Nos últimos dias, o País foi tomado por acalorados debates acerca da "farsa" montada pela defesa de Suzane Richthofen em entrevista por ela concedida à reportagem do programa "Fantástico", da Rede Globo de Televisão. Confesso que me entristeci com a enorme quantidade de asneiras que têm sido ditas ultimamente, algumas delas, inclusive, por representantes da Ordem dos Advogados do Brasil, órgão de classe que representa os advogados brasileiros e, por conta disto, a maior interessada na defesa das prerrogativas destes profissionais.
De repente, todos passaram a discutir o papel do advogado na defesa de seu cliente, tentando definir o limite entre o exercício da ampla defesa e a violação de preceitos ético-profissionais; entretanto, não vi uma voz sequer insurgir-se contra aquilo que caracteriza o único crime que a entrevista traduz: a violação do segredo profissional dos advogados, com a revelação do conteúdo da conversa mantida com sua cliente.
Em que pese parecer corporativismo, a defesa intransigente da inviolabilidade do segredo profissional do advogado é, antes de tudo, a defesa da legalidade e de um dos mais importantes pilares do Estado de Direito Democrático: a ampla defesa e o devido processo legal. É oportuno lembrar que a própria Carta Política do Brasil há muito já consagrou o direito do acusado de não produzir provas que possam o incriminar. É facultado ao acusado o direito de silenciar diante de qualquer acusação, como também lhe é dado o direito de sustentar qualquer tese em sua defesa, seja ela verdadeira ou não, no inquérito policial ou em juízo. Mesmo não sendo a conduta moral mais aceita, não se pode afirmar que a mentira do acusado seja considerada um crime.
Não tenho a menor pretensão de fazer a defesa de Suzane Richthofen, até mesmo porque acredito, pelas circunstâncias do caso, que ela agiu motivada por razões torpes, e, em conseqüência, deverá ser responsabilizada criminalmente. O que de fato me preocupa é que a opinião pública, tão contundente e rápida no julgamento sumário da acusada e de seus advogados, não teve a mesma altivez para condenar a atitude criminosa da Rede Globo de Televisão em revelar o conteúdo da conversa mantida entre os advogados Mário Sérgio de Oliveira e Denivaldo Barni com a sua cliente.
No exercício de sua profissão, o advogado é obrigado a manter sigilo de todas as informações que lhe foram prestadas pelos seus clientes, e esse dever se assemelha àquele que tem o padre ao ouvir a confissão dos fiéis e ao do médico, que não pode revelar as informações que lhe foram confidenciadas pelo seu paciente. Em todos esses casos, a revelação dessas informações poderia acarretar incomensuráveis prejuízos ao titular do segredo. Como se vê, o sigilo profissional não é do advogado, mas do próprio acusado que deve se sentir seguro e à vontade para revelar ao seu defensor todas as circunstâncias do caso.
A violação do segredo profissional constitui crime, expressamente previsto no art. 154, do Código Penal brasileiro, sujeitando o infrator à pena de detenção que varia de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa. No caso sob análise, o conteúdo das conversas havidas entre os advogados e sua cliente foram interceptadas por um "descuido" da equipe de reportagem, pois, segundo se afirmou em nota jornalística, a equipe de profissionais encarregada de produzir a matéria esqueceu os microfones de lapela ligados e os gravadores em pleno funcionamento.
Quando "descobriu" que havia gravado "acidentalmente" a conversa dos advogados com Suzane, deveria a equipe de repórteres apagar as fitas sem permitir, sob qualquer pretexto, que aquelas informações protegidas por lei chegassem ao conhecimento de terceiros, principalmente neste caso, em que a opinião pública ficara enfurecida com a matéria jornalística às vésperas do julgamento da acusada. Prejuízo maior para a titular do segredo não poderia ter acontecido.
Acredito, também, que toda esta celeuma criada em relação ao conteúdo da entrevista é exagerada, até mesmo porque nada foi dito que pudesse alterar a verdade formal que há muito já fora colhida nos autos com o encerramento da instrução processual. Afora a tosca esperança de que a imagem de uma menina frágil e desamparada pudesse sensibilizar os jurados e a opinião pública, a entrevista jamais teve, em qualquer momento, a potencialidade necessária para influenciar diretamente no resultado do julgamento.
Levando-se em consideração que a entrevista concedida por Suzane Richthofen não configurou qualquer tipo de crime previsto na legislação penal brasileira, e que, também, não houve infração ética na atuação de seus defensores, restou a indubitável constatação de que a reportagem televisiva, no afã de divulgar matéria jornalística de inquestionável interesse da opinião pública, acabou por cometer um crime que afronta gravemente a inviolabilidade do segredo profissional.
Infelizmente, tive a sensação de que a Ordem dos Advogados do Brasil esteve mais preocupada em discutir as medidas ético-profissionais que, em tese, poderiam ser adotadas em desfavor dos advogados da acusada do que em exigir que fosse respeitada a garantia legal de inviolabilidade do segredo profissional do advogado. Acredito que ano de eleições na Ordem acaba provocando alguns casos de estrelismo repentino, onde mais vale falar o que a opinião pública quer ouvir, e com isso angariar simpatias, do que o que realmente deveria ser dito em defesa das prerrogativas do advogado.
O Ministério Público de São Paulo, rápido e eficiente em pedir a decretação da prisão preventiva da acusada, deve ser igualmente tão diligente na denúncia dos partícipes do crime de violação do sigilo profissional, mesmo que essa postura não renda bons índices nas pesquisas de opinião pública. É o mínimo que se pode esperar de quem tem a nobre função de defender a sociedade contra abusos cometidos em prejuízo dos direitos fundamentais do cidadão.
Eis mais um dentre tantos outros episódios em que é bastante pertinente questionar o papel da imprensa na cobertura de casos criminais, vez que no regime democrático a liberdade de imprensa jamais pode sobrepor-se às garantias fundamentais do indivíduo, especificamente ao seu direito de ter um julgamento justo e imparcial.