3 O direito adquirido na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal
3.1 Considerações iniciais
Apesar de todo o esforço empreendido pela doutrina brasileira, percebe-se que, diante do caso concreto, o direito adquirido sempre foi aquele definido pelo Supremo Tribunal Federal - STF, mesmo, às vezes, em total confronto com os dispositivos legais e constitucionais e com o posicionamento doutrinário. [21]
Logo, a melhor forma de se compreender o direito adquirido é verificar o entendimento do instituto consagrado no STF, por meio da análise de sua jurisprudência no tocante a esse assunto.
Julgamentos diversos foram e ainda hoje são realizados pela Corte Suprema, manifestando-se esse órgão acerca da existência ou não de direito adquirido a regime jurídico, à concessão de aposentadoria, à irredutibilidade de vencimentos e salários, à estabilidade funcional, a situações constituídas sob império de uma ou outra lei e etc.
Julgamento relevantíssimo e polêmico foi o das Ações Diretas de Inconstitucionalidade nºs 3105 e 3128, que pediam a declaração de desconformidade com a constituição do art. 4º, da Emenda Constitucional nº 41, de 19 de dezembro de 2003 [22], alegando que esse dispositivo afrontava o direito adquirido dos inativos à não incidência da contribuição previdenciária.
O STF, em decisão prolatada no dia 18 de agosto de 2004, por sete votos a quatro, considerou constitucional a cobrança.
Assim, permanece a regra do art. 4º da aludida emenda constitucional, incidindo a contribuição previdenciária sobre a parcela dos proventos e pensões de todos os inativos e pensionistas que exceder o teto estabelecido no art. 5º da EC 41/03, fixado em R$ 2.400,00 (dois mil e quatrocentos reais), devendo esse valor ser atualizado pelos mesmos índices aplicados aos benefícios do Regime Geral de Previdência Social.
Como cabia esperar, tal decisão do Pretório Excelso espalhou a indignação a muitas mentes jurídicas, dando ensejo a um questionamento inarredável: teria o Supremo Tribunal Federal alterado o entendimento que tinha acerca do direito adquirido?
Cumpre proceder, portanto, à análise do tratamento conferido pelo STF, ao direito adquirido dos inativos à incidência de contribuição previdenciária para, posteriormente, constatar-se se aquela Corte de Justiça, no julgamento das ADIns 3105 e 3128, alterou o seu entendimento acerca do direito adquirido.
3.2 O STF e o direito adquirido dos inativos à não incidência de contribuição previdenciária
Pode-se afirmar que a recente posição do Supremo Tribunal Federal acerca da inexistência de direito adquirido dos inativos à não incidência de contribuição previdenciária é bastante clara e atravessa três fases distintas.
Na primeira fase, sob a vigência da Emenda Constitucional nº 3, de 17.03.1993, o STF entendia ser legítima a referida cobrança, com base no que dispunha o § 6º do art. 40 (com a redação dada pela EC nº 3/93):
Art. 40. (...)
§ 6º As aposentadorias e pensões dos servidores públicos federais serão custeadas com recursos provenientes da União e das contribuições dos servidores, na forma da lei. (grifo nosso)
Em razão de o citado dispositivo constitucional não ter restringido a incidência das contribuições previdenciárias apenas aos servidores ativos, várias leis estaduais instituíram a cobrança de tais contribuições também sobre os inativos.
Levada essa questão ao STF, através da ADIn 1441-DF [23] e 1430-BA [24], a Corte Constitucional entendeu que a expressão "servidores", empregada pelo artigo 40, § 6º, da Constituição de 1988, incluía também os inativos, sendo, portanto, válida a cobrança.
Assim, conclui-se que, nesta primeira fase, o STF não considerou que haveria um direito adquirido dos inativos à não incidência da contribuição, pois, se assim fosse, nem a emenda constitucional poderia tê-la autorizado e nem as leis estaduais poderiam tê-la instituído e todas elas teriam sido declaradas inconstitucionais pelo STF, o que, de fato, não ocorreu.
Na segunda fase, sob a vigência da Emenda Constitucional nº 20/98, o STF entendeu que a nova redação dada ao art. 40 e seus parágrafos deixou de admitir a cobrança sobre os inativos, sendo, portanto, inconstitucional, qualquer lei que instituísse cobranças previdenciárias neste sentido.
A Emenda Constitucional nº 20/98 alterou diversos dispositivos constitucionais relevantes para o tema. O caput do artigo 40 manteve o princípio contributivo do sistema previdenciário, mas fez referência apenas a "servidores titulares de cargos efetivos", abrangendo apenas os servidores em atividade.
O § 6º do art. 40 recebeu redação inteiramente diversa da anterior, sem qualquer referência específica à possibilidade de cobrança de contribuição dos servidores.
Por fim, o § 12, do artigo 40, passou a determinar a aplicação subsidiária do regime geral de previdência social aos servidores, sendo que o artigo 195, II, da Constituição veda a incidência de contribuição previdenciária sobre aposentadoria e pensão concedidas pelo Regime Geral de Previdência Social.
Examinem-se as alterações feitas pela EC/98 no art. 40 e nos parágrafos citados:
"Art. 40. Aos servidores titulares de cargos efetivos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, incluídas suas autarquias e fundações, é assegurado regime de previdência de caráter contributivo, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial e o disposto neste artigo.
(...)
§ 6º Ressalvadas as aposentadorias decorrentes dos cargos acumuláveis na forma desta Constituição, é vedada a percepção de mais de uma aposentadoria à conta do regime de previdência prevista neste artigo.
(...)
§ 12 Além do disposto neste artigo, o regime de previdência dos servidores públicos titulares de cargo efetivo observará, no que couber, os requisitos e critérios fixados para o regime geral de previdência social."
Face a todas essas modificações, o STF entendeu que o novo texto constitucional deixou de admitir a cobrança sobre os inativos. Assim, declarou ser inconstitucional a Lei Federal nº 9.783/99, que instituía a contribuição sobre inativos no âmbito do serviço público federal, ao julgar a ADIn nº 2.010-2/DF [25].
O exame da referida ADIn permite que se observe que a inconstitucionalidade não foi declarada com fundamento na violação a direito adquirido dos inativos à não incidência de contribuição previdenciária, mas sim, especificamente, em razão da modificação constitucional trazida pela EC. nº. 20/98, que impedia a cobrança.
O renomado jurista Luís Roberto Barroso, em estudo publicado em homenagem ao professor Adilson Abreu Dallari, muito bem descreveu as duas fases em atravessou o Supremo Tribunal Federal, no tocante ao posicionamento desta Corte sobre a constitucionalidade da incidência de contribuição previdenciária sobre os servidores inativos. [26]
No entanto, em razão de o referido estudo ter sido concluído e publicado antes do pronunciamento do STF sobre a constitucionalidade do art. 4º da Emenda Constitucional nº. 41/2003, não se pôde, por ora, vislumbrar uma terceira fase, à qual se refere o tópico seguinte deste trabalho.
3.3 ADIn 3105 e ADIn 3128: a não alteração do entendimento do STF sobre o direito adquirido
Com o advento da Emenda Constitucional nº. 41/2003, e com o julgamento das ADIns 3105 e 3128, inaugura-se a terceira fase no tocante à posição do STF sobre a constitucionalidade da incidência da contribuição previdenciária sobre os servidores inativos.
A Associação Nacional dos Membros do Ministério Público- CONAMP e a Associação Nacional dos Procuradores da República- ANPR, ajuizaram no STF Ações Diretas de Inconstitucionalidade, com pedido de liminar –– respectivamente, ADIn 3105 e ADIn 3128 ––, pedindo, ambas, a declaração da inconstitucionalidade do art. 4º da Emenda Constitucional nº. 41, de 19 de dezembro de 2003.
Alegaram que a norma impugnada contrariava, dentre outros dispositivos constitucionais, ao disposto no art. 5º, inciso XXXVI da CF, uma vez que houve afronta ao direito adquirido dos servidores inativos à não incidência da contribuição previdenciária. Argumentaram que os servidores públicos aposentados e aqueles que reuniam os requisitos necessários à inativação, antes da promulgação da Emenda Constitucional nº. 41/2003, estavam submetidos, quando das suas aposentadorias ou do momento em que poderiam se aposentar, a regime previdenciário que não tinha caráter contributivo ou solidário (antes da Emenda Constitucional nº. 20, de 15 de dezembro de 1998), ou apenas tinha caráter contributivo (depois dessa mesma Emenda Constitucional nº. 20, de 1998). Assim, em decorrência de tais circunstâncias, tinham eles incorporado a seu patrimônio o direito de não contribuírem para a Previdência Social. [27]
Os ministros Eros Grau, Gilmar Mendes, Carlos Velloso, Joaquim Barbosa, Sepúlveda Pertence e Nelson Jobim, seguindo o voto do ministro Cezar Peluso, votaram pela cobrança da contribuição. Já a ministra-relatora Ellen Gracie e os ministros Carlos Ayres Britto, Marco Aurélio e Celso de Mello,votaram contra a cobrança. [28]
Em seu voto, o ministrou Cezar Peluso entendeu que a incidência da contribuição previdenciária sobre os inativos, permitida pelo art. 4º da Emenda Constitucional 41/2003, não violou o princípio constitucional da proteção ao direito adquirido. [29]
Partindo do pressuposto de que a natureza jurídica das contribuições previdenciárias é de tributo, argumentou-se que não poderia haver direito adquirido à não tributação sobre valores recebidos a título de proventos da aposentadoria, pois se assim fosse, haveria imunidade tributária absoluta aos inativos, sem previsão constitucional.
A análise da decisão do STF, bem como de alguns de seus julgados pretéritos, citados no item anterior, conduz à conclusão de que aquela Corte Constitucional jamais entendeu ser inconstitucional a incidência de contribuição previdenciária sobre os proventos dos inativos em razão de violação ao direito adquirido. Sendo assim, pode-se afirmar que o STF não alterou o seu entendimento sobre o direito adquirido.
Para que se possa fazer essa afirmação, parte-se do pressuposto de que a aceitação da existência de direito adquirido dos inativos à não incidência de contribuição previdenciária envolve a afirmação da existência de direito adquirido a não sofrer tributação e da existência de direito adquirido a regime jurídico.
No entanto, no direito constitucional brasileiro inexiste direito adquirido a não ser tributado, nem direito adquirido à permanência de determinado regime jurídico, tendo o STF sempre se manifestado nesse sentido.
No que concerne à inexistência de direito adquirido à não tributação, cumpre afirmar, inicialmente, que a contribuição previdenciária, como modalidade de contribuição para a seguridade social, tem natureza inequívoca de tributo, consoante entendimento do próprio STF. [30]
Assim, tirante às hipóteses constitucionais de imunidade tributária, nenhum contribuinte tem o direito subjetivo de não vir a ser tributado no futuro ou de não vir a ter a sua tributação majorada. Reconhecer direito adquirido aos inativos de não sofrerem tributação importaria instituir uma imunidade tributária sem previsão constitucional.
O julgamento das ADIns 3105 e 3128 não representou a primeira vez que o STF entendeu inexistir direito adquirido à não tributação. Essa questão já foi enfrentada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADIn 2010-2/DF, comentado anteriormente, em que se discutia a constitucionalidade de dispositivo legal que majorava a contribuição de seguridade social dos servidores ativos.
A linha de argumentação exposta, adotada pelo Supremo Tribunal Federal, significa que, segundo a Corte Política, o contribuinte não tem o direito de opor ao Poder Público pretensão visando a obstar o aumento de tributo. [31]
Quanto à inexistência de direito adquirido a regime jurídico, são também pertinentes algumas considerações.
Primeiramente, deve-se esclarecer que a afirmação de que o inativo não pode ser chamado a contribuir, por não ser mais servidor e por ter cessado sua relação com a Administração Pública, não é tecnicamente correta.
O ato válido da aposentadoria constitui um ato jurídico perfeito. Assim, uma vez praticado, já não poderá mais ser desconstituído nem ter os seus efeitos suprimidos por ato normativo novo. Da mesma forma ocorre com os direitos constituídos pelo aposentado. Eles não poderão ser retirados do patrimônio jurídico do servidor.
No entanto, a relação do servidor e do pensionista com a Administração Pública prossegue para diversos fins.
Os inativos têm o direito de revisão de proventos e pensões na mesma proporção e na mesma data, sempre que se modificar a remuneração dos servidores em atividade. Ademais, os inativos têm estendidos a eles quaisquer benefícios e vantagens posteriormente concedidos aos servidores em atividade, inclusive quando decorrentes da transformação ou reclassificação do cargo ou função em que se deu a aposentadoria ou que serviu de referência para a concessão de pensão.
Vale também destacar que o regime jurídico dos aposentados e pensionistas não é, a rigor, previdenciário, mas administrativo. O valor dos proventos e pensões no regime próprio é definido por um ato do Estado que, mediante lei, unilateralmente o fixa. Logo, a aposentadoria do servidor público, no regime que vigora hoje, não é uma contraprestação previdenciária, mas, sim, a continuidade da situação de ativo.
Assim, se os proventos e pensões não são reajustados para preservação do valor real (CF, art. 201, § 4º), mas são revistas em paridade com os ativos, acrescidos de benefícios e vantagens posteriormente a este aplicáveis, não se pode dizer que a relação dos inativos com a administração pública cessou.
Destarte, se a relação persiste e surge a necessidade de modificar o regime jurídico de financiamento, não há direito adquirido a mantê-la perpetuamente inalterada, tendo, inclusive, o Supremo Tribunal Federal já se manifestado outras vezes nesse sentido. [32]
Em remate, tendo a Corte Constitucional pátria sempre entendido que inexiste direito adquirido a não sofrer tributação, bem assim que inexiste direito adquirido a regime jurídico, conclui-se que o STF jamais entendeu haver direito adquirido dos inativos à não incidência de contribuição previdenciária, o que implica dizer que resta inalterado o entendimento do STF sobre o instituto do direito adquirido.