"HABEAS CORPUS N.º 41.667-SP - Rel.: Min. Gilson Dipp/5.ª Turma - R.P/Acórdão: Min. Laurita Vaz - EMENTA - Habeas corpus. Processual penal. Crimes contra o sistema financeiro. Denúncia rejeitada. Recurso em sentido estrito. Provimento. Sustentação oral perante o tribunal. Ordem. art. 610, parágrafo único, e art. 618, ambos do CPP. Órgão ministerial, na função precípua de custus legis fala por último. Ausência de ofensa à ampla defesa e ao contraditório. Prejuízo indemonstrado. 1. A ordem estabelecida pela lei processual para a sustentação oral em sede de recurso em sentido estrito, diferentemente do que estatui o art. 500 do CPP, deixa o representante do Ministério Público por último. Inteligência dos arts. 610, parágrafo único, e 618, do CPP. 2. De um lado, resta claro o papel de parte do órgão ministerial que recorre, como no caso, buscando o recebimento da denúncia; de outro lado, o representante do Parquet que atua em segundo grau e nas instâncias extraordinárias exerce o papel precípuo de custus legis. E, inclusive, não está ele vinculado às razões recursais, podendo tranqüilamente, por ocasião do julgamento, opinar em sentido diverso, em favor do réu. É o que acontece também neste Superior Tribunal de Justiça, em que o Regimento Interno dispõe no seu art. 159, § 2.º, que, nessa condição de fiscal da lei, o Ministério Público Federal "fala após o recorrente e o recorrido". 3. Ainda que assim não fosse, "ne pas de nulitté sans grief", ou seja, não há nulidade sem prejuízo (art. 563, CPP), que deve ser demonstrado. O simples fato de ter sido dado provimento ao recurso ministerial não implica, necessariamente, ter havido prejuízo à defesa. É evidente que a decisão lhe foi desfavorável, mas o prejuízo a ser demonstrado para a nulificação do ato deve estar ligado aos fundamentos utilizados como razão de decidir, ou quaisquer outras circunstâncias que, sem ter podido reagir a defesa, foram decisivas no resultado. Seria o caso, por exemplo, de demonstrar o réu que sua defesa ficou prejudicada porque tal ou qual argumento deduzido pela acusação não pôde ser, na oportunidade, contraditado. Se não houve qualquer relevância na ordem de apresentação dos respectivos argumentos, tendo sido todos contrapostos, não há falar em ofensa ao contraditório ou à ampla defesa. Cumpre destacar, nesse ponto, que a impetração se limitou a argüir a nulidade, sem demonstrar efetivo prejuízo. Precedente. 4. Ordem denegada." (STJ/DJU de 19/12/05, pág. 447).
Como se sabe, na segunda instância o Ministério Público, por intermédio de um Procurador de Justiça, exara um parecer escrito antes do respectivo processo criminal ser encaminhado para julgamento. É um privilégio que parece ferir alguns princípios basilares e algumas regras orientadoras do processo penal, como tentaremos mostrar a seguir.
Com efeito, sempre nos pareceu que este pronunciamento do Procurador de Justiça na segunda instância, ainda que na condição de custos legis, soava estranho, mesmo porque fiscal da lei também é o Promotor de Justiça atuante junto à primeira instância e, no entanto, nunca se dispensou a ouvida da defesa... Para nós, este privilégio fere o contraditório (ação versus reação), a isonomia (paridade de armas), o devido processo legal (a defesa fala por último) e a ampla defesa (direito do acusado de ser informado também por último).
A propósito, Frederico Marques:
"Bem de ver é, porém, que na Justiça criminal, se apresenta algo esdrúxula essa função consultiva do procurador-geral, uma vez que o Ministério Público está constituído, precipuamente, como órgão da ação penal e da pretensão punitiva do Estado. Além disso, não se compadece muito com a estrutura contraditória do processo penal pátrio, e com as garantias de defesa plena do réu, que fale em último lugar um órgão investido de funções nitidamente persecutórias. Daí se nos afigurar errônea e infeliz a disposição contida no art. 610 do CPP, sobre a abertura de vista ao procurador-geral." [01]
Vejamos agora Tourinho Filho:
"Mal saídos de uma fatigante atividade combativa, assumem função completamente imparcial, própria dos fiscais da lei e, muitas vezes, com várias e honrosas exceções, o custos legis é traído pelo Acusador, quebrando, assim, uma regra decorrente do devido processo legal, segundo a qual a Defesa fala por último... Ademais, o Procurador de Justiça, membro que é do Ministério Público, não pode ficar eqüidistante das partes. Entranhada e psicologicamente tem laços com uma delas. É difícil o corte desse cordão umbilical. E, para evitar essas traições, a nosso ver, deveria o Ministério Público, na segunda instância, limitar-se à análise dos processos sob o aspecto formal, deixando a apreciação do mérito aos Tribunais." [02]
Então, pergunta-se: "no processo penal, quando o processo atinge o grau recursal qual das partes fala por último? O réu ou o Ministério Público? Os arts. 610 e 613 do Código de Processo Penal nos dão a resposta: o Ministério Público manifesta-se depois da defesa e, ordinariamente, a defesa sequer tem vista do que foi oficiado pelo MP – a não ser que requeira vista dos autos e se lhe for concedida. Alguns autores fundamentam tais incompreensíveis dispositivos legais com a função de fiscal da lei que o MP desempenharia nos recursos criminais. Ora, não se pode confundir a função de parte com a de fiscal da lei. No processo criminal por ação de iniciativa pública é o MP, uno e indivisível, quem oferece denúncia; é ele quem postula a aplicação da sanção penal; e é ele quem, mesmo em grau de recurso, tem legitimidade para sustentar oralmente o recurso do promotor, visando, até, à majoração da pena. Então, não se pode falar que o mesmo órgão publico, o mesmo órgão do Estado, possa ser, ao mesmo tempo, fiscal da lei e parte, ao ponto de, na instância recursal, desaparecer a parte, permanecendo apenas o fiscal da lei, em uma estranha ação penal sem autor." [03]
Observa-se que é possível, ainda que em grau de recurso, haja a feitura de diligências ordenadas pelo relator, por força do art. 616 do Código de Processo Penal. Nesta hipótese, perguntamos quem estaria representando o Ministério Público nesta nova instrução. Evidentemente que se a diligência (uma acareação, por exemplo) fosse realizada no próprio Tribunal somente um Procurador de Justiça poderia atuar, o que vem a corroborar o fato de que, além de fiscal da lei, continua ele como representante da parte acusadora. Neste aspecto, veja-se a lição de Ada, Scarance e Gomes Filho: "o tribunal poderá livremente apreciar, no recurso, aspectos que não foram suscitados pelas partes. Se o entender conveniente, converterá o julgamento em diligência para a produção de novas provas, destinadas à formação do convencimento de seus membros e poderá excluir as que considerar ilícitas do material probatório; se o considerar oportuno, poderá reinquirir o réu e será livre para levantar novas teses jurídicas. Apenas, deverá garantir que tudo isso seja feito em contraditório, na presença das partes, dando a estas a oportunidade de contradizer, inclusive provando. O contraditório, na melhor doutrina, não se limita às questões de fato, devendo abranger as questões de direito que o juiz levantar de ofício (Tarzia)." [04]
Por outro lado, simplesmente suprimir o parecer ministerial não é possível, sob pena de se incorrer em nulidade absoluta, tendo em vista o disposto no art. 564, III, d do Código de Processo Penal. [05]
Notas
01 Elementos de Direito Processual Penal, Vol. IV, 1ª. ed., 2ª. tiragem, Campinas: Bookseller, 1998, p. 213.
02 Código de Processo Penal comentado, Vol. II, São Paulo: Saraiva, 4ª. ed., 1998, p. 351.
03 Castanho de Carvalho, Luis Gustavo Grandinetti, O Processo Penal em face da Constituição, Rio de Janeiro: Forense, 2ª. ed., 1998, p. 85. Nesta obra, em carta dirigida ao autor, Tourinho Filho reafirma a sua posição acima transcrita, nos seguintes termos: "Todos sabemos que os Procuradores eram Promotores. Como podem eles, da noite para o dia, perder a agressividade acusatória para adquirir a serenidade da toga? Com raríssimas exceções, os Procuradores quando se manifestam nas apelações e nos recursos em sentido estrito deixam entrever, com clareza, que o cordão umbilical que os liga à parte acusadora não foi cortado... Sendo assim, como podem atuar com imparcialidade? Ademais, como a defesa deve falar por último, a rigor, os autos deveriam sair da Procuradoria e ser encaminhados à OAB..." (p. 1).
04 Recursos no Processo Penal, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 3ª., ed, 2001, p. 52.
05 Sobre o assunto, conferir Dóro, Tereza Nascimento Rocha / Grecco, Leonardo. O parecer acusatório do Procurador de Justiça nos autos da apelação criminal (Da notória desigualdade de armas no duelo entre promotor de justiça e advogado). Disponível na internet: http://direitocriminal.com.br, 05/10/2001.