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Questões novas e velhas sobre a morosidade processual

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Agenda 21/05/2006 às 00:00

A culpa pela atual crise vivida por nosso Judiciário não decorre apenas do sistema recursal, mas, maiormente, de outras causas, tais como o reduzido número de serventuários e as precárias condições de trabalho.

1)INTRODUÇÃO

            A morosidade, característica já endêmica do processo civil brasileiro, e questão sobre a qual muitos estudiosos têm-se debruçado [01] - responsável, inclusive, pelas últimas reformas que têm passado o atual modelo vigorante -, evidencia-se pela excessiva e condenável demora do Estado na entrega da prestação jurisdicional aos administrados, contingência esta que, de há muito, já não é novidade para mais ninguém e, aliás, data de longo período. [02]

            Não obstante a constatação induvidosa do problema, que salta aos olhos de tão manifesto, pensamos deva ele ser cotejado e enfocado sob ângulo diverso do usualmente efetuado, quando invariavelmente outorga-se a maior parte da culpa por tal situação, ao nosso já combalido e desfigurado Estatuto Adjetivo Civil, que com seu variado e intricado sistema recursal, segundo respeitada doutrina, acabaria por procrastinar a conclusão dos processos e eternizar a solução dos conflitos.

            Contudo, não nos parece serem os recursos, e menos ainda o nosso modelo processual civil, permissa venia, os verdadeiros vilões e grandes responsáveis pela tardança na prestação jurisdicional, a despeito de até hoje virem carregando este pesado e oneroso fardo, quase que solitária e injustamente.


2) QUAL A VERDADEIRA E ATUAL SITUAÇÃO DA NOSSA JUSTIÇA DENTRO DO CONTEXTO MUNDIAL?

            Em recente pesquisa, efetuada em larga escala e de forma bastante aprofundada pelo Banco Mundial, publicada há pouco tempo na Revista Veja, [03] não se chegou a outra conclusão, senão a de que o nosso judiciário realmente encontra-se em situação calamitosa e deplorável.

            Possuímos a 30ª Justiça mais lenta do mundo, segundo referido estudo, que utilizou como critério o tempo de duração gasto em média por um credor para receber uma dívida não paga, e que, no Brasil, consoante restou consubstanciado, leva em média cerca de 380 dias para o efetivo desenlace da controvérsia. [04]


3) ALGUNS MOTIVOS DA DEMORA NA ENTREGA DA PRESTAÇÃO JURISDICIONAL

            Feitas estas colocações iniciais e propedêuticas, passamos agora a elencar, além das já conhecidas e famigeradas mazelas do atual arcabouço judiciário, algumas das demais vicissitudes que, conquanto venham sendo esquecidas e olvidadas pela maioria dos operadores do direito no cotejo do problema, vêm contribuindo com muito maior intensidade e força que o nosso Código de Processo Civil e seus recursos, para o agravamento problema.

            3.1) Da evolução da sociedade

            A sociedade tem evoluído muito e de forma cada vez mais acelerada nos últimos anos e, com ela, no mesmo compasso, também o próprio direito e o Judiciário, sendo estes últimos, em verdade, meros coadjuvantes daquela, consoante preconiza o velho brocardo latino: "ubi societas ibi ius", segundo o qual: onde há sociedade aí está o direito. [05]

            E a razão da perene atualidade da afirmação está, inclusive, em que o direito parece ser sempre caudatário da sociedade enquanto palco de situações em constante mudança. [06]

            Na mesma vereda, também Pontes de Miranda, quando asseverou ser o Direito um dos processos sociais de adaptação, como a Religião, a Moral, a Arte, a Economia, a Política e a Ciência. Diferencia-se dos outros, para o notável jurisconsulto, por suas qualidades específicas, objeto de estudo da Sociologia, que os considera, a todos, como processos, e os submete à observação e à experimentação. [07]

            É dizer, portanto, que o conceito de prestação jurisdicional qualificada e adequada, constantemente vem se modificando ao longo dos tempos, em atenção às exigências da própria sociedade, cuja existência o direito sempre busca proteger e tutelar, ocorrendo agora verdadeira e inconteste "perversão do Estado de direito em Estado Judicial", [08] quando se descobre que o Judiciário existe, e seu uso é extensível a toda população, a qual, com o tempo, maior acesso à informação, e em consonância com o grau de evolução alcançado, dia-a-dia, passa a conhecer cada vez mais as suas prerrogativas e pugnar, bem assim, pela sua observância.

            Destarte, o maior conhecimento do teor de leis e diplomas diversos, somado ao fato de a população passar a exigir-lhes a aplicação, como jamais se tinha tido notícia (de maneira inopinada e muito rapidamente), acabou por contribuir, como não poderia ser diferente, para assoberbar e atravancar ainda mais o nosso judiciário, que não estava e ainda está longe de estar preparado estruturalmente para tamanha demanda e influxo de novos processos, de cidadãos que passam a exigir respeito aos seus direitos e acabam descobrindo, conseguintemente, um sistema arcaico, excessivamente burocrático e arraigado em premissas e formalismos incompossíveis com o hodierno ideal de justiça.

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            3.2) Da estrutura

            A morosidade, vale recordar, é defendida por muitos como necessária para um julgamento justo, e resultado de um processo conduzido sem pressa ou açodamento, notadamente em virtude das mazelas que assolam o atual arquétipo Judiciário, que além não possuir pessoal adequadamente treinado e em número suficiente para imprimir a esperada celeridade do procedimento judicial, também carece de estrutura física consentânea e apropriada para alcançar tal desideratum.

            3.2.1) Da precária estrutura física

            Quanto ao aspecto físico, as críticas convergem, basicamente, para as precárias instalações dos fóruns; falta de espaço (chegando por vezes, um mesmo cartório, a acumular até três ou quatro atribuições diferentes, como, v.g., vara da infância e juventude, juizados especiais cíveis/criminais, e vara criminal); a falta de equipamentos eletrônicos; o aprimoramento e desenvolvimento daqueles que já fazem parte da atual estrutura, sobretudo na parte relativa aos computadores e impressoras, os quais, como é cediço, influem diretamente na qualidade e tempo do serviço. [09]

            3.2.2.) Do reduzido número de juízes e demais serventuários da Justiça

            Já no que toca ao aspecto de pessoal, os reclamos são uníssonos, e apontam como uma das principais causas da dilatada prestação jurisdicional, o baixo número de juízes, promotores, e demais serventuários da Justiça, concentrando-se a maior parte das atenções, no irrisório número de magistrados atualmente em atividade no Brasil, [10] quatro vezes inferior ao recomendado pela ONU e ao adotado na Europa e nos demais países desenvolvidos. [11]

            3.3) Do modus operandi dos julgadores

            Com igual razão, faz-se imperioso e justo afiançarmos ser atribuível aos próprios magistrados, boa parcela da culpa pelo assolado e demorado sistema judiciário brasileiro, os quais, em várias oportunidades, apegam-se a formalismos e rigorismos desnecessários e destituídos de qualquer propósito, ceifando e dificultando o acesso ao Judiciário àqueles que realmente necessitam (e com isso provocando mais e mais recursos), por questões puramente formais e de pífia relevância que, ao final, acabam servindo, geralmente, única e simplesmente para a auto-afirmação do magistrado perante os advogados e as partes. [12]

            Não atentam, muitas vezes, para o imensurável poder que possuem em suas mãos e o quão pernicioso este pode ser quando mal aplicado, acabando por molestar de maneira inapagável os direitos de uma das partes,em função de lapsos, às vezes de iníquo relevo, cometidos pelos demandantes ou até por seus mandatários, que assim como os juízes são seres humanos, e, portanto, podem igualmente errar ou olvidar o que vaticina a lei.

            Nesse aspecto, é válido e bastante pertinente o comentário do prof. Dalmo de Abreu Dallari, quando profetiza aos aspirantes a ‘pretores’, que não basta verificar se o candidato tem bons conhecimentos técnicos-jurídicos, pois o juiz que oferecer apenas isso, ainda que em alto grau, não conseguirá ser mais do que um eficiente burocrata. É indispensável, para a boa seleção e, conseqüentemente, para que se tenha uma boa magistratura, sejam selecionadas pessoas que, a par de seus conhecimentos jurídicos, demonstrem ter consciência de que os casos submetidos a sua decisão implicam interesses de seres humanos. O candidato a juiz deverá demonstrar condições para avaliar com independência, equilíbrio, objetividade e atenção aos aspectos humanos e sociais, as circunstâncias de um processo judicial, tratando com igual respeito a todos os interessados e procurando, com firmeza e serenidade, a realização da justiça. [13]

            Não se quer aqui afirmar que o juiz não pode errar. Ao revés, como ser humano falível que é, ele inarredavelmente poderá (e irá) equivocar-se, [14] como não raras vezes o faz. Toda a sorte de desacertos acontece no dia-a-dia forense, uns mais inusitados, outros bastante corriqueiros, e para constatá-los não é preciso muito, basta advogar, desimportando se bem ou mal, muito ou pouco, basta atuar. E a justificativa é sempre a mesma e enfadonha excessiva carga de trabalho.

            Deveras, faz-se oportuno clarificar que parte de tais erros são sim fruto do grande volume de trabalho, entretanto, registre-se aqui, que muitos decorrem de puro açodamento, negligência e prepotência [15] de alguns magistrados, que julgam mal e de maneira desordenada, provocando, com isso, inevitável aumento no número de recursos e incidentes processuais, movimentando sobremaneira a já canhestra e confusa máquina judiciária e, por óbvio, alongando ainda mais o desenlace da contenda.

            3.4) O papel dos demais poderes (legislativo e executivo)

            Sem embargo da fração de culpa dos fatores até aqui enumerados, outra considerável influência e contribuição (senão a maior e, por coincidência, a mais esquecida) para a morosidade do Judiciário, deve com maior razão ser creditada, bem assim, aos Poderes Legislativo e Executivo, [16] que muito tem contribuído para a atual crise atravessada, e não têm feito jus ao seu relevante papel na manutenção do estado democrático de direito. [17]

            3.4.1) O poder legislativo – a falta de qualidade e adequação das leis

            Com relação ao primeiro, a quem incumbe precipuamente a criação das leis e a fiscalização dos atos do executivo, [18] ocioso dizer que se tais funções estivessem realmente sendo cumpridas a contento pelos seus membros, com certeza facilitar-se-ia sobreposse o trabalho do Judiciário, além de diminuir de maneira substancial o volume deste labor.

            E tal entendimento se justifica em razão da péssima qualidade das leis criadas por essa casa, de uma maneira geral, tanto no sentido semântico como no aspecto da conveniência e adequação das normas introduzidas no ordenamento. Pontue-se, aliás, que tamanhas são as desproporcionalidades, impropriedades, e falta de desvelo em determinados casos, que nem é preciso ser um cientista do direito para notá-las sem maiores dificuldades. [19]

            Nesse particular, observa o Professor Paulo de Barros Carvalho, que a fraca qualidade do nosso legislativo dá-se, máxime, em razão de sua grande heterogeneidade, o qual malgrado albergue e represente inúmeras classes e segmentos de nossa sociedade, não goza de condições técnicas para utilizar-se de uma linguagem mais acurada e precisa, atributo peculiar única e simplesmente aos cientistas do direito. [20]

            Somado a isso, temos a função fiscalizatória, onde a exemplo da primeira, a casa legislativa apresenta medíocre e parcial desempenho, aprovando e endossando, habitualmente, arbitrariedades e atrocidades perpetradas pelo Poder Executivo, a troco de "barganhas" e favorecimentos políticos, laborando em sentido diametralmente oposto ao sonhado por Montesquieu ao desenvolver a tripartição dos poderes e o conhecido sistema de freios e contrapesos (checks and balances), onde um poder deve fiscalizar o outro. [21]

            Desta feita, emerge inexorável que se o Poder Legiferante bem e fielmente exercesse o mandato outorgado pelo povo brasileiro, inegavelmente forneceria ainda mais subsídios para a rapidez do procedimento judicial, economizando e evitando, de forma indubitável, a utilização deste para a discussão e ataque de vícios ou impropriedades de normas, que tranqüilamente poderiam ter sido sanados e evitados em seu próprio nascedouro.

            Para testificar o asseverado, v.g., podemos mencionar as inúmeras leis aprovadas indiscriminadamente e sem qualquer critério por este Poder. Algumas com péssima qualidade redacional (gerando dúvida e ambigüidade na interpretação); outras de cunho nitidamente político e eleitoreiro (gerando consternação e irresignação na população); isto sem falar naquelas com ambas as máculas (o que não é nada inusitado!); entre outros vícios, que pedimos vênia para não enumerar aqui, para não fugirmos do objeto deste trabalho.

            Oportuno elencarmos, outrossim, no rol dos atos ininteligíveis e de conveniência duvidosa advindos do Poder Legislativo (atribuindo-se-lhe especial destaque), a correntia e contraditória majoração dos salários dos membros desta casa, enquanto a imensa maioria dos demais servidores públicos chega a acumular décadas sem qualquer reajuste, e milhares de crianças morrem de fome todos os dias no país.

            3.4.2) O poder executivo – o maior vilão

            Igualmente, cumpre apontarmos o não menos relevante papel do Poder Executivo, [22] que da forma como ultimamente tem pautado seu agir, a nosso ver, desponta como forte candidato a encabeçar o primeiro lugar no ápice da pirâmide dos responsáveis pela demora na entrega da prestação jurisdicional.

            E levantamos essa bandeira, pois a despeito de tanto criticar e se mostrar "assisadamente preocupado" com a crise vivida por nossa Justiça, o Executivo é quem mais a movimenta e a aflige, sem qualquer sombra de dúvida, respondendo por aproximadamente 80% das demandas judiciais atualmente em trâmite, como autor ou réu. [23]

            Aliás, inadmissível e manifestamente antitético, para dizer o mínimo, é o fato de que quem tanto tece toda ordem de censuras e objurgações a certo segmento da própria administração estatal - mostrando-se, inclusive, aos olhos da mídia, muito preocupado com o mesmo -, seja o maior responsável pelo colapso atravessado por este, afigurando-se no mais contumaz litigante judicial (que de toda e qualquer decisão recorre), com larga vantagem sobre quaisquer outros.

            Age a todo tempo desdenhando e fazendo pouco de princípios basilares e prerrogativas mínimas dos administrados, seja promulgando e sancionando leis inconstitucionais, seja governando por meio de medidas provisórias (e diga-se de passagem, abusando indiscriminadamente de tal instrumento), [24] seja ignorando e abafando as denúncias de corrupção em suas próprias ramificações, entre outras incontáveis arbitrariedades.

            Tudo isto, além de provocar irresignação e revolta, molesta flagrantemente os direitos dos administrados, que como última alternativa, tem no Poder Judiciário sua maior esperança.

            E nem precisamos ir muito longe para se constatar a veracidade de tal assertiva e o reflexo de tais atitudes no tempo de entrega da prestação jurisdicional, podendo-se imaginar, por exemplo, quantas ações judiciais provocaram aquela famigerada e malfadada manobra do Governo Collor, confiscando o dinheiro de todos os correntistas brasileiros.

            Podemos enumerar também, à guisa de exemplo, medida provisória muito mais recente e editada já na vigência do Governo Lula, que determinava com admirável singeleza e simplicidade a extinção de todos os bingos em funcionamento ao longo de todo o país, a qual, releva pontuar, sob o prisma da legalidade, afigurava-se em verdadeira heresia jurídica, razão por que, acertadamente, não foi convertida em lei por nosso congresso nacional, tendo perdido sua eficácia, após transcorrido o lapso de 120 dias previsto no art. 62 da texto constitucional.

            Ademais, quem não se recorda do próprio apagão, quando todos fomos coagidos a economizar energia, sob pena de multa e corte no fornecimento, em função de negligência e descura do governo federal, que além de não tomar as precauções cabíveis e de sua responsabilidade para evitar esse tipo de problemas, ainda imputou o ônus de tal desídia, uma vez mais, ao já sacrificado povo brasileiro.

            No que pertine ao apagão, assim como a MP dos bingos e o incidente ocorrido no Plano Collor, ocioso dizer terem provocado no já fatigado e desestruturado Poder Judiciário, nova avalanche de demandas, discutindo e fulminando a legalidade de mais estes atos manifestamente abusivos do Poder Público.

            3.5) Dos advogados

            Outro fato digno de relato, e que inegavelmente também contribui com a crise do judiciário, é que os causídicos, no exercício de seu ofício, nem sempre resistem à tentação de usar todos os meios ao seu alcance, lícitos ou antijurídicos que sejam, para procrastinar o desfecho do processo. Entre eles, sem grande esforço, é possível enumerar alguns: os autos retirados deixam de voltar a cartório no prazo legal; criam-se incidentes processuais infundados; apresentam-se documentos fora da oportunidade própria; interpõem-se recursos, cabíveis ou incabíveis, contra todas as decisões desfavoráveis, por menos razão que se tenha para impugná-las; e assim por diante. [25] Tudo isto, obviamente, acaba concorrendo para a protelação na resolução da controvérsia.

            3.6) Da pífia contribuição dos órgãos representantes de classe – promotoria, procon, partidos políticos, etc

            E, por derradeiro, contingência que também não pode passar desapercebida e, inegavelmente, influi na lentidão do atual sistema, é a fraca e modesta contribuição dos órgãos representantes de classe existentes no sistema pátrio, tais como o ministério público, procon, partidos políticos, entre outros, que poderiam ter atuação muito mais intensa e ativa dentro do contexto nacional, e, com isso, fatalmente também contribuiriam para amainar a caótica situação atual, como por exemplo, propondo as competentes ações coletivas nas hipóteses cabíveis, as quais, como é cediço, albergam um vasto número de pessoas e, portanto, evitam que cada uma dessas tenha de ingressar com ação autônoma com idêntico objeto discutindo, não raras vezes, a mesma questão.

Sobre o autor
Lucas Rister de Sousa Lima

advogado em Araçatuba (SP), pós-graduando em Direito Processual Civil pela PUC/SP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Lucas Rister Sousa. Questões novas e velhas sobre a morosidade processual. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1054, 21 mai. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8428. Acesso em: 22 nov. 2024.

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