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Conceitos jurídicos indeterminados e discricionariedade administrativa

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Agenda 29/07/2006 às 00:00

1. INTRODUÇÃO

            A escolha de um tema representa a tomada de posição do jurista diante de determinada problemática. A abordagem do tema em tela tem por escopo traçar um panorama das principais teorias desenvolvidas a respeito dos conceitos jurídicos indeterminados, bem como analisar a relação destes com a questão da discricionariedade.

            O direito positivo está vertido numa linguagem, que constitui seu modo de expressão. Essa camada de linguagem, como construção do homem, destina-se à disciplina do comportamento humano. As regras jurídicas, assim, têm por objetivo organizar a conduta das pessoas. Para tanto, o legislador se vale de uma linguagem técnica, o que significa dizer que se assenta no discurso natural, mas aproveita em quantidade considerável palavras e expressões de cunho determinado, pertinentes ao domínio das comunicações científicas.[01]

            Vale lembrar que as linguagens consubstanciam sistemas ou conjuntos de símbolos convencionais, ou seja, os significados das palavras ou expressões lingüísticas dependem sempre de uma convenção.[02]

            Ocorre que não raramente o legislador utiliza conceitos vagos, ambíguos ou incertos.[03] A imprecisão e equivocidade dos conceitos, encontrados na linguagem cotidiana, transportam-se para a linguagem jurídica. Ao contrário das ciências exatas, caracterizadas por conceitos rigorosos, a linguagem jurídica é marcada por metáforas, metonímias, sinédoques e outras figuras de linguagem, em que se destacam os graus de sentimento e de interesse no discurso, tornando-o vivo e retórico. Daí a presença de inúmeros conceitos jurídicos indeterminados.[04]

            Os conceitos jurídicos indeterminados são aqueles cujo conteúdo e extensão são em larga medida incertos, ou seja, não são dotados de um sentido preciso e objetivo. Do ponto de vista estrutural, possuem uma zona de certeza quanto ao seu significado, habitualmente chamada de núcleo conceitual. Essa zona qualifica o campo dentro do conceito em que se tem uma noção clara e precisa do seu significado.

            De um lado, há a zona de certeza positiva, representada pelo campo em que ninguém duvida da efetiva aplicação do conceito. De outro, há a zona de certeza negativa, qualificada pelo campo em que ninguém duvida da impossibilidade de aplicação do conceito.

            Contudo, entre as zonas de certeza positiva e negativa, vigora um espaço de dúvidas quanto à aplicação ou não do conceito. Tal espaço é chamado de zona de incerteza ou halo conceitual.

            Segundo José Eduardo Martins Cardozo, "apenas quando essa zona conceitual tiver grande amplitude é que o conceito jurídico poderá ser qualificado de indeterminado".[05]


2. CONCEITO VERSUS TERMO

            Vigora na doutrina um aceso debate a respeito da atribuição do adjetivo "indeterminado". Para uns, indeterminado é o conceito; para outros, indeterminado é o termo que expressa o conceito.

            O conceito é a forma intelectual que exprime o objeto de conhecimento; é a representação intelectual de um ser ou de uma coisa.[06]

            Segundo Eros Grau, a peculiaridade dos conceitos jurídicos é que eles não são referidos a objetos, mas a significações. Ou seja: o "objeto" do conceito jurídico não existe "em si", ou seja, dele não há representação concreta, nem mesmo gráfica. Os conceitos jurídicos são signos de significações (signos de primeiro grau) atribuíveis a coisas, estados ou situações. Portanto, são signos de segundo grau, pois têm como objeto uma significação atribuível à coisa, estado ou situação. Por essa razão, sustenta o autor ser mais adequada a expressão termos indeterminados de conceitos, uma vez que o conceito é uma abstração, uma suma de idéias e, como tal, deve ser, no mínimo, determinado.[07]

            Já Celso Antônio Bandeira de Mello posiciona-se no sentido contrário, afirmando que indeterminados são os conceitos, e não os termos. Afirma que "a imprecisão, fluidez, indeterminação, a que se tem aludido residem no próprio conceito e não na palavra que os rotula (...) Se a palavra fosse imprecisa – e não o conceito – bastaria substituí-la por outra ou cunhar uma nova para que desaparecesse a fluidez do que se quis comunicar".[08]

            Entendemos ser mais correta a adoção da expressão "conceitos jurídicos indeterminados", já consagrada pelo direito pátrio e estrangeiro. Irene Patrícia Nohara, seguindo os ensinamentos de Sainz Moreno, aduz que a discussão teórica sobre a diferença entre conceito e termo é típica de uma visão referencialista da linguagem e de uma análise empírico-positivista da realidade. Para ela, a relação entre conceito e termo é de vinculação essencial, pois a escolha dos termos influi no significado do conceito. Em suas palavras: "não é possível desvincular totalmente os conceitos dos termos, pois estes últimos constituem, em muitas hipóteses, os primeiros".[09] Termos não são meros instrumentos que nos conduzem ao conceito. Pelo contrário: a escolha dos termos na explicação da realidade é feita em função de determinantes históricas, sociais, culturais, etc. A atitude platônica do jurista que procura se afastar da realidade e intenta lapidar a linguagem para alcançar o que acredita ser a essência de um conceito, entendendo-o como algo absolutamente jurídico, jamais será neutra.

            Feitas as devidas advertências, fiquemos, então, com a expressão conceitos jurídicos indeterminados.


3. INDETERMINAÇÃO E DISCRICIONARIEDADE

            Embora a existência de conceitos jurídicos indeterminados seja bastante comum em vários ramos do Direito, é no Direito Administrativo que ela ganha especial relevância, uma vez que se relaciona com o tema da discricionariedade.

            O conceito jurídico indeterminado sempre gera discricionariedade? Qual a relação lógico-jurídica que necessariamente existe entre essas duas espécies conceituais?

            A resposta a tal indagação depende do modo de encarar as funções estatais, ora alargando-se, ora restringindo-se a posição da Administração Pública diante dos direitos individuais.

            Primeiramente, é importante lembrar que a discricionariedade é "a margem de liberdade que remanesça ao administrador para eleger, segundo critérios consistentes de razoabilidade, um, dentre pelo menos dois comportamentos cabíveis, perante cada caso concreto, a fim de cumprir o dever de adotar a solução mais adequada à satisfação da finalidade legal".[10]

            Para Celso Antônio Bandeira de Mello, o poder discricionário é, antes de tudo, um dever discricionário, uma vez que os poderes são meros veículos instrumentais para propiciar ao obrigado cumprir o seu dever. Ora, a atividade administrativa tem um caráter funcional, cabendo ao administrado perseguir a finalidade legal.[11]

            A discricionariedade pode residir na hipótese da norma, quando a lei descreve a situação fática (motivo) de modo impreciso; no comando da norma, quando nele se houver aberto, para o agente público, mais de uma alternativa de conduta; ou na finalidade da norma.

            A doutrina dos conceitos jurídicos indeterminados surgiu na Áustria em meados do século XIX, como conseqüência da necessidade de saber se tais conceitos eram ou não suscetíveis de controle pelos tribunais administrativos. Mas foram a doutrina e a jurisprudência germânicas que relacionaram, pela primeira vez, a discricionariedade aos conceitos jurídicos indeterminados.[12]

            Bernatzik, em obra publicada em 1886, sustentava, em síntese, que os conceitos legais indeterminados atribuem discricionariedade à autoridade administrativa. Tezner, ao seu turno, entendia que na interpretação e aplicação desses conceitos só existe uma única solução correta.

            Hans Kelsen foi um dos autores que identificou a atividade interpretativa com a atividade discricionária, pois sempre há uma margem mais ou menos ampla de livre apreciação. Ensina ele que "o resultado de uma interpretação jurídica somente pode ser a fixação da moldura que representa o Direito a interpretar e, conseqüentemente, o conhecimento das várias possibilidades que dentro desta moldura existem. Sendo assim, a interpretação de uma lei não deve necessariamente conduzir a uma solução como sendo a única correta, mas possivelmente a várias soluções".[13]

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            Passemos agora a analisar o presente tema no direito estrangeiro e no direito brasileiro.

            3.1. DIREITO GERMÂNICO

            Inicialmente, vigorou na Alemanha a doutrina que defendia a análise da atribuição de competência legal para a averiguação da discricionariedade, independentemente de se tratar ou não de conceitos indeterminados.

            Entretanto, a mais recente doutrina alemã sustenta que a aplicação dos conceitos jurídicos indeterminados é questão totalmente distinta da discricionariedade. Superado o regime totalitário adotado de 1933 a 1945, instaurou-se o Estado de Direito, com a preocupação de impor limites à Administração Pública e ao Governo. Deste modo, procurou-se limitar a discricionariedade, submetendo a Administração inteiramente à lei.[14]

            O emprego de conceitos imprecisos pelo legislador não significa outorga de liberdade de escolha à Administração, pois somente o juiz, com sua imparcialidade e seus conhecimentos técnicos, tem condições de encontrar a solução mais adequada para o caso concreto.

            A discricionariedade somente existe quando a lei deixa ao administrador a possibilidade de optar por uma dentre várias soluções. O conceito jurídico indeterminado permite interpretação, e não discricionariedade.

            Contudo, nos últimos dez anos, percebeu-se um certo abrandamento deste rigor para ampliar um pouco o conceito de discricionariedade. Neste sentido, passou-se a reconhecer a necessidade de a lei, na impossibilidade de prever e disciplinar todas as situações, deixar um espaço de maior flexibilidade para a Administração Pública decidir segundo seus próprios critérios.[15]

            3.2. DIREITO FRANCÊS

            Não houve na França uma doutrina substancial a respeito dos conceitos jurídicos indeterminados. O que se constata é uma tendência da jurisprudência em ampliar o controle da Administração quando se trata de conceito legal indeterminado, o que é feito com relação ao exame dos motivos e mediante aplicação da teoria do erro manifesto e do princípio da proporcionalidade dos meios aos fins.[16]

            3.3. DIREITO ESPANHOL

            O direito espanhol sofreu forte influência da doutrina alemã, que tende a separar a teoria dos conceitos jurídicos indeterminados da discricionariedade. Um de seus maiores expoentes foi García de Enterría, segundo o qual a discricionariedade é a liberdade de escolha entre alternativas igualmente justas, enquanto a aplicação dos conceitos jurídicos indeterminados é um caso de interpretação da lei.

            Para ele, "la aplicación de tales conceptos o la calificación de circunstancias concretas no admite más que una solución: o se da o no se da el concepto. Tertium non datur. Esto es lo esencial del concepto jurídico indeterminado: la indeterminación del enunciado no se traduce en una indeterminación de las aplicaciones del mismo, las cuales solo permiten una unidad de solución justa en cada caso."[17]

            Aduz o jurista espanhol que a discricionariedade é uma liberdade de escolha entre indiferentes jurídicos, pois a decisão se funda em critérios extrajurídicos. Ao contrário, a utilização dos conceitos jurídicos indeterminados é um caso de aplicação e interpretação da lei.[18]

            Sainz Moreno, discípulo de García de Enterría, afirma que "los conceptos jurídicos indeterminados son expresión de criterios jurídicos y, por tanto, constituyen la expresión de ideas rectoras de las decisiones administrativas, en ningún caso fuente de discricionariedad".[19]

            Ademais, sustenta que a discricionariedade pura somente existe quando o critério de decisão deixa de ser jurídico para se converter em político.[20]

            3.4. DIREITO BRASILEIRO

            Embora muito debatido na doutrina e jurisprudência alienígenas, o tema dos conceitos jurídicos indeterminados foi pouco desenvolvido no Direito Brasileiro.

            Maria Sylvia Zanella Di Pietro identifica duas posturas básicas no tocante aos conceitos jurídicos indeterminados: (1) a dos que entendem que eles não conferem discricionariedade à Administração porque, diante deles, ela tem que fazer um trabalho de interpretação que leve à única solução possível; e (2) a dos que acham que eles podem conferir discricionariedade à Administração desde que se trate de conceito de valor.[21]

            Para Eros Grau, seguidor do entendimento da moderna doutrina alemã, a técnica dos conceitos jurídicos indeterminados nada tem a ver com a técnica da discricionariedade. A primeira enseja interpretação e é baseada em juízos de legalidade. A segunda, por sua vez, enseja liberdade de escolha e é baseada em juízos de oportunidade. A discricionariedade só pode resultar de expressa atribuição legal à autoridade administrativa, e não da circunstância de os termos da lei serem ambíguos, equívocos ou suscetíveis de receber qualificações diversas.[22]

            Contudo, critica o critério de García de Enterría, segundo o qual a aplicação dos conceitos jurídicos indeterminados enseja uma única solução justa. Segundo Eros, interpretação não é ciência, mas prudência. A prudência, por sua vez, é razão intuitiva, que não discerne o exato, mas o correto. Deste modo, a interpretação supõe a faculdade de escolher uma entre as várias interpretações possíveis, em cada caso, de modo que essa escolha seja apresentada como adequada. A interpretação é a atividade que se presta a transformar textos em normas jurídicas. A lógica jurídica é a lógica da decisão e escolha entre várias possibilidades, ou seja, é a lógica da preferência, e não da conseqüência. A interpretação, portanto, "supõe a faculdade do intérprete de escolher uma, entre várias interpretações possíveis, em cada caso, de modo que essa escolha seja apresentada como adequada – sempre, em cada caso, inexiste uma interpretação verdadeira".[23]

            Tércio Sampaio Ferraz, com muita precisão, ensina que "a determinação do sentido das normas, o correto entendimento do significado dos seus textos e intenções, tendo em vista a decidibilidade de conflitos, constitui a tarefa da dogmática hermenêutica (...) O propósito básico do jurista não é simplesmente compreender um texto, mas também determinar-lhe a força e o alcance".[24]

            Para Lucia Valle Figueiredo, "diante de determinado conceito, há, inicialmente, problema de interpretação. Interpretado o conceito, teremos subsunção. Só depois é que se vai colocar alguma discricionariedade".[25] Interpretar é demonstrar o sentido da norma; subsumir é enquadrar o caso concreto no sentido da norma.

            Já Celso Antonio Bandeira de Mello sustenta que os conceitos jurídicos indeterminados podem constituir uma fonte de discricionariedade. Para ele, "não é aceitável a tese de que o tema dos conceitos legais fluidos é estranho ao tema da discricionariedade".[26] Ressalta que "é excessivo considerar que as expressões legais que os designam, ao serem confrontadas com o caso concreto, ganham, em todo e qualquer caso, densidade suficiente para autorizar a conclusão de que se dissipam por inteiro as dúvidas sobre a aplicação ou não do conceito por elas recoberto".[27] Isso porque, segundo o citado autor, há diversas situações em que mais de uma intelecção é razoavelmente admissível. Conclui, portanto, que "a noção de discricionariedade não se adscreve apenas ao campo das opções administrativas efetuadas com base em critérios de conveniência e oportunidade, pois também envolve o tema da intelecção dos conceitos vagos".[28]

            Maria Sylvia Zanella Di Pietro menciona que tanto na discricionariedade quanto na interpretação há um trabalho intelectivo prévio à aplicação da lei aos casos concretos.[29] Porém, a aparente liberdade do juiz para aplicar a lei ao caso concreto não se confunde com a liberdade da Administração de decidir discricionariamente.

            Regina Helena Costa, em seu trabalho Conceitos Jurídicos Indeterminados e Discricionariedade Administrativa, traz uma posição intermediária, ensinando que a menção a conceitos indeterminados pela lei pode ou não conduzir à atribuição de liberdade discricionária à Administração Pública, ou seja, a solução à questão não pode ser fornecida aprioristicamente, mas apenas diante do caso concreto.[30]

            A autora classifica os conceitos jurídicos indeterminados em conceitos de experiência e conceitos de valor. Nos primeiros, o administrador, após a interpretação, torna preciso o conceito, não lhe restando qualquer margem de escolha de seu significado. Nos segundos, ao revés, terminada a interpretação, cabe ao administrador definir o conceito por intermédio de sua apreciação subjetiva, que outra coisa não é que a própria discricionariedade.

            Segue, desta forma, o pensamento de Ernst Forsthoff, segundo o qual a determinação dos conceitos puramente empíricos não é exercício de poder discricionário, mas de interpretação. Já nos conceitos de valor não há como eliminar completamente a discricionariedade.[31]

            Ressalta, todavia, que tanto a interpretação quanto a valoração envolvem uma apreciação do agente. O que as distingue são os critérios que utilizam para proceder a essa apreciação: aquela emprega critérios objetivos e externos; esta se vale de critérios subjetivos, próprios do agente.

            Destarte, no caso de conceitos de experiência, o controle judicial é amplo, exatamente porque cabe ao Judiciário, como função típica, interpretar o alcance e o sentido das normas jurídicas para sua justa aplicação. Por outro lado, diante de conceitos de valor, e, portanto, diante de discricionariedade, o controle judicial é apenas um controle de contornos, de limites, ou seja, cabe ao Judiciário apenas verificar se a escolha feita pela Administração se manteve nos lindes do razoável.

            Conjuga deste mesmo entendimento José Eduardo Martins Cardoso. Para ele "é rigorosamente equivocado imaginar-se que os conceitos jurídicos indeterminados geram necessariamente um poder discricionário ou que jamais podem gerar esse poder ao administrador público".[32] O fato é que às vezes podem gerar poderes discricionários, às vezes não. Ora, nem sempre a atividade de interpretação consegue indicar um único sentido objetivo, plausível, razoável e adequado ao ordenamento jurídico para a fixação de seu sentido e alcance.

            Por conseguinte, se a situação fática tiver enquadramento induvidoso no âmbito da zona de certeza ou do núcleo conceitual, apenas uma única alternativa possível se apresentará para ser seguida in casu pelo administrador público. Ao contrário, se os fatos se situarem na zona de incerteza ou no halo conceitual, há possibilidade de outorga de poder discricionário. Nas palavras de José Eduardo Martins Cardozo, "a inteligência humana é finita. Não possui poderes de racionalidade insuperáveis e transcendentes capazes de apontar sempre, e em qualquer caso, dentre os sentidos interpretativos de uma norma legal, qual é comprovadamente o objetivamente melhor".[33]

            Contudo, é imprescindível ressaltar a observação de Celso Antônio Bandeira de Mello que "mesmo que vagos, fluidos ou imprecisos, os conceitos utilizados no pressuposto da norma ou na finalidade têm algum conteúdo mínimo indiscutível".[34] Esse conteúdo mínimo, por sua vez, só pode ser determinado em dado momento e lugar, pois o Direito é um fenômeno cultural.

            Portanto, quando os conceitos jurídicos indeterminados gerarem discricionariedade, as alternativas válidas identificadas pelo ato de exegese integrarão o mérito do ato, e o controle judicial jamais poderá revê-las. Quando não gerarem, estaremos diante do exercício de um poder vinculado passível de revisão, em caso de invalidade da decisão tomada.[36]

            Para Irene Patrícia Nohara, "o conceito jurídico indeterminado pode ou não conferir discricionariedade, e o critério para essa verificação não se pauta na natureza do conceito, mas na sua disciplina legal concretizada, ou seja, aliada à aptidão que os fatos possuem para comprovar a realidade normatizada".[37]

            Assim, tanto a averiguação do conteúdo da norma como a constatação e qualificação dos fatos e sua conexão com o Direito são operações típicas da função jurisdicional.

            A jurisprudência brasileira tem se posicionado no sentido de que a existência de conceitos jurídicos indeterminados, muito embora possa conferir algum grau de discricionariedade, não exime o Poder Judiciário de analisar se a solução adotada pelo administrador público é a mais adequada para o caso concreto. Senão vejamos:

            RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA. SERVIDOR PÚBLICO. PROCESSO ADMINISTRATIVO. DEMISSÃO. PODER DISCIPLINAR. LIMITES DE ATUAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO. PRINCÍPIO DA AMPLA DEFESA. ATO DE IMPROBIDADE.

            1. "Servidor do DNER demitido por ato de improbidade administrativa e por se valer do cargo para obter proveito pessoal de outrem, em detrimento da dignidade da função pública, com base no art. 11, caput, e inciso I, da Lei n. 8.429/92 e art. 117, IX, da Lei n. 8.112/90. 2. A autoridade administrativa está autorizada a praticar atos discricionários apenas quando norma jurídica válida expressamente a ela atribuir essa livre atuação. Os atos administrativos que envolvem a aplicação de "conceitos indeterminados" estão sujeitos ao exame e controle do Poder Judiciário. O controle jurisdicional pode e deve incidir sobre os elementos do ato, à luz dos princípios que regem a atuação da Administração. 3. Processo disciplinar, no qual se discutiu a ocorrência de desídia --- art. 117, inciso XV da Lei n. 8.112/90. Aplicação da penalidade, com fundamento em preceito diverso do indicado pela comissão de inquérito. A capitulação do ilícito administrativo não pode ser aberta a ponto de impossibilitar o direito de defesa. De outra parte, o motivo apresentado afigurou-se inválido em face das provas coligidas aos autos. 4. Ato de improbidade: a aplicação das penalidades previstas na Lei n. 8.429/92 não incumbe à Administração, eis que privativa do Poder Judiciário. Verificada a prática de atos de improbidade no âmbito administrativo, caberia representação ao Ministério Público para ajuizamento da competente ação, não a aplicação da pena de demissão. Recurso ordinário provido". (STF, RMS 24699/DF, Rel. Min. Eros Grau, DJ 30/11/2004)

            "A edição de medidas provisórias, pelo Presidente da República, para legitimar-se juridicamente, depende, dentre outros requisitos, da estrita observância dos pressupostos constitucionais da urgência e da relevância (CF, art. 62,"caput"). - Os pressupostos da urgência e da relevância, embora conceitos jurídicos relativamente indeterminados e fluidos, mesmo expondo-se, inicialmente, à avaliação discricionária do Presidente da República, estão sujeitos, ainda que excepcionalmente, ao controle do Poder Judiciário, porque compõem a própria estrutura constitucional que disciplina as medidas provisórias, qualificando-se como requisitos legitimadores e juridicamente condicionantes do exercício, pelo Chefe do Poder Executivo, da competência normativa primária que lhe foi outorgada, extraordinariamente, pela Constituição da República. Doutrina. Precedentes". (STF, ADI-MC 2213/DF, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 04/04/2002)

            RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA. INDEFERIMENTO DE PEDIDO DE REMOÇÃO. INEXISTÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO QUE DEMONSTRE O INTERESSE PÚBLICO. CRITÉRIO DE ANTIGUIDADE MANTIDO. RECURSO PROVIDO.

            1." O assento regimental nº 1/88, no art. 8º, estabelece o critério de antiguidade para a remoção de magistrado, no caso de mais de um interessado pleitear a remoção para uma única vaga. Critério não absoluto, haja vista a disposição: "salvo relevante interesse público, devidamente justificado". 2. Viabilidade do controle do Poder Judiciário acerca de conceitos jurídicos indeterminados e do motivo do ato administrativo. 3. Ausência de demonstração de prejuízo ao serviço forense a justificar o afastamento do critério de antiguidade. 4. Recurso ordinário provido". (STJ, 5ª Turma, RMS 19590/RS, Rel Min. Felix Fischer, DJ 02/02/2006)

            Nota-se, deste modo, uma tendência dos tribunais superiores brasileiros para permitir o controle judicial das decisões administrativas baseadas em conceitos imprecisos.

            Comungamos do entendimento de que os conceitos jurídicos indeterminados ora podem gerar discricionariedade, ora podem outorgar poder vinculado. A verificação só pode ser feita diante do caso concreto.

            Primeiramente, é forçoso esclarecer que a dicotomia entre discricionariedade e interpretação é, em parte, falaciosa, uma vez que toda norma jurídica é resultado de um processo interpretativo. Já foi dito que a interpretação é, fundamentalmente, a atividade de transformar textos em normas jurídicas. E a interpretação não permite uma única solução verdadeira. Destarte, mesmo nas hipóteses de atribuição de poder discricionário, há que se realizar o trabalho de busca do sentido da norma jurídica. A discricionariedade começa onde termina a interpretação.

            Ademais, a distinção entre conceitos de experiência e conceitos de valor não é dotada de elevado rigor científico, pois há conceitos de experiência indeterminados e conceitos de valor determinados e passíveis de controle judicial. É possível afirmar, inclusive, que, do ponto de vista estrutural, tais conceitos são idênticos, pois ambos têm um núcleo essencial e um halo que os rodeia.

            Ressalte-se que para Miguel Reale o direito é composto de fato, norma e valor (teoria tridimensional). O fato é a condição da conduta, a base empírica da ligação intersubjetiva; o valor é a intenção primordial; e a norma, por fim, é medida de concreção do valioso no plano da conduta social. Tais elementos encontram-se presentes onde quer que se encontre a experiência jurídica. O citado autor menciona que "o valor envolve uma orientação e, como tal, postula uma quarta nota, que é a preferibilidade. É por esta razão que toda teoria do valor tem como conseqüência, não causal, mas lógica, uma teleologia ou teoria dos fins".[38]

            Portanto, mesmos nos conceitos de experiência há um componente valorativo, pois este é inerente ao fenômeno jurídico. Onde há direito, há valor.

            Como identificar então os casos em que os conceitos jurídicos indeterminados geram discricionariedade?

            Nas hipóteses em que os fatos se subsumem à zona de certeza positiva ou negativa de um conceito jurídico indeterminado não há que se falar em poder discricionário. Tomemos, por exemplo, a expressão "estado de pobreza". Trata-se de um conceito impreciso. Será inegável, todavia, que uma pessoa que não tenha renda mínima para sobreviver viva induvidosamente em "estado de pobreza". Por outro lado, uma pessoa que receba mensalmente milhões de dólares não poderá ser tida como "pobre".

            No entanto, há casos em que os fatos se situam na zona de incerteza ou no halo conceitual do conceito jurídico indeterminado. Conseqüentemente, a interpretação do conceito poderá resultar em mais de uma opção válida para o administrador público. Usando o exemplo anterior, em dadas situações não será possível afirmar induvidosamente que alguém é rico ou pobre, mesmo que o administrador se valha de todos os meios para delimitar o âmbito de uma expressão vaga ou ambígua. São nessas hipóteses que entendemos haver discricionariedade.

            Contudo, esse poder discricionário não implica livre apreciação. A autoridade administrativa deve utilizar todos os métodos possíveis de exegese para alcançar o interesse público que o legislador quis proteger ao conferir-lhe discricionariedade.[39]

            Por fim, é importante frisar que, havendo dúvida sobre a correta subsunção do caso concreto a um suposto legal descrito mediante conceito indeterminado, incumbirá ao Poder Judiciário conferir se a Administração se manteve no campo significativo da aplicação da regra ou não.

            Conforme bem salienta José Eduardo Martins Cardozo, "falam-se da discricionariedade ou do mérito do ato administrativo como se fossem verdadeiros mantos sagrados que, uma vez estendidos, protegem as realidades que encobrem, por mais arbitrárias e ilegais que sejam".[39]

            O Judiciário é sempre a instância mais apta para aferir se o agente público agiu em conformidade com o Direito. O art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal de 1988, estabelece que "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito".

            Somente por meio do controle judicial, ainda que seja um controle de contornos, é possível submeter a Administração Pública ao princípio da legalidade e aos princípios do Estado Democrático de Direito.

Sobre a autora
Luiza Barros Rozas

Juíza de Direito e Mestre em Direitos Humanos pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROZAS, Luiza Barros. Conceitos jurídicos indeterminados e discricionariedade administrativa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1123, 29 jul. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8715. Acesso em: 24 nov. 2024.

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