SUMÁRIO: Notas introdutórias – 1. A intensidade dos conflitos e a técnica do processo 2. A fase autonomista do processo: brevíssimas considerações – 3. Etapa moderna do Processo - 4. Processo como instrumento da justiça – 5. Conclusão - 6.Bibliografia
Notas introdutórias
A Constituição Federal do Brasil deixou claro, no íntimo do seu artigo 3º, o desejo de construir uma sociedade livre, justa, solidária e igualitária, diminuindo a diferença entre os homens e libertando-os do preconceito.
Certamente não desejou o legislador outro reflexo, senão o desenvolvimento social, a pacificação dos conflitos e o bem geral da sociedade.
Os princípios e as garantias estão sacramentados na Carta Federal, cumprindo, agora, ao Estado, a função de prestar a devida proteção jurídica aos direitos tutelados.
E esta proteção jurídica não pode significar simples promessa de proteção. Não basta ao Estado oferecer direitos na forma simplesmente positivada.
A oferta deve ser real, concreta e capaz de operar efeitos e de interferir diretamente na vida das pessoas. Se assim não for, não haverá proteção de direitos.
Tudo o que for desejável de ser perseguido e merecedor de ser obtido (a partir da norma substancial) deve ser realizado, cumprindo ao Estado o encargo de oferecer caminhos seguros (direito processual) que levem à concretização deste objetivo.
Ao longo dos anos o direito processual civil ganhou corpo, forma e, sobretudo, autonomia. A complexidade das normas e variedade de caminhos criados pela lei processual fez da técnica e da habilidade a marca desta ciência.
Apesar disto, não pela riqueza da técnica, mas, sobretudo, pela influência que exerce na sociedade, o processo civil hospedou-se entre as mais importantes ciências jurídicas.
O processo é, por si, o meio capaz de tornar real a expectativa criada pelo direito material. É por ele, e tão somente por ele, que o direito substancial pode ser exteriorizado. É pelo processo que o Estado presta justiça ao seu administrado.
É inegável, no entanto, que toda esta riqueza da técnica e valorização exacerbada da habilidade tornou o processo um mecanismo perfeito e impiedoso, que não admite incorreções. Basta um pequeno e único deslize no seu desenrolar para que os litigantes regressem ao exato ponto de onde partiram.
Sua influência é, pois, total no que se refere à aplicação do direito substancial na vida das pessoas. Mesmo fazendo jus ao direito, muitas das vezes, se o processo não estiver perfeito em sua técnica, nada restará expectador da justiça.
O processo, portanto, na mesma razão em que é capaz de transformar a vida das pessoas e modificar as relações entre os grupos de pessoas, também é capaz de impedir que o paciente da justiça efetivamente alcance o direito pleiteado.
E por entendermos que há uma grande força do processo sobre a sociedade, é que este artigo fará, sem objetivos profundos, uma reflexão desta a influência e da necessidade premente de reaproximar o direito processual do direito material.
1. A intensidade dos conflitos e a técnica do processo.
Dados históricos demonstram que a sociedade está em constante alteração.
Não há como negar que o desenvolvimento propicia muitos benefícios e agrega uma série de elementos positivos ao cenário mundial, mas também não se deve perder de vista que todo este avanço causou interferência direta nas relações entre as pessoas, entre as empresas e entre os grupos de pessoas.
Conflitos sociais excepcionais até então imprevistos pelos ordenamentos jurídicos tornaram-se corriqueiros à medida que o desenvolvimento se alastrou pelo mundo moderno.
À ciência jurídica, entretanto, não cabe analisar o desenvolvimento social, mas as conseqüências que dele resultam devem, necessariamente, passar à inteligência do sistema normativo.
Com o avançar dos tempos, aumentam as pretensões do ser humano e, por conseguinte, as respectivas satisfações da vida tornam-se cada vez mais conflituosas, mais difíceis de serem resolvidas sem a intervenção forçada do Estado.
Na nova era social, estendeu-se à titularidade de alguns direitos e elevou-se a quantidade de bens que exigem do sistema uma tutela protetiva.
A multiplicação das relações sociais gerou, neste passo, a multiplicidade de conflitos e a necessidade de aumentarmos o espectro de proteção destes direitos através de instrumentos efetivos e eficazes. Nesta medida, é corrente na doutrina que o processo é muito mais do que um mero instrumento técnico, é, em verdade, um instrumento de justiça.
E sobre esta nossa sociedade, diga-se, de massa, esclarecedor foi o apontamento de JOSÉ RENATO NALINI [01] ao dizer que o direito veio a ser tornar um bem de consumo e que a lei adquiriu natureza descartável, devendo ser adaptada às necessidades atuais.
Na esteira do desenvolvimento social, a ciência jurídica deverá estar pronta para acompanhar as transformações e o surgimento das novas modalidades de crise (direito substancial), gerando mecanismos (direito processual) capazes de oferecer a pacificação destes conflitos sociais.
Isto, sem dúvida, é uma tarefa que deve ser feita com cautela, mas sem embargo da rapidez e agilidade que a necessidade do tempo escasso requer.
E se o próprio homem não chegou à conclusão lógica do seu limite, não há razão para mantermos, no direito, procedimentos que não mais correspondam à necessidade atual. A sociedade clama por soluções rápidas de maneira que os desprotegidos não permaneçam sem o devido e merecido respaldo estatal.
Neste retrato atual, chamado por alguns de fase "pós-moderna", a problemática central da sociedade e dos direitos do homem não é, em tese, o direito substancial, mas a sua própria proteção.
É indispensável, sem dúvida, que os direitos do homem sejam protegidos por normas jurídicas, mas é fundamental, também, que estas normas jurídicas disponham de mecanismos e procedimentos capazes de protegê-las e dar-lhes vida no plano concreto.
Daí a razão do direito processual oferecer garantias que validem o direito substancial, aperfeiçoando continuamente o seu conteúdo procedimental, evitando que certas fórmulas permaneçam no estado original de conservação e absolutamente inócuas aos conflitos sociais.
Os ensinamentos sobre os quais se assenta o direito devem renunciar ao romantismo de sua criação e, definitivamente, voltar os olhos para a caótica realidade judicial. A técnica deverá estar atenta às transformações sociais, gerando meios capazes de se adaptar às mutações sociais.
Revisar conceitos é importante, aplicar novas idéias é fundamental.
2. A fase autonomista do processo: brevíssimas considerações.
Houve um tempo em que o processo foi considerado um mero complemento do Direito Civil, ou seja, um conjunto de formalidades para a aplicação do direito privado.
Pouco a pouco, os processualistas europeus passaram a atribuir maior precisão sistemática ao processo e as suas respectivas categorias, submetendo-as à rigorosa metodologia. Nascia, então, a idéia de autonomia do direito processual.
Na evolução processual, de CHIOVENDA, CALAMANDREI, CARNELUTTI e LIEBMAN, o processo, enfim, ganhou corpo de ciência e passou a ter respeitabilidade entre as demais modalidades do direito.
Da Itália, espargiram raios do pensamento autonomista para o mundo latino, consolidando, ainda mais, a revolução científica do Direito Processual. O reconhecimento do Direito Processual como ciência, tornou-se realidade.
E se é verdade dizer que o direito processual, enquanto autônomo, obteve grande avanço científico, também é correto concluir que se distanciou, ao longo dos anos, do direito substancial.
A ciência processual ganhou notoriedade e respeito junto às demais modalidades do direito. O empenho dos processualistas no aprimoramento das técnicas e no desenvolvimento da hermenêutica atingiu níveis altíssimos de evolução.
No mesmo passo em que o processo civil firmou-se como ciência, os fenômenos processuais passaram a ser supervalorizados. A forma superou a finalidade.
Mas toda esta supervalorização foi extremamente importante para que, com o passar dos anos, brotasse, na processualística, o desejo por uma justiça mais efetiva e mais próxima do cidadão.
A evolução da técnica foi necessária, já que sem ela não seria possível reavaliarmos a eficiência do processo enquanto instrumento de justiça.
Seria impossível aprimorar o conjunto processual e colocá-lo no caminho do acesso à ordem jurídica justa sem antes conhecê-lo profundamente.
3. Etapa moderna do processo.
Superada a fase autonomista, chegou a hora de repensar e reavaliar o sistema de forma que o processo passe, enfim, a exercer a sua real função social: proteção efetiva do bem da vida.
Cumpre ao processualista, nesta nova etapa científica, buscar, de fato, as alternativas que viabilizem a efetiva pacificação dos conflitos sociais.
Não deverá, evidentemente, abandonar a técnica ou desprezar a dogmática, mas colocar cada qual no seu devido lugar, valorando-as na exata medida que a situação de direito substancial exigir. Manter a técnica e desprezar o tecnicismo [02]. Enaltecer a dogmática e criticar o dogmatismo puro, construir um processo voltado ao resultado efetivo no plano material. Este é o grande desafio.
Como dissemos, a autonomia do direito processual foi necessária para que, agora, na etapa modernista, se fortalecesse à busca da justiça efetiva, aquela capaz de operar efeitos práticos na vida das pessoas.
Nesta esteira, ganhou importância um estudo apurado do binômio direito-processo, assumindo a processualística importante função social, adaptando a técnica e o procedimento às necessidades do direito material como forma de se obter verdadeira conquista da ordem jurídica justa. É o processo a serviço do bem da vida.
Ao cientista jurídico não basta analisar a norma ou o procedimento em si. Importante é que se realize a compreensão do sistema como um todo, verificando, detidamente, qual tem sido a função do processo e seus respectivos impactos na sociedade moderna.
O tema da efetividade do processo e da eficácia dos provimentos jurisdicionais tem gerado, ao logo dos últimos anos, incansáveis debates na doutrina e muita reflexão entre os processualistas modernos.
O ensaio de uma reconstrução do sistema processual, a revisitação dos livros sagrados sobre os quais se assentaram os dogmas do direito e o reposicionamento da hermenêutica já é uma realidade.
A reversão do quadro negativo que se encontra a ciência do direito processual e a crise do acesso a justiça, implica em algo muito mais acentuado do que as próprias inovações legais implementadas pelas sucessivas reformas processuais.
Muito já se fez, mas ainda há muito por fazer.
O desejo de se alcançar a ordem jurídica justa por meio de um processo civil menos burocrático, menos complicado e mais efetivo, move a processualística moderna em direção à revisão do pensamento.
E se é certo, por um lado, dizer que houve um grande avanço da legislação, renovando a esperança de se obter decisões mais céleres com a supressão da burocracia, também é verdade que falta muito para se alcançar a efetividade absoluta. Falta muito para que o cidadão volte a ter confiança na justiça. Falta muito para atingirmos a plenitude do acesso a justiça.
O processo não deve representar, ao expectador, um caminho que conduza ao inatingível ou a própria utopia da justiça. Não pode não ser considerado um entrave à pacificação dos conflitos sociais. Não deve servir aos desonestos como tábua da salvação, que, amparados pela lentidão do sistema, prolongam quanto mais seus descumprimentos contratuais.
Ao contrário disto. O processo deve aproximar o indivíduo da justiça pois só assim o direito estará vivo na vida das pessoas.
Para que isto ocorra é fundamental que o sistema seja formado por procedimentos que viabilizem o acesso a justiça e propiciem a obtenção de resultados úteis e efetivos no campo prático, bastando aos operadores do direito manipular adequadamente os mecanismos [03] oferecidos pela legislação vigente, lembrando que o processo não se presta a atingir objetivos individuais propriamente ditos, mas, sobretudo, que ele nasce em prol do direito material, em prol da própria sociedade [04].
É preciso ter coragem para desformalizar o processo e transformá-lo, definitivamente, num instrumento que conduza o cidadão à proteção efetiva do direito estabelecido pela norma substancial.
4. Processo como mecanismo de justiça.
O surgimento do princípio do ‘acesso à justiça’, que passou obter predicado constitucional com a Carta de 1946, produziu, ao longo dos anos, vozes na doutrina sobre a necessidade e a possibilidade de se traçar, no processo civil, um caminho que permitisse ao cidadão o acesso à ordem jurídica justa.
Concluiu-se que este caminho era exatamente o da efetividade do processo, relacionada, diretamente, à eficácia do provimento jurisdicional. Somente pela efetividade dos provimentos, através de um processo descomplicado, adequado, tempestivo, é que será possível alcançar a prestação jurisdicional válida.
A partir desta compreensão, o direito processual, melhor dizendo, o processo civil, não pode ser resumido apenas numa técnica destinada a atender o direito de ação. O processo preserva, no seu íntimo, algo muito mais importante e valioso do que isto.
Nesta concepção elástica, não há sentido para validarmos a existência de um processo destinado exclusivamente a preservar o direito de ação, sem se preocupar com os resultados produzidos fora deste mesmo processo. [05]
No caminho entre o acesso e a efetividade, não deverá existir obstáculos, pois, se houver, certamente eles representarão a descrença e a frustração do indivíduo, modernamente classificado um "consumidor de direitos". A vingar esta circunstância jamais poder-se-á considerar o processo um instrumento de justiça.
Não se admite que alguém percorra anos e anos os corredores burocráticos da justiça em busca da satisfação processual, como simples forma de exercer o controle jurisdicional e, ao final da peleja, reste, tão-somente, o dissabor de "ganhar e não levar".
O expectador da justiça está cansado de obter do Poder Judiciário, após anos de luta, uma sentença cujos efeitos deixam de ser cumpridos em razão das impossibilidades geradas pela burocracia e pela demasiada lentidão do sistema, restando-lhe apenas o prazer de aspirar o doce aroma da fumaça que advém de uma vitória judicial.
O processo judicial não visa, exclusivamente, atender os anseios morais da parte litigante. Não pretende o jurisdicionado receber do Estado título honroso ao mérito para, posteriormente, pendurar-lhe aos olhos do mundo, na parede mais iluminada da sua casa, assim como fazem os velhos caçadores com o busto dos animais caçados.
É inconcebível, no Estado Democrático de Direito, que um mal permaneça sem sanção ou que uma lesão permaneça sem apreciação e resposta efetiva do judiciário.
A reflexão deve partir, em primeiro plano, dos operadores do direito.
Neste contexto, advogados, juízes, promotores, serventuários da justiça, professores, acadêmicos, devem buscar uma compreensão irrestrita sobre o binômio acesso-efetividade, partindo do pressuposto de que o processo deve existir simplesmente para oferecer comodidade e satisfação [06]- [07] aos que dele necessitam e que esperam do Judiciário uma resposta efetiva às injustiças que saboreiam no dia-a-dia do viver em sociedade.
O processo não é apenas um caminho de persecução do direito, mas também a fonte de certeza, de confiança e de aproximação do indivíduo com a própria justiça. Presta, por esta razão, homenagem à satisfação do direito material e a proteção efetiva do bem da vida, sem entraves, sem lentidão, tornando simples a regra de aplicação da norma substancial ao caso concreto.
Mas será que necessitamos realizar uma reconstrução da dogmática e uma revisão da hermenêutica ou o sistema já nos oferece condições de apaziguar os conflitos sociais, bastando, como disse BOBBIO [08], retirarmos as vendas dos olhos e desprendermos os pés?
Os cientistas jurídicos parecem já estar inspirados à revisão dos conceitos, desformalizando o processo civil, desgastando a burocracia legal e, ponderando, constantemente, se as normas processuais atuais tem conseguido atender às exigências dos conflitos sociais modernos.
O resultado disto é que desde 1994, com a aparição do Instituto da Tutela Antecipada, iniciou-se uma verdadeira revolução no processo civil.
Desde então, outras reformas foram introduzidas no texto processual a partir das Leis 10.317/2001, 10.352/2001, 10.358/2001, 10.444/02 e, mais recentemente as Leis 11.232/05 (que alterou o modo de cumprimento das sentenças no processo de conhecimento e revogou os dispositivos relativos à execução fundada em título judicial), 11.187/2005 (nova disciplina ao cabimento dos agravos retido e de instrumento), 11.280/06 (incompetência relativa, meios eletrônicos, prescrição, distribuição por dependência, exceção de incompetência, revelia, carta precatória e rogatória, ação rescisória), tudo com o objetivo de imprimir maior efetividade aos atos jurisdicionais.
O processo parece, realmente, estar sinalizando muitos caminhos à consecução efetiva da prestação jurisdicional, mas deve-se analisar, não obstante as reformas introduzidas, se realmente a aparição das inovações legais tem tido eficácia objetiva no plano prático e qual tem sido seus respectivos efeitos sobre a sociedade.
Deve-se avaliar se o conjunto normativo posto à disposição pelo legislador tem atingido o fim a que se propôs ou se ele próprio tem contribuído para o emperramento da justiça.
Importante, nisto tudo, é que o operador do direito intua no sistema jurídico processual, partindo da própria situação concreta de direito material, determinadas alternativas capazes de harmonizar as questões litigiosas, desbancando, vez por todas, o sistema formal ultrapassado.
Esta é a lição que nos traz, por exemplo, o princípio da instrumentalidade das formas e da fungibilidade das medidas, que, presas à razão, produzem benefícios no campo prático.
A instrumentalidade pode ser intuída a partir do artigo 154 e complementada pelo artigo 244, ambos do CPC.
Por este princípio, o que pesa é a própria finalidade do ato, prestigiando, a lei, o conteúdo em detrimento da forma. Neste sentido, ainda que não completo na forma delineada pela norma processual, ausente o prejuízo da parte, o ato deverá ter a sua validade reconhecida.
Claro que a formalidade é importante ao sistema jurídico, pois é ela que imprime confiança, credibilidade e segurança à atividade processual. Mas a sua importância deve estar livre do apego exagerado à forma. [09]
Na outra ponta, o princípio da fungibilidade (p.ex. parágrafo 7º do art. 273), descende do princípio da instrumentalidade das formas.
A partir da compreensão da fungibilidade dos meios é possível retirar a conclusão de que este princípio também valoriza o objetivo maior do processo: a proteção do bem da vida.
Por este princípio, quando estiverem preenchidas determinadas condições processuais, tanto um, quanto outro meio, podem ser utilizados para proteger o direito material.
A fungibilidade fez crescer, no direito processual, a idéia de que procedimentos diferentes postos à disposição pelo legislador podem ser considerados adequados para se chegar a determinado resultado, ou, grosso modo, que dois caminhos podem sim, levar-nos à um mesmo lugar. [10]
A instrumentalidade das formas e a fungibilidade dos meios são, hodiernamente, exemplos clássicos da moderna visão do direito processual, voltada, agora, a produção de resultados.