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O período descontínuo na aposentadoria por idade rural:

uma análise acerca do princípio da igualdade e justiça social

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Agenda 31/05/2020 às 14:22

O PERÍODO DESCONTÍNUO NA ATIVIDADE RURAL E OS CRITÉRIOS DE IGUALDADE E JUSTIÇA SOCIAL

  Compreende-se como período descontínuo o intervalo temporal em que o trabalhador rural deixa a agricultura e se enquadra em um trabalho formal, retornando à agricultura em momento posterior. Assim, é possível garantir a permanência da qualidade de Segurado Especial ao trabalhador rural que, por motivos de força maior, tenha necessitado largar a agricultura por um período. Todavia, esse quesito parece apresentar um problema que reside na obscuridade presente na lei de benefícios ao afirmar, em seu Art. 48, § 2º, que a comprovação da atividade rural pode ocorrer ainda que de forma descontínua. Veremos neste tópico como tal fato pode ferir a igualdade nos vários julgamentos, analisando suas fundamentações a fim de se encontrar uma situação que configure justiça social. 

3.1 Conceito e configuração do período descontínuo na aposentadoria rural

O período descontínuo ou exercício laborativo de forma (des)contínua pode ser entendido como uma proteção concedida aos Segurados Especiais no tocante à possibilidade de afastamento do meio rural, preservando o tempo de permanência na atividade laborativa rurícola. Neste sentido, a lei de benefícios estabelece em seu Art. 39, I, que a aposentadoria por idade rural será concedida ao indivíduo que comprove o exercício da atividade rural, ainda que de forma descontínua, em período anterior ao requerimento do benefício.

Considerando o contexto narrado acima, podemos dizer que o legislador formulou a noção de período descontínuo na atividade agrícola, provavelmente, pensando em assegurar uma maior proteção aos trabalhadores rurais, em relação à garantia de uma proteção previdenciária. Por outro lado, o conceito apresentado na lei acerca de tal instrumento jurídico parece ser vago, inexistindo pacificação doutrinária e jurisprudencial a respeito. Assim, considerando que não existe um entendimento majorado sobre o tema, pode vir a ocorrer uma execução legal arbitrária, onde há aplicação da lei de acordo com o subjetivismo do aplicador.     

Assim, como o direito é uma ciência que permite interpretações diversas a respeito do mesmo tema, o que pode provocar posicionamentos jurídicos antagônicos[13] em relação ao mesmo caso concreto, faz-se necessária a pacificação acerca de temas que são apresentados pelas leis de forma genérica, evitando, desta forma, a possibilidade de aplicação arbitrária da lei.

 Dentro desse contexto, considerando a amplitude que um entendimento jurídico pode possuir, é possível que um assunto jurídico que não esteja pacificado pelos tribunais, como o período descontínuo, seja compreendido e aplicado de forma subjetiva pelos aplicadores da lei. Ocorre que, aplicar um entendimento jurídico de forma subjetiva e discricionária pode significar uma violação ao princípio da igualdade e uma (in)justiça social

No tocante à aposentadoria rural, é possível observar que a noção do exercício laborativo em período descontínuo pode nutrir significativa importância, pois o meio rural depende de fatores que fogem à vontade do trabalhador para o sucesso laboral, como as secas, que possivelmente impulsionam o trabalhador rural a buscar um emprego formal, mesmo que por um curto período de tempo.  A respeito do período descontínuo, tem-se a seguinte explanação:

A controvérsia do direito à aposentadoria por idade do segurado especial reside na interpretação administrativa dada ao parágrafo 2º do artigo 143 da Lei nº 8.213/91. Conforme o entendimento administrativo, ao requerer o benefício de aposentadoria por idade rural, o segurado especial (agricultor) deve comprovar o exercício da atividade rural nos 180 meses imediatamente anteriores ao requerimento, não admitindo intervalos (períodos descontínuos) superiores a 36 meses, que acarretem a perda da qualidade de segurado. (LIBARDONI, 2015, p. 22)         

Pode ser percebido que, em um primeiro momento, a doutrina apresenta um conceito delimitado daquilo que se compreende como sendo o período descontínuo trazido pela lei de benefícios. Para tal autor, o fato de o trabalhador rural se afastar da atividade laborativa rural, pura e simplesmente, desqualifica a condição de Segurado Especial deste agricultor, devendo este ser enquadrado em outra categoria de segurados, como individual, facultativo ou empregado. 

A Instrução Normativa de nº 77/2015, traz em seu art. 158 os aspectos legais que viabilizam a concessão da aposentadoria por idade rural, observando o tempo de carência de 180 meses, ainda que de forma descontínua. Neste mesmo artigo, em seu parágrafo único, percebe-se por descontínuo os períodos intercalados de exercício de atividades rurais, ou urbana e rural, com ou sem a ocorrência da perda da qualidade de segurado.

Vale frisar que o art. 39 da Lei 8.213/1991, por sua vez, assegura a aposentadoria para o trabalhador rural no valor de um salário mínimo, desde que comprovado o exercício da atividade rural, ainda que de forma descontínua, mas não especifica o que deve ser entendido como descontinuidade. Portanto, observa-se que essa “descontinuidade está entre os conceitos previdenciários ainda não uniformizados e pacificados. Ressalta-se que a lei não impõe qualquer restrição à soma de períodos intercalados de atividade rural” (BERWANGER, 2015, p. 229).

Assim, o segurado especial que deixar de exercer ou comprovar a atividade rural por período superior a 36 meses dentro do prazo da carência do benefício (nos 180 meses imediatamente anteriores ao requerimento do benefício) perde esta qualidade perante a previdência social, prejudicando sobremaneira o direito à aposentadoria por idade. (LIBARDONI, 2015, p. 23)

Dessa forma, pode ser constatado que a ocorrência do período descontinuado, ou seja, o tempo em que o trabalhador rural tenha por algum motivo se afastado de suas atribuições agrícolas, não causa grandes agravos à aposentadoria por idade rural quando ocorrer dentro de um período de até 36 (trinta e seis) meses, sendo mantida a qualidade de segurado do trabalhador, entretanto, uma vez ultrapassado este tempo, dentro do período de carência do benefício, que equivale a 15 anos, o trabalhador perde a qualidade de Segurado Especial. Chama-se atenção para o discurso de Berwanger (2015), quando relata que:

A jurisprudência, por sua vez, não é uníssona, havendo soluções diversas. Ora entende-se que é possível interromper o labor apenas por curtos períodos, ora que interessa saber se efetivamente houve o desempenho da atividade rural pelo período equivalente à carência. As decisões mais recentes do STJ se aproximam do entendimento administrativo. (p. 241)

Considerando tal posicionamento, é possível perceber a provável existência de discricionariedade dos executores da lei em relação à aplicação do período descontínuo aos benefícios previdenciários concedidos aos Segurados Especiais, uma vez que não existe pacificação legislativa, tampouco sintonia no entendimento jurisprudencial acerca deste mecanismo jurisdicional. Assim, considerando o fato de que não há unicidade de entendimento jurídico, é possível que a administração previdenciária e os magistrados utilizem o termo da forma que lhes convierem, podendo causar, desta forma, diversos julgamentos desiguais em relação aos mesmos casos concretos.

Do ponto de vista da teoria geral, isso levou à conclusão, por uma extrapolação ilícita, de que o Direito não interessa tanto aquilo que os homens fazem, mas de que maneira o fazem; ou que o Direito não prescreve aquilo que os homens têm que fazer, mas a maneira, isto é, a forma de ação; em suma, que o Direito é uma regra formal da conduta humana. (BOBBIO, 1995, p. 57)

Como bem destaca Bobbio (1995), o direito constitui uma regra formal que determina a conduta humana, isto é, a existência do direito possui a finalidade de ordenar os comportamentos sociais, fazendo com que haja limitações aos termos da lei em relação ao poder do estado como também em relação às vontades do povo de determinada sociedade. Assim, é possível observar que as limitações e permissões apontadas no direito devem existir no meio social como proteção legal assegurada aos cidadãos contra as arbitrariedades do Estado-poder.

Assim, é possível perceber que as atitudes do poder estatal, manifestadas através dos executores da lei, que ultrapassem os limites legais, podem configurar um verdadeiro caos jurisdicional, abalando o princípio constitucional da legalidade e conduzindo a sociedade aos ideais anarquistas.  Neste sentido, pode-se observar que o julgamento arbitral de um direito social entra em contradição com os objetivos fundamentais republicanos, como a redução das desigualdades sociais e a promoção do bem de todos, presentes no Art. 3º, III e IV, da CF/88.

Contextualizando tais fatos, faz-se importante mencionar o entendimento de Bobbio (1995), acerca da arbitrariedade estatal no julgamento de normas consideradas incompletas, relatando que “Conceder cidadania ao direito livre (isto é, a um direito criado de vez em quando pelo juiz) significava quebrar a barreira do princípio de legalidade, que havia sido colocado em defesa do indivíduo, abrir as portas ao arbítrio, ao caos e à anarquia (p.128)”.

Nesse sentido, é possível observar que a inexistência de uma pacificação acerca do período descontínuo pode acarretar desigualdade e injustiça social no julgamento dos benefícios previdenciários dos rurícolas, visto que pode ocorrer o julgamento arbitral do estado em relação a tais demandas e, consequentemente, uma ameaça aos direitos sociais dos povos submissos a este ordenamento jurídico.

3.2 Da omissão legislativa e posicionamentos jurisprudenciais diante do período descontínuo

A aposentadoria por idade do Segurado Especial encontra respaldo no parágrafo 2º dos artigos 48 e 143 da lei 8.213/91. De acordo com os dispositivos legais, o benefício de aposentadoria por idade, destinada ao segurado especial, depende de algumas minúcias, como a obrigação de comprovar o exercício da atividade rural por, no mínimo, 180 meses imediatamente anteriores ao requerimento administrativo, ainda que de forma descontínua, como sendo o tempo relativo ao número de meses de contribuição correspondente à carência do benefício.

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Do enunciando do texto legal, é possível perceber que o legislador cita a forma descontínua de forma genérica, sem uma delimitação legal do seu entendimento, tampouco um entendimento sólido acerca da instrução legal. A omissão do legislador, ao não definir o que seria o período descontínuo, pode gerar uma margem de vício legal na aplicação de tal terminação, uma vez que não se deduz, logicamente, qual é o caminho que o magistrado deve seguir para aplicar o dispositivo legal de forma correta.

Em relação à discussão da existência das lacunas presentes no ordenamento jurídico, é imperioso destacar a princípio que:

(...) Não há lugar para a lacuna no Direito. Como é absurdo pensar num caso que não seja jurídico e, todavia, seja regulado, assim também não é possível admitir um caso que seja jurídico e que apesar disso não seja regulado: isto é, não é possível admitir uma lacuna do Direito. Até onde o direito alcança com as suas normas, evidentemente não há lacunas; onde não alcança, há espaço jurídico vazio e, portanto, não há lacuna do Direito, mas há atividade indiferente ao direito. (Bobbio, 1995 p.129)

  Ressaltando a brilhante explanação de Bobbio (1995), podemos considerar que a omissão conceitual de uma norma jurídica pode vir a qualificar um espaço jurídico vazio, isto porque a preocupação do Direito em regulamentar o fato jurídico possivelmente não seja suficiente para que se garanta a completude da norma. Assim, tem-se que a existência de uma imprecisão nos termos legais pode limitar o alcance do poder regulamentador do Direito, podendo surgir uma atividade indiferente ao Direito, que não seja condizente com o que se busca através de determinada norma.

Desta feita, em relação à questão em tela, é possível estabelecer uma ligação entre o período descontínuo e a norma qualificada por um espaço jurídico vazio, considerando que tal instrumento legal está abarcado pelo Direito. No entanto, devido a omissão em seu conteúdo formal, que não determina a sua caracterização específica, pode-se extrair que esta norma não teria sido totalmente alcançada pelo Direito, sendo, desta forma, um mero mecanismo sem grande significado ao ordenamento jurídico ao qual pertence.

Assim, é provável que a existência de uma norma que gere incerteza em sua aplicação, pelo fato de não possuir uma dedução coerente, cause uma lacuna que proporcione conflitos no entendimento do teor do dispositivo. Uma vez que tal fato venha a ocorrer, tem-se um problema hermenêutico diante do entendimento daquilo que o legislador quis afirmar, sendo um fato gerador de discricionariedades aplicadas aos particulares.

Nesse sentido, para alguns doutrinadores, há certa perversidade na interpretação administrativa acerca do período descontínuo em relação à aposentadoria por idade rural:

A interpretação administrativa é perversa à medida que inviabiliza o direito à aposentadoria por idade daquele segurado especial que exerce a atividade rural em períodos descontínuos superiores a 36 meses, uma vez que, ocorrendo a perda da qualidade de segurado, não permite o cômputo dos períodos anteriores. E, para fazer jus ao benefício requerido, o segurado especial deverá, após o retorno às lides rurícolas, exercer e comprovar novamente 180 meses de atividade rural, o que, tendo em vista a idade e as condições de trabalho no campo, torna inviável o direito à aposentadoria por idade. (LIBARDONI, 2015, p. 23)

Portanto, é possível observar que, hipoteticamente, o trabalhador rural que laborou na atividade agrícola, em regime de economia familiar, por 10 (dez) anos e, nesse interstício temporal, necessitou exercer um emprego formal por um período superior a 36 meses, em decorrência de secas que assolaram o labor agrícola, pode-se considerar que tal trabalhador perderá a sua qualidade de Segurado Especial, sendo necessário o novo cômputo da carência para requerer o benefício previdenciário da aposentadoria por idade rural, que é de 180 (cento e oitenta) meses, equivalente a 15 (quinze) anos.

Em relação a esta exigibilidade de novo cumprimento da carência decorrente da perda da qualidade de Segurado Especial, é possível apontar que tal fato pode acarretar enorme prejuízo ao trabalhador rural, considerando que a obrigação de cumprir um novo período de 180 meses para uma pessoa que já conta com 55 ou 60 anos, possivelmente seja uma medida desumana, tendo em vista os esforços físicos exigidos pela atividade agrícola e o desgaste proporcionado ao longo dos anos.

 Assim, pode-se vislumbrar que, devido a omissão legislativa em relação à delimitação do entendimento acerca do período descontínuo, é possível que ocorra a aplicação (des) ordenada do dispositivo legal, sendo importante tecer, mais uma vez, que não existe pacificação em relação à aplicabilidade deste instrumento jurídico, sendo possibilitado aos aplicadores e executores da lei o entendimento que lhes couber.

Observando esse contexto, fala-se em discricionariedade diante da aplicação da norma lacunosa pelo fato de o aplicador da lei possuir conveniência e oportunidade para aplicar a mesma conforme o seu entendimento subjetivo. Ocorre que a aplicação indefinida e irrestrita da lei fere a completude que o ordenamento jurídico deve possuir, considerando que a inexistência da completude do ordenamento jurídico pode incidir em um mau funcionamento do mesmo.

A norma jurídica que estabelece o dever do juiz de julgar cada caso com base numa norma pertencente ao sistema não poderia ser executada se o sistema não fosse pressupostamente completo, quer dizer, com uma regra para cada caso. A completude é, portanto, uma condição sem a qual o sistema em seu conjunto não poderia funcionar. (BOBBIO, 1995, p. 118)

A completude aparece na forma de um fator preponderante na garantia de uma correta aplicação da lei, isto é, a partir da tipificação específica e clara a respeito do bem jurídico protegido pela lei é que se pode ter um julgamento coerente, com garantia de aplicação isonômica.  Quando o aplicador da lei se afasta do teor legal e atua conforme o seu entendimento e vontade, opera-se a anarquia, podendo configurar um risco social aos subordinados da lei. Neste sentido, acerca da concessão do benefício de aposentadoria por idade rural, salienta-se:

Se o papel do judiciário é o de pacificação social, entende que não se deve criar conflito onde não há. Milhares de benefícios são concedidos pelo INSS sem qualquer restrição com relação ao prazo de vigência da norma, quer seja 2006 ou 2010. Não reconhecer esse direito a quem busca a tutela jurisdicional afeta o princípio da isonomia, pois os iguais estariam sendo tratados de forma desigual e afeta o princípio do pleno acesso ao Judiciário, vez que o segurado que tivesse seu benefício negado não poderia discutir isso judicialmente, pois esbarraria no entendimento de que faltaria previsão legal para o benefício. (BERWANGER, 2015, p. 60)

Assim, é possível constatar que a mera aplicabilidade de um termo legal, de forma subjetiva, pode acarretar transgressão ao princípio da isonomia, considerando que casos semelhantes possivelmente viriam a deter resultados diversos, isto é, o Direito seria um mecanismo de controle social que funcionaria de forma seletiva, abrangendo as necessidades de alguns em detrimento de outros. Assim, o termo jurídico omisso, provavelmente, seria um instrumento promotor de (des)igualdade social. 

Bobbio (1995) classifica as lacunas das leis, em relação aos motivos que as provocam, em subjetivas e objetivas, sendo a subjetiva ainda subdividida em voluntária e involuntária. Interessa tecer aqui sobre a lacuna subjetiva involuntária, afirmando o autor que estas se configuram como lacunas que dependem de um descuido do legislador, fazendo parecer regulamentado um caso em que, na realidade, não há regulamentação.

Diante do embasamento apresentado, é possível depreender que o legislador, ao afirmar que a aposentadoria por idade do trabalhador rural pode ser requerida a partir do momento em que se comprova o efetivo exercício da atividade rural, ainda que de forma descontínua, permite uma lacuna subjetiva involuntária, visto que surgiu do descuido do legislador ao não definir, em termos práticos, o que se entende por período descontínuo, dando a noção de que o termo está regulamentado, quando na verdade se tem uma omissão legislativa que pode dificultar a aplicabilidade do enunciado presente no Art. 48 § 2º da lei 8.213/91.

A coerência não é condição de validade, mas é sempre condição para a justiça do ordenamento. É evidente que quando duas normas contraditórias são ambas válidas, e pode haver indiferentemente a aplicação de uma ou de outra, conforme o livre-arbítrio daqueles que são chamados a aplica-las, são violadas duas exigências fundamentais em que se inspiram ou tendem a inspirar-se os ordenamentos jurídicos: a exigência da certeza (que corresponde ao valor da paz ou da ordem e a exigência da justiça (que corresponde ao valor da igualdade). Onde existem duas normas antinômicas, ambas válidas, e, portanto, ambas aplicáveis, o ordenamento jurídico não consegue garantir nem a certeza, entendida como possibilidade, por parte do cidadão, de prever com exatidão as consequências jurídicas da própria conduta, nem a justiça, entendida como o igual tratamento das pessoas que pertencem à mesma categoria. (BOBBIO,1995, pag.: 113) 

Como bem expõe Bobbio (1995), dentro do ordenamento jurídico, o legislador deve prezar pela coerência dos dispositivos legais, de forma que a lei seja clara o suficiente para que se deduza qual seja o seu real mandamento e, assim, sendo tal fato caracterizado como uma condição sine qua non[14] para que se fale em justiça da norma.

Assim sendo, temos que uma norma incoerente e vaga, possível de interpretações diversas, condiz com a qualidade de uma norma injusta. Como evidenciado alhures, Bobbio (1995) afirma que sendo as normas contraditórias e válidas, cada qual possuindo sua aplicação particular conforme a mera vontade do aplicador, tem-se violada a exigência da justiça, a qual corresponde ao valor de igualdade que deve predominar na aplicação da lei.

O entendimento acerca do período descontínuo trazido pela lei 8.213/91 em seu Art. 48, § 2o não é uníssono perante a jurisprudência dos tribunais. O posicionamento jurisprudencial em relação ao período descontínuo é classificado pelo menos por três posicionamentos diversos: possibilidade de afastamento pelo período de graça, necessidade de retorno por um terço da carência para somar período anterior ao afastamento e pela soma de períodos intercalados sem qualquer restrição.

Em relação ao primeiro entendimento jurisprudencial, que considera a possibilidade de afastamento pelo período de graça[15], podemos destacar as principais peculiaridades, vejamos:

PEDIDO DE UNIFORMIZAÇÃO NACIONAL. PREVIDENCIÁRIO. CONCESSÃO. APOSENTADORIA POR IDADE RURAL. INTERCALAÇÃO COM ATIVIDADE URBANA. ART. 143 DA LEI 8.213/91. Para fins de concessão de aposentadoria por idade rural, a descontinuidade admitida pelo art. 143 da Lei 8.213/91 é aquela que não importa em perda da condição de segurado rural, ou seja, é aquela em que o exercício de atividade urbana de forma intercalada não supera o período de 3 (três) anos. 2. Caso em que o período de atividade urbana foi exercido por mais de 8 (oito) anos (de 1989 a 1997), não tendo sido comprovado que, no período imediatamente anterior ao requerimento (1999), a autora tenha desempenhado atividade rurícola pelo período de carência previsto no art. 142 da Lei nº 8.213/91 para o ano em que completou a idade (1999): 108 meses ou 9 anos, ou seja, desde 1990.3. Aposentadoria por idade rural indevida. (...)

 Verifica-se, portanto, que a concessão da aposentadoria por idade do trabalhador rural somente seria possível, em caso de afastamento, se houvesse retorno ao labor rural em no máximo 3 (três) anos. Caso haja descumprimento desse limite temporal, o indivíduo perde a sua qualidade de segurado especial, sendo que todo o tempo pretérito de efetivo exercício do labor rural passa a ser desconsiderado para fins de aposentadoria, devendo haver um novo início de contagem da carência.

Em relação à segunda hipótese de aplicação do conceito de período descontínuo, tem-se a necessidade de retorno por um terço da carência para somar período anterior ao afastamento[16], como podemos observar no seguinte julgado:

PREVIDENCIÁRIO. APOSENTADORIA RURAL POR IDADE. REGIME DE ECONOMIA FAMILIAR. REQUISITOS LEGAIS. COMPROVAÇÃO. INÍCIO DE PROVA MATERIAL COMPLEMENTADO POR PROVA TESTEMUNHAL. DESCONTINUIDADE DO TRABALHO RURAL. POSSIBILIDADE.(...) 7. Ainda que possível a descontinuidade, não se pode admitir que o retorno às atividades no campo por pequeno período, muitos anos após a o abandono do campo, viabilize a concessão de aposentadoria rural, até porque os frutos do trabalho rural, como sabido, não são imediatos. Somente o efetivo desempenho de atividade rural por período razoável, de modo a evidenciar sua importância para a sobrevivência do trabalhador, pode ser admitido como retomada da condição de segurado especial(...)

Nesse caso, a decisão jurisprudencial considera que o Segurado Especial que tiver abandonado o labor rural e posteriormente retornado, deve comprovar o exercício da atividade agrícola por, no mínimo, 1/3 (um terço) da carência do benefício pretendido antes do requerimento administrativo.   

Assim, em relação à aposentadoria por idade rural, o trabalhador rural que houver perdido a qualidade de Segurado Especial devido ao afastamento das atividades agrícolas, deverá comprovar que está inserido no meio rural, utilizando a agricultora como atividade principal, por pelo menos 5 (cinco) anos, ou seja, cumprindo a exigência de retorno por 1/3 (um terço) dos 15 (quinze) anos de carência do benefício.

Por sua vez, outra parte da jurisprudência se posiciona no sentido de aplicar a soma de períodos intercalados sem qualquer restrição[17], como pode ser observado a partir do seguinte julgado:

PREVIDENCIÁRIO. APOSENTADORIA RURAL POR IDADE. TRABALHADOR RURAL. REQUISITOS LEGAIS. COMPROVAÇÃO. INÍCIO DE PROVA MATERIAL, COMPLEMENTADA POR PROVA TESTEMUNHAL. DESCONTINUIDADE DO LABOR. POSSIBILIDADE. CORREÇÃO MONETÁRIA E JUROS DE MORA. FASE DE CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. DEFERIMENTO. (...) 4. É possível admitir o cômputo de períodos de labor rural intercalados para fins de concessão de aposentadoria por idade rural, desde que demonstrada a condição de segurado especial no período imediatamente anterior ao requerimento administrativo ou implemento do requisito etário(...)

Para os adeptos desta corrente jurídica, a qualidade de segurado especial do trabalhador rural é retomada a partir do momento em que este retorna ao labor rural, independentemente do tempo de afastamento, sendo computado todo o período pretérito de exercício laborativo agrícola. Deste modo, é possível que o trabalhador rural tenha todos os anos de exercício laborativo no meio rural sendo considerados para fim de aposentadoria, desconsiderando a existência do tempo de afastamento.

Portanto, observa-se uma diferença particular em relação às demais decisões apresentadas, dando ênfase à desconsideração do período de afastamento do labor rural, podendo dar a ideia de continuidade da qualidade de Segurado Especial do rurícola, mesmo em caso de afastamento da atividade rural, ficando esta suspensa até a volta do trabalhador ao labor campesino.

Diante dos entendimentos jurisprudenciais apresentados, podemos perceber a possibilidade de discricionariedade que acomete os magistrados devido à omissão legislativa em relação à pacificação de termos legais, como o período descontínuo. Resta-nos compreender os conceitos de igualdade e justiça desenvolvidos por Bobbio (1997), para que possamos identificar a necessidade de completude de termos jurídicos omissos, a fim de que se tenha uma aplicação igualitária e justa das decisões judiciais.

3.3 Os conceitos de igualdade e (in) justiça na aplicação do período descontínuo na concessão do benefício rurícola

Inicialmente, pode-se dizer que o Direito é uma ciência jurídica que compreende a função precípua de garantir o equilíbrio social dentro do Estado. Assim, a ideia de se ter uma ordem jurídica que possibilite um tratamento igualitário dentro da sociedade, objetiva a proporcionalidade da justiça social, ou seja, é possível que se fale em justiça no seio da sociedade à medida que seus cidadãos são tratados de forma igualitária. Assim, a lei deve ser aplicada para todos de forma equitativa, sem distinções que acarretem benefício para alguns em detrimento de outros.  Destaca-se:

Dos dois significados clássicos de justiça que remontam a Aristóteles, um é o que identifica justiça com legalidade, pelo que se diz justa a ação realizada em conformidade com a lei (não importa se leis positivas ou naturais), justo é o homem que observa habitualmente as leis, e justas as próprias leis (por exemplo, as leis humanas) na medida em que correspondem a leis superiores, como as leis naturais ou divinas; o outro significado é, precisamente, o que identifica justiça com igualdade, pelo que se diz justa uma ação, justo um homem, justa uma lei que institui ou respeita, uma vez instituída, uma relação de igualdade. Não é exata a opinião comum segundo a qual é possível distinguir os dois significados de justiça referindo o primeiro sobretudo à ação e o segundo sobretudo à lei, pelo que uma ação seria justa quando conforme a uma lei e uma lei seria justa quando conforme ao princípio de igualdade. (BOBBIO, 1997, p. 14)

Extrai-se, portanto, duas possibilidades para o conceito de justiça, segundo Bobbio (1997), a primeira referente à lógica de que a justiça de uma norma está intimamente ligada ao princípio da legalidade, ou seja, a norma justa é aquele que se encontra amparada por um ordenamento jurídico constitucional, definindo os fatos que devem reger a coletividade social de forma geral. Por sua vez, o segundo conceito diz respeito à relação existente entre a justiça e a igualdade. Assim, é possível observar que a lei possuidora de um ideal de desigualdade, em relação aos seus destinatários, pode ser classificada como uma lei injusta.

Desta forma, pode-se dizer que as imposições legais meramente subjetivas, derivadas da omissão legislativa, que ocorre quando o legislador deixa surgir um espaço jurídico-normativo, podem causar a livre discricionariedade dos aplicadores da lei, possibilitando julgamentos desiguais em casos idênticos, contrariando, assim, o sentido de justiça.

Assim, é possível apresentar que a existência de uma norma jurídica omissa, que leve à diversos entendimentos a respeito de um mesmo caso concreto, pode ferir o direito constitucional à igualdade, considerando o fato de que poderá haver pessoas prejudicadas devido a aplicação de um entendimento jurídico mais rígido. Neste sentido, questiona-se aqui acerca das interpretações diferenciadas por parte da jurisprudência, em relação ao período descontínuo, observando-se a ausência de uma pacificação legislativa a respeito do tema.

Conforme já apresentado, existem posicionamentos jurisprudenciais antagônicos em relação à compreensão do período descontínuo trazido pela lei de benefícios. Tal fato é caracterizado pela ausência de uma especificidade da lei, visto que esta se limita apenas a apresentar a possibilidade deste fenômeno jurídico na consideração da aposentadoria por idade do trabalhador rural.

Desta forma, é possível dizer que a aplicação de uma lei omissa pode acarretar injustiça social em relação àqueles que forem prejudicados pela subjetividade concedida ao magistrado, bem como se constata a possível desconsideração do princípio da igualdade entre os iguais, por mera existência de entendimentos subjetivos diversos. No tocante à conceituação de igualdade, podemos destacar que:

O direito à igualdade é o direito que todos têm de serem tratados igualmente na medida em que se igualam e desigualmente na medida em que se desigualam, quer perante a ordem jurídica (igualdade formal), quer perante a oportunidade de acesso aos bens da vida (igualdade material), pois todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. (JUNIOR, 2019, p. 607)         

Assim, podemos observar, através da lição apresentada pelo autor, que existem dois tipos de igualdade, a igualdade formal, que se traduz como a igualdade que consta na lei, como também a igualdade material, que diz respeito aos mesmos tratamentos de acesso aos bens da vida. Desta forma, é possível constatar que o tratamento igualitário necessário à consecução do entendimento sobre o período descontínuo está intimamente relacionado à exigibilidade da igualdade material, visto que se objetiva garantir a todos os trabalhadores rurais um tratamento equânime em relação ao julgamento do pedido de aposentadoria por idade rural.

Acerca da relação entre justiça e igualdade, vale tecer que para Bobbio (1997) “enquanto a justiça é um ideal, igualdade é um fato.” (p. 16). Desta forma, é possível considerar que a justiça pode ser compreendida, neste contexto, como um alvo, algo que se deseja alcançar, enquanto a igualdade significa um instrumento para a consecução do objetivo principal, qual seja, a justiça. Assim, igualdade e justiça devem se entrelaçar para fins de consolidação da justiça social.

Assim, considerando as jurisprudências apresentadas anteriormente, tem-se a nítida demonstração de que há entendimentos diferenciados em relação a um mesmo instituto jurídico, que é o período descontínuo. Vale frisar que este fato ocorre devido à falta de pacificação jurisdicional em relação ao termo, podendo manter influência significativa na concessão ou não do benefício previdenciário pretendido pelo trabalhador rural, uma vez que o deferimento ou indeferimento do segurado que, por um período, tenha se afastado do labor rural, torna-se dependente da corrente jurisdicional adotado pelo magistrado.  

Considerando o contexto apresentado acima, pode-se afirmar que a análise da (in)justiça em relação ao período descontínuo pode ser destacada ao se observar a possibilidade de um magistrado possuir o poder de firmar um entendimento extraído fora da lei (no sentido de arbitrariedade) para solucionar um caso que se relaciona a um direito fundamental humano. Diz-se que ocorre uma extração fora da lei pelo fato de a própria lei ser incompleta em seu conteúdo, possibilitando aos aplicadores do direito uma interpretação jurídica subjetivista, onde predomina a vontade particular destes, dando margem ao surgimento de vários entendimentos jurídicos acerca de um mesmo fato.

Nesse sentido, busca-se o ideal de igualdade e justiça social a partir da pacificação de termos legais que se encontrem recheados de omissões, incompletudes e incoerências lógico-jurídicas, considerando que tais normas podem vir a causar tratamentos diferenciados em relação às populações que deveriam possuir a mesma situação de igualdade.

Em relação aos julgados apontados no tópico anterior, pode-se perceber a discrepância entre as decisões acerca do período descontínuo, visto que algumas são mais rígidas, demonstrando que um simples afastamento rural por mais de 120 (cento e vinte) dias seja capaz de proporcionar a perda da qualidade de segurado especial do trabalhador rural, enquanto outra, possivelmente mais benéfica, afirma que o segurado especial mantém a sua qualidade de segurado a partir do momento que retornar à atividade rural, independentemente do tempo de afastamento que tenho ocorrido. Isso nos leva a identificar os princípios estudados, é o que se observa em Bobbio (1997):

(...) o que identifica justiça com igualdade, pelo que se diz justa uma ação, justo um homem, justa uma lei que institui ou respeita uma vez instituída, uma relação de igualdade. Não é exata a opinião comum segundo a qual é possível distinguir os dois significados de justiça referindo o primeiro, sobretudo à ação e o segundo, sobretudo à lei, pelo que uma ação seria justa quando conforme ao princípio de igualdade: tanto na linguagem comum como na técnica, costuma-se dizer – sem que isto provoque a menor confusão – que um homem é justo não só porque observa a lei, mas também porque é equânime, assim como, por outro lado, que uma lei é justa não só porque é igualitária, mas também porque é conforme a uma lei superior. (p. 15)

A explanação de Bobbio (1997) acerca de justiça e igualdade apresenta a ideia de que uma norma é justa a partir do momento que institui uma relação de igualdade entre os seus submissos. Assim, é possível apontar que uma norma injusta seria aquela que é exercida com desigualdade, tomada por arbitrariedades que a tornem imperativas e compulsoriamente aplicadas de forma desordenada, desrespeitando princípios constitucionais instituídos como premissas necessárias para a existência de um estado democrático de direito, como a dignidade da pessoa humana e a igualdade.

Nesse sentido, tem-se o seguinte posicionamento:

A esfera de aplicação da justiça, ou da igualdade social e politicamente relevante, é a das relações sociais, ou dos indivíduos com o grupo (e vice-versa), segundo a distinção tradicional, que remonta a Aristóteles, entre justiça comutativo (que tem lugar na relação entre as partes) e justiça distributiva (que tem lugar nas relações entre o todo e as partes ou vice-versa). (BOBBIO, 1997, p. 16)

A partir deste entendimento, podemos apresentar a noção de que a igualdade social, materializada no exercício da justiça, compreende uma relação social de harmonia entre os indivíduos que constituem determinada sociedade. Assim, para que se possa entender a manifestação do ideal de justiça, é apresentada a existência da justiça comutativa, atuando entre as partes, e da justiça distributiva, que considera as partes e o todo.

Interligando o contexto acima à aposentadoria por idade rural, podemos considerar que a justiça comutativa pode estar relacionada aos diversos segurados especiais que devem ser considerados de forma igualitária durante a consideração do período descontínuo, sendo este fato uma condição preponderante na concessão dos benefícios previdenciários destinados a essa categoria profissional, enquanto manifestação da justiça social.  

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