artigo é inafiançável, salvo quando a arma de fogo estiver registrada em nome do agente

            Ao assim dispor, deixando expresso que o simples porte de munição configura o crime de porte de arma de fogo fez o legislador opção clara por uma norma de elevado calibre punitivo. A interpretação do dispositivo, lançando mão de técnicas como a interpretação histórica, teleológica, sistemática, a que pelos limitados objetivos deste trabalho não vamos desdobrar, conduz a conclusão precisa de que está também proibido o porte de arma desmuniciada.

            É que, ao punir o menos, não pode o mais estar imune da tutela penal. Se até o simples porte de munição é crime, o porte da arma desmuniciada também tem que ser. A munição, por si só, não apresenta potencial de perigo a qualquer bem jurídico. Não é meio hábil a se infringir violência e nem mesmo grave ameaça. Já a arma, mesmo que desmuniciada, tem elevado poder aflitivo, servindo tanto para impingir violência (se utilizada como arma branca) como para causar grave ameaça (já que a vítima não tem condições de saber se a arma está municiada). Ainda, o porte da arma em locais públicos gera sensação de desrespeito à ordem estabelecida, à paz social e aos bons costumes, atemorizando a população já discrente no poder estatal.

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            Assim, se a jurisprudência da corte maior já era e é oscilante na vigência da lei 9437/97, sob a regência da lei 10.826/03 deve pender fortemente para a criminalização da conduta de portar arma desmuniciada. A opção legislativa e os tipos previstos na novel legislação não dão oportunidade a outro posicionamento.

            A permanência do atual entendimento pretoriano da atipicidade de referida conduta só pode se dar, ao nosso ver, se declarada a inconstitucionalidade dos dispositivos do Estatuto do Desarmamento na parte em que criminalizam o porte de munição (por ofender um suposto princípio constitucional da ofensividade do direito penal) e ainda se reduzir o âmbito de incidência dos textos dos dispositivos, em controle de constitucionalidade, de forma a não abranger a arma desmuniciada. O espaço hermenêutico que possibilitava à corte optar por uma simples interpretação restritiva, resolvendo tudo na exegese, não há na lei 10.826/03. Analisar de outra forma seria desrespeitar a opção legislativa de querer na nova lei criminalizar o porte de arma desmuniciada.

            Noutro giro, vê-se, também, que mesmo nos autos do HC 81.057 STF a corte obtemperou que a simples existência de crimes de perigo abstrato não fere a ordem constitucional penal. Deveria sim, o intérprete, quando possível, interpretar referidos crimes de perigo abstrato tentando extrair dos seus dispositivos o mínimo de incidência penal. Se a norma permitisse espaço lançaria-se mão do princípio da ofensividade para dizer que tal ato ou conduta, por não ter ofendido bem nenhum em concreto, não está criminalizada. Isso se a norma permitisse espaço, o que não é o caso. Veja-se, a propósito, trecho da ementa do referido HC 81057:

            "...2. É raciocínio que se funda em axiomas da moderna teoria geral do Direito Penal: para o seu acolhimento, convém frisar, não é necessário, de logo, acatar a tese mais radical que erige a exigência da ofensividade a limitação de raiz constitucional ao legislador, de forma a proscrever a legitimidade da criação por lei de crimes de perigo abstrato ou presumido: basta, por ora, aceitá-los como princípios gerais contemporâneos da interpretação da lei penal, que hão de prevalecer sempre que a regra incriminadora os comporte.".

            A clareza dos dispositivos da lei 10.826/03, entretanto, reforça-se, não permite espaço ao intérprete. O porte de arma desmuniciada está criminalizado pelos arts. 14 e 16 do Estatuto do desarmamento. Não seria crível admitir-se, no mesmo ordenamento, a tipificação do porte de munição e a atipicidade da conduta de portar arma desmuniciada. Todas as técnicas hermenêuticas conduzem a essa conclusão. A própria principiologia de dificultar o uso e o comércio de armas, que irradiou o Estatuto do Desarmamento, nos leva a pensar assim.

            Poder-se-ia argumentar que o resultado do referendo das armas seria motivo de repensar a leitura da lei 10.826/03, segundo a vontade da população que ficou ali retratada. Alguns de seus dispositivos poderiam ter perdido legitimidade democrática? Como tal análise também seria tema suficiente a uma tese nos meandros da teoria geral do direito público, fica aqui também tangenciada.

            O fato é que segundo a tradicional concepção da divisão tripartite do poder na elaboração do Estado, pensada por Aristóteles e disciplinada por Montesquie, cabe ao legislativo auscultar a vontade popular e aprovar as leis que refletem o interesse da nação. O poder de estabelecer condutas proibidas no âmbito do direito penal é prerrogativa irretirável do parlamento. Ao judiciário cabe dar aplicação a tais escolhas políticas, não podendo hipertrofiar nem reduzir tais decisões por pessoal concepção de conveniência, sob pena de atritar o harmonioso sistema de coexistência pacífica dos poderes.

            A única chama ainda acesa de possibilidade de dizer que o porte de arma desmuniciada é fato atípico, sob a regência do novo Estatuto do Desarmamento, seria concluir pela inconstitucionalidade de previsão de crimes de perigo abstrato ou pela conclusão de que a punição do porte desmuniciado fere um princípio constitucional da ofensividade no Direito Penal. Entretanto, como explorado em linhas volvidas, o próprio STF já vocalizou que a simples previsão de crimes de perigo abstrato não ofende a ordem constitucional devendo o princípio da ofensividade ser usado apenas como válvula de escape interpretativa para excluir da incidência penal condutas que não necessariamente quis o legislador reprimir. No caso, sob o nosso modesto olhar, o legislador quis criminalizar o porte de armas desmuniciadas na lei 10.826/03, dando cabo a qualquer discussão.

            Assim, e por fim, voltando à ótica central do nosso trabalho, a recente rediscussão pelo STF do tema da tipicidade do porte de arma desmuniciada, trazida a lume no HC 85.240/SP, pelo ministro Carlos Brito, deve ganhar intensidade e levar o STF a rever seu posicionamento, se não já para os próprios ‘crimes’ cometidos ao tempo da lei 9437/97, ao menos para os cometidos sob a vigência da lei 10.826/03.


Nota

            01

RHC 81057 / SP - SÃO PAULO, Rel. p/ acórdão Ministro Sepúlveda Pertence, julgado em 25/05/2004, DJ 29-04-2005 PP-00030 EMENT VOL-02189-02 PP-00257, 1ª turma.

            02

Resultado final 3x2.

            03

trecho da ementa do julgado: "... 3. Na figura criminal cogitada, os princípios bastam, de logo, para elidir a incriminação do porte da arma de fogo inidônea para a produção de disparos: aqui, falta à incriminação da conduta o objeto material do tipo.. . se a munição não existe ou está em lugar inacessível de imediato, não há a imprescindível disponibilidade da arma de fogo, como tal - isto é, como artefato idôneo a produzir disparo - e, por isso, não se realiza a figura típica.".

            04

Votaram pela tipicidade da conduta os ministros Ellen Gracie, Relatora, e Ilmar Galvão e pela atipicidade os ministros Sepúlveda Pertence, Joaquim Barbosa e Cezar Peluso.

            05

Informativo 406.
Sobre o autor
Reinaldo Oscar de Freitas Mundim Lobo Rezende

Delegado de Polícia do Distrito Federal, Bacharel em Direito pela UFG. Pós graduando em Direito Penal, em Direito Processual Penal e em Criminologia pela UFG

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

REZENDE, Reinaldo Oscar Freitas Mundim Lobo. Da rediscussão pelo Supremo Tribunal Federal da criminalização do porte de arma desmuniciada e o Estatuto do Desarmamento. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1002, 30 mar. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8175. Acesso em: 5 nov. 2024.

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