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Inafastabilidade da jurisdição e a inibição do dissídio coletivo na Emenda Constitucional nº 45/2004

Agenda 23/05/2006 às 00:00

"O fato é sempre absurdo e sempre se pareceu mais com um bezerro do que com um deus" (F. Nietzsche, Meditações inatuais).

"Não poderia existir verdade primeira. Só existem erros primeiros". (G. Bachelard. Estudos).


1O Inventário: Final Horroroso do Horror sem Fim

Quando a história pintar um retrato de corpo inteiro do dissídio coletivo, o resultado não será positivo, ainda que a posteridade se encarregue de atenuar a culpa derivada do mito da inspiração fascista da legislação trabalhista brasileira — que, como demonstra Aldacy R. Coutinho [01] "foi sem nunca ter sido".

A tese da "outorga" da legislação trabalhista, cultivada (i) pelos interesses político eleitorais do próprio varguismo, (ii) pela direita anti-populista e reacionária e (iii) pela esquerda acadêmica já foi adequadamente desconstruída [02].

Para surpresa de alguns, a OIT informou que a solução de dissídios coletivos por intervenção jurisdicional "não é um flagelo à brasileira". A solução compulsória por órgãos administrativos ocorre na Austrália, Bolívia, Colômbia, Costa do Marfim, Equador, Grécia, Turquia, Venezuela, Indonésia e Nova Zelândia, dentre outros. Pela via jurisdicional, além do Brasil, destacam-se também a Índia, Nigéria, Paquistão e o México [03].

A importância desses países e a semelhança de sua realidade sócio-econômica seria um estímulo à circunspeção quanto a projetos de abolição de nosso modelo.

Entre nós, a questão é que o dissídio coletivo sobreviveu a duas ditaduras (o Estado Novo e a Ditadura Militar) e a duas redemocratizações (1946 e 1988), evidentemente por servir mais à elite embriagada e viciada na concentração da renda da economia que mais cresceu no século XX.

No caso do poder normativo, vale lembrar uma passagem atribuída a Freud de que o estado proíbe que o cidadão recorra à injustiça, não porque a queira suprimir, mas porque a quer monopolizar.

O poder normativo figurou como um antídoto ou anestésico ao dialético fortificante que a organização sindical passa a cada campanha reivindicatória. Bem ou malsucedido, o pleito organizado, solidifica o legítimo representante dos trabalhadores.

Não acreditamos na súbita consagração do dissídio coletivo, operada à undécima hora, como "‘último obstáculo’ contra o processo de transformação de normas de ordem pública em normas dispositivas coletivamente" ou o santuário da vocação do sindicato para a defesa da categoria, alavancado constitucionalmente, como um gravame ilegítimo no interdito ao dissídio coletivo [04].

O relatório de danos históricos não nos permite "confundir algumas árvores com a floresta" e, em boa hora, os requisitos criados pela EC 45/2004 devem "dar o beijo da morte" no poder normativo.


2No Palácio das Competências Perdidas e das Instituições Fortalecidas

A nova redação dada ao art. 114, da Constituição, com seus §§, embutiu a cláusula-requisito do "comum acordo entre as partes" transformando o dissídio coletivo em juízo arbitral, na visão de Ives Gandra da Silva Martins Filho [05].

Wilson Ramos Filho [06] destaca o fortalecimento da negociação coletiva, na medida em que "verdadeiramente apenas as próprias partes, doravante, serão detentoras do Poder Normativo (a JT só terá poder normativo na hipótese do § 3º do art. 114...)", aniquilando-se inclusive "a possibilidade do empregador ajuizar unilateralmente dissídio coletivo visando declaração de abusividade de greve".

Para essa declaração de abusividade, Ives Gandra Martins Filho [07] destaca que o MPT tornou-se o dominus litis exclusivo desse dissídio coletivo de natureza jurídica, condicionada (como consta da letra da norma) à (i) atividade essencial e (ii) possibilidade de lesão ao interesse público.

Conclui-se que, com essa perda de competência da Justiça do Trabalho, houve o fortalecimento das entidades sindicais - como legítimo canal de reivindicações em sociedades democráticas.


3Absenteísmo Estatal

A proposta exegética da EC nº 45/2004 que se propõe não significa complacência com a debandada do Estado nas relações conflituosas. Também não abençoa a profanação dos multi-dimensionais escopos da jurisdição, nos sentidos "sociais (pacificação com justiça, educação), políticos (liberdade, participação, afirmação da autoridade do Estado e do seu ordenamento) e jurídico (atuação da vontade concreta da lei)" [08].

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Todavia, agora, o Estado brasileiro restringiu o poder normativo e reconheceu, preponderantemente, aos agentes capazes de efetivamente restabelecer a cláusula do dever social de paz, o indistinto uso de garantias e liberdades constitucionais.

Por outro lado, a pensar-se que o Estado não se deveria manifestar, constatada lesão a direito, a interpretação importaria colisão de princípios, cujo impacto é insustentável com o norte do art. 5º, inciso XXXV, da Constituição, que proíbe exclusão da "apreciação do Poder Judiciário (a) lesão ou ameaça a direito".


4.A Obrigação de Oferecer Tutela Jurisdicional

Sobre o princípio da inafastabilidade da jurisdição, Júlio Ricardo de Paula do Amaral, a partir das lições de Manoel Antônio Teixeira Filho [09] realça suas "profundas raízes históricas e representa uma espécie de contrapartida estatal ao veto à realização, pelos indivíduos, de justiça por mãos próprias" (proibido pelo art. 345, do Código Penal) e "uma pilastra de sustentação do Estado de Direito". O processo é o meio pelo qual o direito de ação se materializa como única via legítima de "aplicação do direito a casos ocorrentes, por obra dos órgãos jurisdicionais".

Todavia, a questão examinada propõe uma acepção de jurisdição contemporânea, que transcende os limites arcaicos da simples aplicação da vontade da lei no caso concreto.

Essa adequada acepção é de Marinoni que supera o pífio protagonismo do juiz como mero declarante do direito ou criador da norma individual, toldado por uma leitura radicalmente positivista do princípio da legalidade. A regência constitucional projeta a legislação como expressão concreta dos direitos e garantias fundamentais e à jurisdição toca o papel de suprir e adaptar o texto legal às novidades do tempo e do contexto, tutelando e impedindo a inconstitucionalidade material derivada do não adensamento desses princípios e garantias.

Esse novo enredo não concede salvo-conduto à criação do direito (como o que ocorre a-tipicamente no caso do poder normativo), muito embora a essa tarefa concretizadora não tenha pouco de inovatória, mormente no caso da tutela de direitos fundamentais colidentes. Cabe ao juiz levar em conta todos os princípios envolvidos, "elegendo um deles, sem que isso signifique, todavia, identificá-lo como ‘válido’" [10].

Seguindo as pegadas de Marinoni, a tarefa radical cometida ao juiz é a tutela do direito material dentro da moldura dos textos legais e constitucionais, (i) seguindo os limites do devido processo, (ii) buscando o regramento da lei e da Constituição, (iii) dando sentido ao caso, (iv) definindo as necessidades concretas reveladas no caso concreto e (v) tutelando com efetividade o direito material, inclusive com os meios de execução necessários.

No caso de soluções deficitárias derivadas de uma lógica literal ou meramente subsuntiva, a missão pode ter duas fases. Primeiro, "o juiz tem o dever de encontrar na legislação processual o procedimento e a técnica idônea à efetiva tutela do direito material", eventualmente suprindo omissões inviabilizadoras. Segundo, dado o maior potencial de subjetividade derivada dessa lógica de textura mais aberta e dúctil, cabe-lhe maior preocupação motivadora, submetendo-se a um rigoroso dever de demonstração argumentativa, convincente e racional de que a sua decisão é a melhor possível. [11]


5.Um Enfoque não Dimensional

Projetada essa acepção ao nosso tema, a eliminação das múltiplas possibilidades de oferecimento de dissídio coletivo sem quaisquer limites e que fazem rarear sobremaneira as possibilidades fáticas, não proíbe a via estandartizada de acesso jurisdicional.

Todavia, não se trata apenas de convalidar o requisito do comum acordo para o ajuizamento de uma ação como o dissídio coletivo. Esse perfil já foi intensamente ventilado na doutrina pátria, inclusive quando se tratou do requisito da submissão de demanda às comissões sindicais de conciliação prévia, do art. 625-D, da CLT.

Vale o apanhando realizado por Sérgio Pinto Martins [12], que alude à adesão de Ada Pelegrini Grinover e de Kazuo Watanabe à tese de sua constitucionalidade, sem violação ao art. 5º., inc. XXXV, "pois ''o direito de ação não é absoluto, sujeitando-se a condições (as condições da ação —- rectius: pressuposto processual), a serem estabelecidas pelo legislador'',.. . não ficando mutilada a garantia constitucional do direito ao processo."

A essa conclusão unidimensional já chegou a jurisprudência, escorada na natureza do provimento normativo que não é a mesmo do "ato jurisdicional, apesar de formalmente expressa através de sentença normativa, mas sim legislativa ‘strictu sensu’, mediante a criação de regras aplicáveis à determinada coletividade no campo sócio econômico." [13]

Por ora, esse posicionamento está consolidado, enquanto o STF não profere julgamento na ADI 3392, na qual se pretende a declaração da inconstitucionalidade da EC 45/2005 quanto ao dissídio coletivo. A demora no exame da própria liminar afiança a constitucionalidade da norma.


6.Restrição ao Poder Normativo Sem Emasculação

O realce que projetamos é um pouco mais refinado. A par de limitar o campo do poder normativo, não se abona omissão do estado em oferecer às partes uma solução justa para uma situação conflitiva.

Assim, ratificamos: banido o dissídio coletivo, com as suas múltiplas deficiências, a via ordinária não fica interditada.

Inclusive, nada obsta, dada a natureza ampla que se atribui à atividade jurisdicional, que a tutela ofertada seja a mais completa possível, detalhando todos os aspectos necessários para a efetiva pacificação com justiça do caso concreto.

Para essa finalidade, pode-se pensar em provimentos tais como a declaração de abuso de direito — tanto do patronato, como dos trabalhadores no campo de negociações coletivas—, edição regras transitórias para reger relações entre coletividades até o suprimento definitivo pela negociação coletiva, a declaração da amplitude do exercício de direito de greve no caso concreto (ainda que sujeito a restrições político-ideológicas derivadas), a fixação da proporção de atividade empresarial relevante a ser mantida em caso de paralisações, etc.


7Ajuste de Todas as Premissas à Guisa de Subsunção

Primeiro, destacamos que o antigo poder normativo foi, senão banido, ao menos inibido, cabendo apenas nos dois casos exclusivíssimos antes referidos.

Segundo, a assertiva anterior não implica inconstitucionalidade por violação ao princípio da inafastabilidade da jurisdição do art. 5º, inc. XXXV, da Constituição.

Terceiro, o estado não tem permissão constitucional para recusar-se a oferecer tutela jurisdicional efetiva, adequada e tempestiva, que constitui direito fundamental do cidadão [14].

"Ergo" (se corretas todas essas premissas), o direito à jurisdição e o suprimento de demandas legítimas no campo anteriormente abrangido pelo velho dissídio coletivo aciona os outros meios disponíveis para a tutela jurisdicional.


Notas

01 A reforma trabalhista "gattopardesca". Reforma Trabalhista e Sindical: O Direito do Trabalho em Perspectiva. Estudos em homenagem a Edésio Franco Passos. São Paulo: LTr, 2004, p. 31.

02 Ver French, J. D. Afogados em leis. A CLT e a cultura política dos trabalhadores brasileiros. São Paulo: Editora Perseu Abramo, 2001).

03 Conciliación y arbitraje en los conflitos colectivos de trabajo. Revista da OIT, Genebra, 2ª. Edição, 1987, págs. 175 a 180.

04 Viana, Márcio Túlio. A nova competência, as lides sindicais e o anteanteprojeto de reforma. Disponível em http://www.amatra5.org.br/artigos/artigos25_05.php

05 A Reforma do Poder Judiciário e seus desdobramentos na Justiça do Trabalho. Revista LTr. 69-01/31 (jan.-2005).

06 Direito Coletivo e Sindical na Reforma do Judiciário. Apud Direito coletivo do trabalho depois da ED 45/2004. Curitiba: Genesis, 2005, pp. 87-111.

07Idem.

08 Dinamarco. C. R. A Instrumentalidade do processo. São Paulo. RT, 1987.

09 AMARAL, Júlio Ricardo de Paula. Princípios de processo civil na Constituição Federal. Jus Navigandi, Teresina, a. 4, n. 46, out. 2000. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/771>. Acesso em: 16 set. 2005.

10. Na clássica passagem de Dworkin, (In Taking Ritghts Seriously, apud BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 7ª ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 254).

11 MARINONI, Luiz Guilherme. A jurisdição no Estado constitucional. Jus Navigandi, Teresina, a. 9, n. 635, 4 abr. 2005. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/6550>. Acesso em: 16 set. 2005.

12 Citado no parecer elaborado pela Procuradoria da República opinando pela rejeição ao pedido de declaração de inconstitucionalidade do dispositivo na ADI 3392, que tramita no STF, ainda sem exame sequer liminar.

13 Acórdão proferido nos autos 32001-2005-909-09-00-8, publicado em 31 de março de 2006, relatora a Juíza Rosalie M. B. Batista, ratificado na mesma linha nos autos 16007-2005-909-09-00-8, relator o Juiz Arion Mazurkevic.

14 MARINONI, Luis Guilherme. Simulação e prova. Disponível na Internet: <http://www.mundojuridico.adv.br>.

Sobre o autor
Célio Horst Waldraff

juiz do Trabalho em Curitiba (PR)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

WALDRAFF, Célio Horst. Inafastabilidade da jurisdição e a inibição do dissídio coletivo na Emenda Constitucional nº 45/2004. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1056, 23 mai. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8374. Acesso em: 22 nov. 2024.

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