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Requisição administrativa no combate ao coronavirus

Agenda 01/05/2020 às 16:46

A utilização de bens e serviços particulares pela Administração Pública, sem a concordância dos proprietários, para o combate à covid-19, em verdade possui amparo jurídico.

Desde o início da contaminação pela covid-19, doença causada pelo novo coronavírus (Sars-Cov-2), elevada à classificação de Pandemia pela Organização Mundial da Saúde (OMS), em 11 de março de 2020, o mundo vem passando momentos de muita tensão, tendo em vista a velocidade de contágio e o número de mortes decorrentes da enfermidade causada por esse vírus.

No Brasil, o Governo Federal, Estados–membros e Municípios passaram a adotar diversas medidas urgentes para evitar ou reduzir a velocidade de disseminação no território nacional. Promoveu-se, por exemplo, o fechamento de fronteiras, a proibição de transporte intermunicipal e interestadual, a redução de transporte público, o fechamento de escolas e estabelecimentos comerciais etc.

No entanto, uma medida adotada em diversos Estados, nominada requisição administrativa, terminou por gerar muita discussão. Por exemplo, o Governo do Estado de Alagoas foi injustamente acusado de realizar saques em lojas especializadas na venda de materiais médicos e hospitalares, com o uso das forças policiais do ente público.

Em verdade, preocupados com a escassez de materiais hospitalares, tanto básicos (como luvas e máscaras) quanto complexos (como respiradores mecânicos), necessários ao abastecimento da rede pública de saúde e preparatórios para enfrentar o aumento repentino e vertiginoso de doentes infectados pelo vírus, os governos, como o de Alagoas (através do Decreto Estadual nº 69.501, de 13.03.2020), determinaram a apreensão de estoques disponíveis em estabelecimentos comerciais especializados, utilizando-se, inclusive, de força policial.

Pois bem, a chamada requisição administrativa, prevista no art. 5º, inciso XXV, da Constituição Federal, estabelece a possibilidade de a autoridade competente, em casos de iminente perigo público, usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário a indenização posterior, se houver dano.

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: 

(omissis) 

XXV – no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano;

A professora Raquel Carvalho[2] define o instituto da seguinte forma: “Requisição administrativa é um ato administrativo unilateral e auto-executório que consiste na utilização de bens ou de serviços particulares pela Administração, para atender necessidades coletivas em tempo de guerra ou em caso de perigo público iminente, mediante pagamento de indenização a posteriori”.

Nota-se, também, que o instituto tem amparo no art. 170, III, da Carta Republicana, que eleva a função social da propriedade a status constitucional. Na lição do saudoso Hely Lopes Meirelles[3], sobre “o uso e gozo dos bens e riquezas particulares, o Poder Público impõe normas e limites e, quando o interesse público o exige, intervém na propriedade privada e na ordem econômica através de atos de império tendentes a satisfazer as exigências coletivas e a reprimir a conduta anti-social da iniciativa privada”.

No caso concreto, a Lei Federal nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020[4], disciplina (art. 3º, VII) que, para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, as autoridades podem adotar, como uma das medidas, a requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas, hipótese em que será garantido o pagamento posterior de indenização justa.

Assim, a requisição administrativa é uma forma de o Estado-administração interferir na propriedade particular, de forma direta e impositiva, sem a necessidade de intervenção do Poder Judiciário, a fim de suprir necessidades da coletividade em tempo de guerra ou em caso de perigo público iminente, assegurando, no entanto, o direito de os particulares serem indenizados, na eventualidade de sofrerem danos, após a requisição do bem ou serviço.

Na hipótese do enfrentamento da covid-19, os requisitos para caracterização da requisição administrativa são muito claros. A administração, diante da necessidade de bens (v.g.: máscaras, luvas, camas, respiradores, imóveis para abrigar os enfermos etc.) ou de serviços (v.g.: serviço de transporte de agentes de saúde e de enfermos, serviços hospitalares, clínicos e laboratoriais etc.) possui o poder-dever de requisitá-los para combater o iminente perigo representado pela pandemia, a qual pode vir a ceifar a vida de grande número de cidadãos.

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No que tange à indenização, essa deve ser justa e paga com brevidade, após a requisição. Alguns Estados-membros, ao adotarem tais medidas, têm disciplinado, expressamente, que as indenizações de bens e serviços deverão ter como referência a tabela do SUS.

A utilização da tabela do SUS parece uma referência razoável, no entanto não impede que os particulares insatisfeitos recorram ao Judiciário para discutir o valor que entendam justo.

Razoável também é a possibilidade de utilização dos critérios de estimativa de preços previstos no artigo 4º-E, inciso VI, da lei 13.979/20 (Redação incluída pela MP 926/20), para definição do valor da indenização. São eles:

VI - estimativas dos preços obtidos por meio de, no mínimo, um dos seguintes parâmetros:

a) Portal de Compras do Governo Federal;

b) pesquisa publicada em mídia especializada;

c) sítios eletrônicos especializados ou de domínio amplo;

d) contratações similares de outros entes públicos; ou  

e) pesquisa realizada com os potenciais fornecedores;

Enfim, ao contrário do que fora divulgado em alguns meios de comunicação, em defesa do bem comum e com base no princípio da função social da propriedade, a intervenção na propriedade privada, através da requisição administrativa, é um instrumento legítimo à disposição da administração pública para enfrentar o perigo à saúde e à vida da população, representados pela Pandemia de covid-19.


Notas

[2] http://raquelcarvalho.com.br/2019/03/29/requisicao-administrativa-aspectos-basicos-do-regime-juridico/

[3] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo brasileiro, 24. Ed., São Paulo, Malheiros.

[4] Redação dada pela Medida Provisória nº 926, de 20 de março de 2020.

Sobre o autor
Augusto Carlos Borges do Nascimento

Procurador do Estado de Alagoas, Advogado, ex-Defensor Público do Estado da Bahia, Pós-graduado em Direito Processual, Graduado em Direito pela Universidade Federal da Bahia.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Em alguns Estados, a exemplo de Alagoas, os Governos Estaduais foram acusados de saquear lojas especializados na venda de materiais médicos, quando, em verdade, estavam se utilizando do instituto da Requisição Administrativa, com a finalidade de obter, emergencialmente, bens (máscaras, respiradores etc) necessários ao abastecimento da rede pública de saúde, que se preparava para combater a pandemia.

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