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União estável e direitos sucessórios à luz do Direito Civil-Constitucional

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Agenda 08/04/2006 às 00:00

4. ANÁLISE COMPARATIVA ENTRE A TUTELA SUCESSÓRIA DOS CÔNJUGES E COMPANHEIROS NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA

4.1 Diferenças existentes durante a vigência do Código Civil de 1916

Como já exposto anteriormente, o Código Civil de 1916 reconhecia direitos sucessórios apenas para as pessoas unidas pelo vínculo do matrimônio, estando as uniões não matrimonializadas excluídas dessa proteção. O reconhecimento de direitos sucessórios na união estável ocorreu pela primeira vez em 1994, com a Lei 8.971/94 e após, com a Lei 9.278/96.

Preliminarmente, faremos uma análise dos direitos sucessórios conferidos aos cônjuges pelo Código Civil de 1916, para depois compará-los aos direitos atribuídos aos companheiros pelas leis de 1994 e 1996.

De acordo com o art. 1.603 do Código Civil de 1916, o cônjuge ocupava o terceiro lugar na ordem de vocação hereditária, sendo precedido pelos descendentes e ascendentes. Previa o art. 1.611 do mesmo diploma que à falta de descendentes e ascendentes, o cônjuge sobrevivente teria direito à totalidade da herança, desde que ao tempo da morte do outro não se encontrasse dissolvida a sociedade conjugal.

Apesar de contemplado com a previsão dos dispositivos supramencionados, o cônjuge não figurava no rol dos herdeiros necessários, isto é, o autor da herança poderia afastar os direitos à sucessão de seu cônjuge através de disposição testamentária, consoante art. 1.725 do Código Civil de 1916.

Assim, buscando melhorar a condição do cônjuge sobrevivente, a Lei 4.121, de 27 de agosto de 1962, o Estatuto da Mulher Casada, acrescentou os parágrafos primeiro e segundo ao art. 1.611 do Código Civil de 1916, prevendo, respectivamente, o direito de usufruto e o direito real de habitação para os viúvos.

De acordo com o parágrafo primeiro do art. 1.611 do Código Civil de 1916, o usufruto vidual seria atribuído ao cônjuge do de cujus, enquanto durasse a viuvez, quando o regime de bens do casamento não fosse o da comunhão universal. No caso de haver descendentes, o viúvo ou viúva teria direito ao usufruto da quarta parte dos bens do falecido, aumentando-se esta fração para a metade no caso de sobreviverem apenas ascendentes do de cujus.

Já o parágrafo segundo do artigo referido acima estabelecia que, em caso de o regime de bens ser o da comunhão universal, em vez de direito ao usufruto dos bens, o viúvo ou a viúva, enquanto permanecessem nesta condição, teriam direito ao real de habitação sobre o imóvel que era destinado à residência da família, desde que fosse esse o único bem daquela natureza a inventariar.

Observando as regras previstas na Lei 8.971/94, nota-se que, à semelhança dos cônjuges, o companheiro também tem direito à totalidade da herança na ausência de descendentes e ascendentes. Além disso, quando concorre com os descendentes do de cujus, companheiro sobrevivente tem direito ao usufruto de ¼ (um quarto) da herança, e, concorrendo apenas com ascendentes do falecido, tem direito ao usufruto de metade da herança. Esta previsão da Lei de 1994 é, portanto, idêntica à previsão do parágrafo primeiro do art. 1.611 do Código Civil de 1916.

A Lei 9.278/96 veio a estender para os companheiros o direito real de habitação que já era garantido para as pessoas casadas, e em seu artigo 7º, parágrafo único. Desse modo, além dos direitos sucessórios garantidos pela Lei 8.971/94, os companheiros supérstites passaram a ter direito ao direito real de habitação, relativamente ao imóvel destinado à residência da família.

Ressalta-se que a Lei de 1996, que veio a regular o art. 226, § 3º da Carta Magna, não exigiu para a concessão do direito real de habitação que existisse apenas um único bem imóvel a ser inventariado, como exigia o art. 1.611, § 2º retromencionado. Muitos autores defendem, portanto, que a exigência prevista no Código Civil de 1916 de que exista apenas um bem imóvel a inventariar seja observada quando da aplicação do art. 7º, parágrafo único da Lei 9.278/96. Nesse sentido, leciona o prof. Guilherme Calmon Nogueira da Gama:

(...) deve ser considerada implícita a cláusula "desde que seja o único bem daquela natureza a inventariar", pois do contrário haveria vantagem dos companheiros em relação aos casados, diante da limitação constante da parte final do art. 1.611, § 2º, do Código Civil. Na eventualidade de o falecido deixar patrimônio, integrado por vários imóveis, incluindo aquele que serviu de residência da família, não haverá direito de habitação, diante da moradia do companheiro estar teoricamente garantida com o regime de bens fixado para o casamento, ou com o usufruto legal e, eventualmente, com a sucessão legítima. [55]

Todavia, apesar das considerações feitas acima, nota-se que foram conferidos mais direitos aos companheiros do que aos cônjuges, uma vez que àqueles são garantidos o direito de usufruto de uma quota-parte dos bens ou parte ou totalidade da propriedade da herança e também o direito real de habitação sobre o bem imóvel destinado à residência da família. Já quanto aos cônjuges, em nenhuma espécie de regime de bens, não é possível a cumulação destes direitos.

As pessoas casadas sob o regime da comunhão parcial ou da separação de bens, de acordo com a previsão do art. 1.611 e seus parágrafos, não fazem jus ao direito real de habitação sobre o bem imóvel destinado à residência da família. Por outro lado, às pessoas casadas sob o regime da comunhão universal não é garantido o direito de usufruto sobre parte dos bens do falecido.

Assim, percebe-se que, a partir da vigência da Lei 8.971/94 e, especialmente, da Lei 9.278/96, em termos de direitos sucessórios, os companheiros foram colocados em posição mais vantajosa do que as pessoas unidas pelo vínculo matrimonial. Esta constatação foi alvo de muitas críticas, sobretudo, por aqueles que defendiam a supremacia do casamento frente à união estável, como já abordado anteriormente [56]. Esta situação, contudo, foi drasticamente alterada com a entrada em vigor do Código Civil de 2002, que alterou sensivelmente os direitos sucessórios dos companheiros, como será analisado no item que se segue.

4.2 Diferenças existentes durante a vigência do Código Civil de 2002

Ao analisarmos os direitos sucessórios previstos para cônjuges e companheiros no Código Civil de 2002, observamos novamente a existência de títulos sucessórios diferenciados entre eles. Contudo, desta vez, a situação se inverteu, pois os companheiros foram colocados em posição muito inferior em relação aos cônjuges em termos de direitos à sucessão hereditária, representando um grande retrocesso frente às conquistas obtidas nos anos anteriores, conforme analisaremos abaixo.

Ao analisarmos os direitos sucessórios atribuídos ao cônjuge pelo Código Civil de 2002, notamos que o art. 1.845 espancou as controvérsias existentes anteriormente, elevando definitivamente o cônjuge à categoria dos herdeiros forçados. Os cônjuges permaneceram na terceira ordem de vocação hereditária, depois dos descendentes e ascendentes, conforme art. 1.829.

Contudo, este mesmo artigo 1.829 incrementou significativamente a situação do cônjuge em relação ao Código Civil de 1916, pois agora este concorre com os descendentes e ascendentes do de cujus na aquisição da propriedade a herança. Sobre esta mudança, destacamos mais uma vez os valiosos ensinamentos do prof. Zeno Veloso:

Porém, o Código Civil de 2002 não erigiu o cônjuge à condição de herdeiro necessário, apenas, mas a de herdeiro necessário privilegiado, pois concorre com os descendentes e com os ascendentes do de cujus. Esta posição sucessória reconhecida ao cônjuge sobrevivente é um dos grandes avanços do novo Código Civil (...) [57].

Os descendentes ocupam o primeiro lugar na ordem de vocação hereditária, mas os cônjuges herdam concorrentemente, salvo se o regime for o da comunhão universal, o da separação obrigatória de bens ou se, no regime da comunhão parcial, o de cujus não houver deixado bens particulares (art. 1.829, I, CC02). Herdando em concorrência com os descendentes, ao cônjuge cabe quinhão igual ao dos descendentes que sucederem por cabeça, sendo-lhe reservada a quarta parte da herança se for ascendente dos herdeiros com que concorrer (art. 1.832, CC02).

Não havendo descendentes mas apenas ascendentes do de cujus, o viúvo herda em concorrência com os ascendentes. Neste caso, concorrendo com ascendente(s) em primeiro grau do falecido, o cônjuge tem direito a receber 1/3 (um terço) da herança; sendo, porém, ascendentes de grau mais elevado, ao cônjuge cabe metade da herança (art. 1.837, CC02). Na falta de descendentes e ascendentes, ao cônjuge supérstite tocará a integridade da herança (art. 1.838, CC02).

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Todavia, o Código Civil de 2002 estabelece em seu art. 1.830 que, para serem deferidos os direitos sucessórios ao cônjuge, é necessário que ao tempo da morte do outro, não estivessem separados de fato há mais de dois anos ou separados judicialmente. O artigo ainda ressalva que se a separação não decorreu de culpa do cônjuge sobrevivente, este poderá herdar.

O Código Civil de 2002 não manteve a previsão do usufruto vidual contido no art. 1.611, § 2º do Código anterior, estando, portanto, este revogado. Tal previsão não mais se coadunaria com a nova sistemática introduzida, vez que o cônjuge passou a herdar parte da propriedade plena da herança em concorrência com descendentes e ascendentes. Entretanto, a previsão do direito real de habitação foi confirmada no novo Código, incidindo de mais maneira mais ampla, sobre todo e qualquer regime de bens e não mais apenas sobre o regime da comunhão universal.

Já quanto às pessoas unidas por relação de união estável o quadro é totalmente diverso. Em primeiro lugar, o caput do art. 1.790 do Código Civil de 2002 restringe à sucessão do companheiro aos bens adquiridos onerosamente durante a vigência da união estável. Não existindo bens dessa natureza, o companheiro supérstite nada receberá. [58]

Tal limitação representa uma injustificada distinção, que pode gerar grandes injustiças, pois inexistindo bens adquiridos onerosamente ao longo da relação, os bens adquiridos anteriormente à relação ou recebidos gratuitamente serão transmitidos aos Município ou ao Distrito Federal em detrimento do companheiro, que manteve laços afetivos com o falecido. As pessoas unidas pelo vínculo do casamento, ao contrário, recolhem toda a herança, não havendo tal distinção.

Analisando ao art. 1.790, CC02, percebe-se que, ao concorrer com descendentes comuns, o companheiro terá direito a receber a mesma quota que for deferida a cada descendente (inciso I). Destaca-se aqui que não há previsão de qualquer reserva em favor do companheiro sobrevivente, tal qual existe para o cônjuge, na proporção de ¼ (um quarto) da herança no mínimo, conforme art. 1.832, CC02.

Quando concorre com descendentes apenas do autor da herança, o companheiro tem direito a receber somente metade da quota a que corresponder a cada descendente (art. 1.790, II, CC02). Ressalta-se que cônjuge, mesmo quando concorre com descendentes apenas do outro cônjuge, a ele cabe a mesma quota destinada a cada descendente, e não somente a metade, consoante art. 1.829, I, CC02.

De acordo com o art. 1.790, III, CC02, quando o companheiro concorre com outros parentes sucessíveis do autor da herança, terá direito somente a 1/3 (um terço) da herança e, o artigo 1.839, CC02 admite que os colaterais até o quarto grau participam da sucessão. Neste ponto, também se reconhece grande distinção em relação aos direitos conferidos aos cônjuges, uma vez que não existe concorrência entre cônjuges e colaterais, pois os primeiros ocupam o terceiro lugar na ordem de vocação hereditária, enquanto os segundos ocupam a quarta posição. Nesse sentido, destacamos as lições do prof. Sílvio de Salvo Venosa:

No sistema implantado pelo art. 1.790 do novel Código, havendo colaterais sucessíveis, o convivente apenas apenas terá direito a um terço da herança, por força do inciso III. O companheiro ou companheira somente terá direito à totalidade da herança se não houver parentes sucessíveis. Isso quer dizer que concorrerá na herança, por exemplo, com o vulgarmente chamado tio-avô ou com o primo irmão de seu companheiro falecido, o que digamos, não é uma posição que denote um alcance social, sociológico e jurídico digno de encômios. [59]

Por fim, o inciso IV do art. 1.790 estabelece que não havendo parentes sucessíveis, o companheiro terá direito a receber a totalidade da herança.

Destaca-se, novamente, que há autores, como a profª. Heloísa Helena Barboza, que defendem que aos incisos III e IV do art. 1.790 não se aplica a limitação prevista no caput do artigo, pois estes incisos utilizam a expressão "herança". Nestes casos, a participação sucessória do companheiro não se restringiria apenas aos bens adquiridos onerosamente durante a união estável, pois a expressão "herança" possui conceito próprio [60].

A profª. Heloísa Helena Barboza explica que tal diferença existente entre a sistemática dos incisos I e II e a dos incisos III e IV se justifica em razão da proteção que deve ser conferida aos filhos do falecido. Assim, ao concorrer com filhos do autor da herança, seria justo que a participação do companheiro fosse reduzida. Por esta interpretação, também seria afastada a possibilidade de, no caso do inciso IV, os bens não adquiridos onerosamente durante a vigência da união estável se destinarem ao poder público em detrimento do companheiro [61].

Todavia, o entendimento predominante na doutrina é no sentido de que a restrição contida no caput do art. 1.790 (bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável) deva ser observada quando da aplicação de seus incisos. A exemplo, transcrevemos as lições do prof. Zeno Veloso:

A "totalidade da herança", mencionada no inciso IV do artigo 1.790, é da herança a que o companheiro sobrevivente está autorizado a concorrer. Mesmo no caso extremo de o falecido não ter parentes sucessíveis, cumprindo-se a determinação do caput do art. 1.790, o companheiro sobrevivente só vai herdar os bens que tiverem sido adquiridos onerosamente na vigência da união estável. Se o de cujus possuía outros bens, adquiridos antes de iniciar a convivência, ou depois, se a título gratuito, e não podendo esses bens integrar a herança do companheiro sobrevivente, passarão para o Município ou para o Distrito Federal, se localizados nas respectivas circunscrições, ou à União, quando situados no Território Federal.

(...) O operador do Direito tem de compreender a sucessão dos companheiros diante do comando imperativo, da regra geral do art. 1.790, caput, que subordina todas as demais prescrições a respeito do tema. A não ser que, para escapar da esdrúxula e injusta solução do novo Código Civil, dê-se ao assunto um entendimento que desborde da interpretação – mesmo construtiva -, que é admissível e até louvável, ingressando no campo da criação normativa, o que ao intérprete é vedado, ao próprio juiz é proibido, porque estará tomando o lugar e exercendo função de Legislativo, praticando um excesso, uma usurpação, um abuso de poder. [62]

Além das hipóteses elencadas, há ainda no Código Civil de 2002 outra previsão que denota distinção no tratamento sucessório dispensado para os companheiros em relação aos cônjuges. Trata-se do direito real de habitação, previsto no art. 1.831, garantido ao cônjuge sobrevivente, qualquer que seja o regime de bens do casamento, relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que este seja o único bem desta natureza a ser inventariado. O art. 1.831, CC02, portanto, não faz qualquer menção às pessoas que vivem sob o regime de união estável.

Quanto à inexistência de previsão de direito real de habitação para os companheiros supérstites no novo Código Civil, muitos autores defendem a manutenção do art. 7º, parágrafo único da Lei 9.279/96, para assegurar a proteção do direito à moradia dos companheiros sobreviventes e afastar o tratamento discriminatório decorrente da previsão do art. 1.831, CC02. Vale mencionar o Enunciado nº 117, proposto pelos professores Gustavo Tepedino, Guilherme Calmon Nogueira da Gama e Ana Luiza Maia Nevares, aprovado na Jornada de Direito Civil de 2002, promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal:

Enunciado nº 117 – Art. 1.831: o direito real de habitação deve ser estendido ao companheiro, seja por não Ter sido revogada a previsão da Lei 9.278/96, seja em razão da interpretação analógica do art. 1.831, informado pelo art. 6º, caput, da CF/88. [63]

Assim, diante de todo o exposto, constata-se que o Código Civil de 2002 previu estatutos sucessórios diferenciados para cônjuges e companheiros, colocando os últimos em posição de extrema inferioridade no que toca aos direitos sucessórios. No item subseqüente, trataremos, sob o ângulo do Direito Civil-constitucional, desta distinção feita pelo legislador as duas entidades familiares protegidas igualmente pela Constituição Federal.

4.3 Existência de estatutos hereditários diferenciados: constitucional?

Acerca da previsão de estatutos sucessórios diferenciados para cônjuges e companheiros pelo Código Civil de 2002, a doutrina e a jurisprudência se dividem em duas principais correntes, uma entendendo pela constitucionalidade desta previsão e outra defendendo a inconstitucionalidade, tendo em vista a igualdade de proteção conferida as duas entidades familiares pela Constituição Federal.

A primeira corrente mencionada admite que a lei atribua aos cônjuges maiores garantias em relação aos companheiros, pois entende que a Constituição Federal de 1988 ainda consagra a primazia do casamento frente às demais entidades familiares. Os defensores desta corrente utilizam como principal argumento a expressão "facilitar a sua conversão em casamento" contida no art. 226, § 3º, CF88.

Desta maneira, para estes autores, se a lei deve facilitar a conversão das uniões estáveis em casamento, as duas entidades familiares não podem ser equiparadas e podem ser conferidos mais direitos para as pessoas unidas pelo vínculo do matrimônio. De modo a ilustrar este posicionamento, mais uma vez, destacamos os ensinamentos do prof. Guilherme Calmon Nogueira da Gama:

Outro aspecto implícito na norma contida no dispositivo constitucional ora comentado é o da prevalência do casamento sobre o companheirismo, pois do contrário estar-se-ia desestimulando a conversão previstas na Constituição Federal. Ou seja, a Constituição Federal fez uma opção clara: o casamento ainda é (e, diga-se en passant, com razão) a espécie de família hierarquicamente superior às demais quanto á outorga de vantagens para os partícipes, em suas relações internas (efeitos intrínsecos da união matrimonial), caso contrário haveria a equiparação entre os dois institutos formadores da família através da união sexual entre o homem e a mulher. Assim, o legislador infraconstitucional não pode reconhecer direitos aos companheiros que, simultaneamente, não sejam reconhecidos aos cônjuges. Do mesmo modo, os benefícios reconhecidos aos cônjuges não podem ser outorgados em maior extensão aos companheiros, sob pena de inconstitucionalidade do ato legislativo, executivo, administrativo ou judicial. No entanto, tal aspecto em nada altera a eficácia plena e a aplicabilidade imediata da norma constitucional a respeito do aspecto de proteção que o Estado deve ministrar a toda e qualquer espécie de família, e não mais apenas àquela formada pelo casamento. [64]

Portanto, para este primeiro entendimento, a atribuição de direitos sucessórios nitidamente mais vantajosos para as pessoas casadas está de acordo com o que preconiza a Carta Constitucional.

Em posição intermediária, o prof. Gustavo Tepedino defende que a discussão acerca da "equiparação ou não do casamento à união estável revela uma falsa questão" [65], pois antes, faz-se necessário estabelecer a distinção entre casamento na sua concepção de ato jurídico solene e no sentido de entidade familiar.

Este autor, portanto, nos ensina que as normas reguladoras do casamento que estiverem ligadas à sua concepção de ato solene não devem ser estendidas às uniões estáveis, uma vez que estas representam uniões informais, não solenes. Por outro lado, as normas que disciplinam as relações matrimoniais que estejam ligadas ao seu caráter de entidade familiar devem sim ser atribuídas àqueles que vivem em regime de uniões estáveis, pois estas também configuram entidades familiares protegidas pela Constituição Federal. Logo, este autor discorda do entendimento de que existe primazia do casamento frente às demais entidades familiares. [66]

O supramencionado doutrinador aponta como normas aplicáveis ao casamento inerentes à sua condição de entidade familiar, dentre outras, as normas referentes à previdência social e à legislação infortunística, ao direito de prosseguir no contrato de locação, à competência das Varas de Família, ao direito de receber pensão alimentícia. [67] Assim, estas normas devem ser garantidas também aos conviventes, para que seja respeitado o ditame constitucional que determina a proteção das entidades familiares.

Por outro lado, o prof. Gustavo Tepedino elenca como efeitos jurídicos decorrentes do casamento em razão de sua natureza solene: "1º) o estabelecimento do vínculo de afinidade; 2º) a emancipação do cônjuge menor de idade; 3º) o conferimento de título sucessório; 4º) a disciplina das relações patrimoniais dos cônjuges (regimes matrimoniais); 5º) a imediata submissão dos cônjuges a deveres específicos (fidelidade, mútua assistência)." [68] (grifei)

Logo, de acordo com o entendimento deste renomado autor, os direitos sucessórios estão ligados à segurança jurídica que advém da solenidade inerente ao casamento, não sendo, portanto, imediatamente aplicáveis às uniões estáveis. Acerca deste tema em específico, transcrevemos suas lições:

Finalmente, quanto à capacidade sucessória, a união estável, pela seriedade de seus propósitos, autoriza evidentemente aos companheiros a serem beneficiários testamentários, não lhes conferindo, porém, pela ordem de motivos exposta, o título sucessório dos arts. 1.611, §§ 1º e 2º do Código Civil de 1916 e 1.829 do Código Civil de 2002, estes conseqüências típicas e imediatas do casamento. Com o matrimônio, sabe-se com toda a segurança os legitimados à sucessão dos cônjuges. Quanto à união estável, há regras próprias para a sucessão hereditária, conforme o disposto no art. 2º da Lei 8.971/94, art. 7º, parágrafo único da Lei 9.278/96 e art. 1.790 do Código Civil de 2002. [69]

Portanto, apesar de se basear em fundamento totalmente diverso, para Gustavo Tepedino, a existência de estatutos sucessórios diferenciados para cônjuges e companheiros não fere a Constituição Federal de 1988, assim como a primeira corrente doutrinária citada.

É importante destacar que o entendimento que atualmente predomina no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro é no sentido de que não fere a Constituição Federal a aplicação do art. 1.790 do Código Civil de 2002, conforme ementa de recente julgado da Oitava Câmara Cível que transcrevemos abaixo:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO DE FAMÍLIA E DAS SUCESSÕES. DIREITOS DA COMPANHEIRA NA SUCESSÃO DO EX-COMPANHEIRO. APLICAÇÃO DO ART. 1.790, III, DO CÓDIGO CIVIL. EXISTÊNCIA DE OUTROS PARENTES SUCESSÍVEIS, QUAIS SEJAM, OS COLATERAIS. ARGÜIÇÃO INCIDENTAL DE INCONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 1.790, SOB O ARGUMENTO DE TRATAMENTO DESIGUAL ENTRE UNIÃO ESTÁVEL E CASAMENTO. IMPROCEDÊNCIA. O § 3º DO ARTIGO 226 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL APENAS DETERMINA QUE A UNIÃO ESTÁVEL ENTRE O HOMEM E A MULHER É RECONHECIDA, PARA EFEITO DE PROTEÇÃO DO ESTADO, COMO ENTIDADE FAMILIAR, DEVENDO A LEI FACILITAR A SUA CONVERSÃO EM CASAMENTO, O QUE EVIDENCIA QUE UNIÃO ESTÁVEL E CASAMENTO SÃO CONCEITOS E REALIDADES JURÍDICAS DISTINTAS, RAZÃO PELA QUAL NÃO CONSTITUI AFRONTA À CONSTITUIÇÃO O TRATAMENTO DADO AO COMPANHEIRO NA NOVA LEGISLAÇÃO CIVILISTA. LIMITAÇÃO DO TEMPO DA UNIÃO ESTÁVEL. SE OS COMPANHEIROS DECLARARAM EM ESCRITURA PÚBLICA QUE VIVIAM MARITALMENTE "HÁ MAIS DE VINTE ANOS CONSECUTIVOS", CABE AO JULGADOR, EM NOME DA PRUDÊNCIA E RAZOABILIDADE, CONSIDERAR COMO INDISCUTÍVEL O PERÍODO DE VINTE ANOS, CABENDO À INTERESSADA A PROVA DO INÍCIO DO TEMPO REAL DE CONVIVÊNCIA, O QUE NÃO OCORREU. DESPROVIMENTO DO RECURSO. (Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, 8ª Câmara Cível, Agravo de Instrumento nº 2004.002.16474, Rel. Des. Odete Knaack de Souza, acórdão de 19.04.2005) [70]

Outra corrente, capitaneada pela profª. Ana Luiza Maia Nevares, em sentido oposto defende a inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil de 2002 [71]. Esta autora também utiliza a distinção preconizada pelo prof. Gustavo Tepedino entre casamento como ato jurídico solene e como entidade familiar, contudo a conclusão a que chega é diversa.

A profª. Ana Luiza Maia Nevares defende que o fundamento da proteção das entidades familiares é a dignidade da pessoa humana. Assim, se todas as entidades familiares têm como fim a promoção da dignidade de seus membros, não há que se falar em primazia uma entidade familiar em relação às demais, ou seja, não existe hierarquia axiológica entre as entidades familiares, como é sustentado pela primeira corrente, e acrescenta que é inconstitucional a previsão de tratamento diferenciado em prejuízo de quaisquer destas entidades. Nos dizeres da referida autora:

Dessa maneira, como é possível dizer que o casamento é entidade familiar superior se todos os organismos sociais que constituem a família têm a mesma função, qual seja, promover o desenvolvimento da personalidade de seus membros?

Admitir a superioridade do casamento significa proteger mais, ou prioritariamente, algumas pessoas em detrimento de outras, simplesmente porque aquelas optaram por constituir uma família a partir da celebração do ato formal do matrimônio.

Esta situação, sem dúvida, enseja uma contrariedade ao ordenamento constitucional, violando o princípio da igualdade, na medida em que estabelece privilégios a alguns indivíduos em prejuízo de outros, de forma injustitifcada. [72]

A autora não discorda de que o casamento constitui a forma mais segura de constituição de uma entidade familiar e por isso às pessoas casadas são conferidos alguns direitos peculiares decorrentes desta característica, assim como coloca o prof. Gustavo Tepedino [73].

Todavia, ao contrário da conclusão a que chega o prof. Gustavo Tepedino, a autora entende que as normas que regulam os direitos sucessórios dos cônjuges não estão ligadas à segurança jurídica proporcionada pelo ato matrimonial, mas, ao contrário, estão ligados diretamente à convivência familiar e à solidariedade inerente a esta. [74] Por essa razão, a previsão de direitos sucessórios mais amplos para as pessoas ligadas pelo vínculo formal se mostra inconstitucional, uma vez que as uniões estáveis também foram elevadas ao status de entidades familiares pela Constituição Federal. Novamente, valem ser transcritas as lições de Ana Luiza Maia Nevares:

Dessa forma, apesar de casamento e união estável encerrarem situações diversas, este fato não é suficiente para que a tutela na sucessão hereditária seja discrepante, conferindo-se mais direitos sucessórios a uma ou outra entidade familiar, pois ambas constituem família, base da sociedade, com especial proteção do Estado (CF/88, art. 226, caput) e é a família o organismo social legitimador do chamamento de determinada pessoa à sucessão, em virtude do dever de solidariedade que informa as relações familiares. [75]

Esta última posição exposta, sem dúvida, é a que se revela mais vantajosa para os companheiros e se mostra bastante coerente. Contudo, a doutrina e a jurisprudência ainda se mostram muito resistentes quanto à sua aceitação, pois não se pode negar que apesar de todas as conquistas legislativas alcançadas, as uniões estáveis ainda são alvo de discriminações não apenas pelos juristas, como também pela sociedade. No entanto, em recente julgado, a 8ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, tribunal nacionalmente conhecimento por suas decisões de vanguarda, declarou o art. 1.790 do Código Civil de 2002 inconstitucional, conforme expomos abaixo:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. INVENTÁRIO. COMPANHEIRO SOBREVIVENTE. DIREITO À TOTALIDADE DA HERANÇA. COLATERAIS. EXCLUSÃO DO PROCESSO. CABIMENTO.

A decisão agravada está correta. Apenas o companheiro sobrevivente tem direito sucessório no caso, não havendo razão para permanecer no processo as irmãs da falecida, parentes colaterais.

A união estável se constituiu em 1986, antes da entrada em vigor do Novo Código Civil. Logo, não é aplicável ao caso a disciplina sucessória prevista nesse diploma legal, mesmo que fosse essa a legislação material em vigor na data do óbito.

Aplicável ao caso é a orientação legal, jurisprudencial e doutrinária anterior, pela qual o companheiro sobrevivente tinha o mesmo status hereditário que o cônjuge supérstite.

Por essa perspectiva, na falta de descendentes e ascendentes, o companheiro sobrevivente tem direito à totalidade da herança, afastando da sucessão os colaterais e o Estado.

Além disso, as regras sucessórias previstas para a sucessão entre companheiros no Novo Código Civil são inconstitucionais. Na medida em que a nova lei substantiva rebaixou o status hereditário do companheiro sobrevivente em relação ao cônjuge supérstite, violou os princípios fundamentais da igualdade e da dignidade.

NEGARAM PROVIMENTO. (Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, 8ª Câmara Cível, Agravo de Instrumento nº 70009524612, Rel. Des. Rui Portanova, acórdão de 18.11.2004) [76]

Em que pese as decisões e posicionamentos doutrinários destacados acima, em virtude do recente nascimento do Código Civil de 2002, ainda teremos que aguardar para conhecer o entendimento que realmente vai prevalecer em nossos tribunais e em nossa doutrina com relação à tutela sucessória dos companheiros.

Sobre a autora
Fernanda Moreira dos Santos

bacharel em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Fernanda Moreira. União estável e direitos sucessórios à luz do Direito Civil-Constitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1011, 8 abr. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8213. Acesso em: 23 dez. 2024.

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