O novo artigo 273 do Código de Processo Civil, com a redação dada pela reforma processual de 1994, trata do instituto da antecipação da tutela. Eis o texto do artigo:
Art. 273. O juiz poderá, a requerimento da parte, antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, desde que, existindo prova inequívoca, se convença da verossimilhança da alegação e:
I haja fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação; ou
II fique caracterizado o abuso de direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório do réu.
A introdução do artigo 273 na legislação processual é uma extraordinária inovação no direito brasileiro. Permite-se ao magistrado, caso estejam presentes os pressupostos do caput e se caracterize uma das situações presentes nos incisos, que ele dê o provimento buscado pelo demandante sem haver ainda a cognição exauriente, definida como aquela que realiza o magistrado quando ele analisa o material fático e jurídico da lide posta em questão da forma mais aprofundada possível.
Nesse sentido, o novel instituto gerou como não poderia deixar de ser bastante polêmica, uma vez que a cultura processual brasileira ainda reluta em aceitar a concessão de provimentos jurisdicionais com base em cognição sumária.
Duas situações relativas ao novo dispositivo são inusitadas e demandam um maior aprofundamento doutrinário. Tais situações podem ser resumidas nas duas seguintes perguntas: É possível haver antecipação de tutela após o término da instrução probatória no processo comum ordinário? A revelia é situação permissiva de concessão de provimento antecipado?
As duas situações, conforme se tentará demonstrar, guardam profunda relação com o instituto do julgamento antecipado da lide, previsto no artigo 330 do Código de Processo Civil de 1973, que assim dispõe:
Art. 330. O juiz conhecerá diretamente do pedido, proferindo sentença:
I quando a questão de mérito for unicamente de direito, ou, sendo de direito e de fato, não houver necessidade de produzir prova em audiência;
II quando ocorrer a revelia.
Com relação à primeira pergunta, pode-se dizer que, muito embora o texto do inciso I do artigo 330 não se refira expressamente ao fim da instrução probatória, a situação é semelhante, haja vista que, tanto na situação exposta na pergunta quanto no referido inciso I, o juiz estaria "apto" a proferir sentença de mérito.
Relativamente ao inciso II não há qualquer problema, uma vez que o texto versa expressamente sobre a revelia, situação posta no segundo questionamento.
Passa-se, nesse diapasão, à tentativa de resposta à primeira pergunta.
Há quem defenda, no direito brasileiro, que o fim da instrução probatória é o momento final para a concessão de antecipação de tutela em primeiro grau de jurisdição, porquanto o juízo de verossimilhança único possível de se obter por meio de cognição sumária , previsto no caput do artigo 273, já não mais existe, vez que foi substituído pelo juízo de certeza, obtido pelo fim da coleta probatória. Nesse sentido é a opinião, v.g., de Araken de Assis(1), Antônio Cláudio da Costa Machado(2) e José Eduardo Carreira Alvim(3).
Conforme bem observa Jorge Pinheiro Castelo(4), aqueles que inadmitem a concessão do provimento antecipatório após o término da instrução estão confundindo a antecipação de tutela com o julgamento antecipado da lide.
Com efeito, quando da entrada de uma ação em juízo, deve-se distinguir os resultados fáticos dos jurídicos esperados pelo demandante. A antecipação da tutela acelera efeitos fáticos da tutela jurisdicional, em nada alterando os efeitos jurídicos, que continuam em sua marcha lenta rumo à coisa julgada. O julgamento antecipado da lide, por seu turno, acelera efeitos jurídicos, não modificando os efeitos fáticos, uma vez que a sentença "imediatamente" prolatada, está sujeita ao recurso de apelação dotado excetuando-se raros casos de efeito suspensivo. A eventual execução que se iniciará será provisória, que nada mais é do que uma execução incompleta, como bem já se salientou em doutrina(5).
Como bem se observa, caso seja inadmitida a hipótese de provimento antecipatório ao fim da instrução processual, o efeito fático que será obtido pelo demandante é idêntico ao que obtém aquele favorecido pelo julgamento antecipado da lide: nenhum.
Assim, adotar o entendimento no sentido do descabimento de antecipação de tutela após a instrução probatória significa não dar resposta aos direitos que necessitam urgentemente de tutela satisfativa, uma vez que faticamente nada se altera para o demandante.
Portanto, torna-se imperioso o reconhecimento da possibilidade da concessão do provimento antecipatório, mesmo quando finda a atividade processual.
No que tange à revelia, objeto do segundo questionamento, ela também trouxe celeuma quando se analisa o instituto da antecipação de tutela, mormente no que tange ao inciso II, que trata dos chamados direitos evidentes(6).
Numa leitura do inciso II do artigo 273, pode-se afirmar que a revelia não estaria elencada nos casos em que se pode antecipar a tutela jurisdicional, uma vez que o inciso versa acerca da possibilidade de haver abuso do direito de defesa, e, para muitos, para que haja abuso de defesa, é necessária a existência de uma peça de defesa.
Baseando-se nessa premissa, assevera-se que a ausência de contestação e a conseqüente revelia impedem a antecipação de tutela por abuso de direito de defesa, porque esta pressupõe o oferecimento de contestação por parte do demandado(7).
Nesse sentido, já se afirmou que o regime da revelia teria se alterado com as modificações trazidas pelo instituto da antecipação de tutela. Com efeito, asseverou-se que, de ferrenha inimiga do réu no processo de conhecimento, a revelia passou a ser sua aliada, nos casos em que ele soubesse que suas alegações fáticas ou jurídicas não seriam consistentes(8), uma vez que seria mais vantajoso não apresentar contestação e aguardar o julgamento antecipado da lide, com a prolação de sentença. Posteriormente, poderia o réu interpor apelação, apresentando nessa ocasião argumentos mais sólidos do que os que apresentaria em contestação. O recurso de apelação produziria excetuando-se os escassos casos do artigo 520 do Código de Processo Civil efeito suspensivo, imunizando o apelante de uma possível invasão de seu patrimônio a ser ordenada pelo juiz(8).
A confusão que se estabelece tem raízes semelhantes à que ocorre com a hipótese de concessão do provimento antecipatório após finda a instrução probatória.
Antônio Cláudio da Costa Machado considera salutar ao sistema processual a situação há pouco exposta, afirmando que a aceleração máxima causada pela antecipação de tutela é impedida pela revelia, esta que é também uma forma de aceleração, porque "desencadeia o rápido proferimento da sentença de mérito, sob a roupagem de julgamento antecipado da lide" (10). Tal pensamento não deve prosperar, pelas mesmas razões expostas na resposta ao primeiro questionamento.
Com efeito, a revelia que provoca o julgamento antecipado da lide acelera efeitos jurídicos, enquanto que a antecipação de tutela acelera efeitos fáticos. Não podem os dois institutos funcionarem em contrapeso, haja vista que incidem em efeitos diversos da tutela jurisdicional. Destarte, resta patente que a revelia não pode deter a antecipação de tutela nos casos de abuso de direito de defesa.
Não há, outrossim, qualquer óbice seguro à extensão, aos casos de revelia, do provimento antecipatório estribado no inciso II do artigo 273, porque, presentes os pressupostos do caput do referido artigo, a ausência de contestação se constituiria numa espécie de abuso do direito de defesa qualificado, tornando ainda mais evidente o direito do demandante.
Mister salientar, em conclusão, que a antecipação de tutela para os casos em que há revelia não é a melhor forma de tutelar direitos evidentes porventura em jogo. Na realidade, os direitos evidentes deveriam ser tratados de forma imediata e definitiva também no que tange ao seu efeito jurídico(11). Entretanto, na falta de um melhor instrumento para a proteção de tais direitos evidentes, opta-se pela aplicação da antecipação de tutela, que se mostra a única capaz de tutelá-los de forma adequada(12).
NOTAS
- "E há termo final, relativamente ao juiz de primeiro grau: após a coleta de prova é-lhe vedado antecipar os efeitos da tutela, ainda que o receio de dano (art. 273, I) ou o abuso do réu (art. 273, II) apareçam nesta oportunidade. (...) E isso, consoante dispõe o art. 273, porque a antecipação se limita a um juízo de verossimilhança. Esgotada a atividade probatória, surgirá a certeza, ultrapassando a singela plausibilidade." (Antecipação de Tutela, In: Teresa Arruda Alvim Wambier (coord.). Aspectos Polêmicos da Antecipação de Tutela. São Paulo : Revista dos Tribunais, 1997, p. 29)
- "Atente-se para o fato de que o encerramento da audiência de instrução, seguida da apresentação de memoriais, é obstáculo à outorga da tutela antecipada, porque o juiz já está em condições de prover a tutela definitiva." (Tutela Antecipada. 2.ed. rev. São Paulo : Oliveira Mendes, 1999, p. 560)
- "Como eu disse, se por ocasião da sentença, surgir algum obstáculo que impeça a prolação da sentença por exemplo, verificou o juiz a necessidade de uma diligência indispensável , tem o autor o direito à antecipação da tutela, presentes os pressupostos que a justifiquem. Não, porém, se, não tendo sido anteriormente deferida a antecipação da tutela, chegou-se ao clímax do processo de conhecimento, quando deve o juiz outorgar a tutela de mérito, compondo o conflito. É que existe um ponto além do qual não mais tem cabimento a tutela antecipada, como existe também um limite além do qual não cabe a concessão de tutela cautelar em primeiro grau de jurisdição." (Tutela Antecipada na Reforma Processual Antecipação da Tutela na Ação de Reparação de Dano. 2.ed. Curitiba : Juruá, 1999, p. 66)
- Tutela Antecipada Volume I na Teoria Geral do Processo. São Paulo : LTr, 1999, p. 551.
- "Quando o recurso somente tem efeito devolutivo, normalmente, abre-se ensejo à possibilidade de execução provisória, ou melhor, da execução incompleta: praticam-se atos executivos que, contudo, ainda não realizam o direito do autor. Isto porque a execução provisória do modelo liberal de processo do Código de Processo Civil de 1973 (ou atrelada ao processo ordinário de conhecimento) somente admite a execução de atos garantidores da futura satisfação do direito." (Jorge Pinheiro Castelo, op. cit., p. 556)
- Luiz Fux, em sua obra Tutela de Segurança e Tutela da Evidência (fundamentos da tutela antecipada). São Paulo : Saraiva, 1996, faz a distinção entre os direitos chamados urgentes, que estariam albergados pelo inciso I do artigo 273 do Código de Processo Civil, e os evidentes, protegidos pelo inciso II.
- "Na hipótese de não oferecimento de contestação por parte do réu desde que não seguido de apresentação de outras respostas que possam ser reputadas como temerárias a antecipação dos efeitos simplesmente não é admitida." (Antônio Cláudio da Costa Machado, op. cit., p. 435). Mais adiante afirma o autor: "A revalorizada revelia, como fundamento do julgamento antecipado (art. 330, inciso II), é absolutamente incompatível com a antecipação da tutela, que depende de conduta comissiva do sujeito passivo do processo, salvo, como já dissemos, no caso de propósito protelatório que se caracterize sem contestação." (pp. 436 e 437).
- "Se antes da Lei n. 8.952/94 a revelia correspondia, em qualquer hipótese,
à pior conduta que o réu poderia adotar no processo de conhecimento, de agora em diante
a revelia assume a feição de uma das boas opções de que dispõe o demandado quando
não possui argumentos fáticos ou jurídicos de peso para se defender." (Antônio
Cláudio da Costa Machado, op. cit., p. 435).
"A situação processual em que se encontra o revel, portanto, é mais cômoda do que a daquele que apresenta defesa abusiva ou de cunho meramente protelatório." (José Rogério Cruz e Tucci. Tempo e Processo. São Paulo : Revista dos Tribunais, 1998, p. 128) - Quadra salientar que, na visão do demandante, pouco importa ser o recurso recebido com ou sem efeito suspensivo. Enquanto a decisão não transitar em julgado, a execução que se fará será provisória, não satisfazendo, conforme já afirmado alhures, o direito do demandante.
- op. cit., p. 436.
- Nesse sentido é o posicionamento de Ovídio Baptista da Silva: "Se o direito
apresenta-se como uma realidade de indiscutível evidência, a resposta jurisdicional não
deveria mais ser a tutela de simples segurança, e sim alguma forma de tutela definitiva e
satisfativa." (Curso de Processo Civil Volume III. 2.ed. rev. atual.
São Paulo : Revista dos Tribunais, 1998, p. 60)
No mesmo sentido, Jorge Pinheiro Castelo assim assevera: "Parece-nos que falta tratar legislativamente melhor situações que para serem adequadamente tuteladas, como da ausência de contestação e do reconhecimento do direito, exigem não a técnica antecipada na qual está ínsita a provisoriedade , mas sim uma técnica estruturada de forma específica, que poderia ser denominada técnica da tutela imediata e definitiva." (op. cit, p. 381) - "Enquanto o legislador não estabelecer a técnica diferenciada da tutela imediata e definitiva não temos dúvida que a utilização da técnica antecipada é a que melhor tutelará situações de direito líquido e certo, da ausência de contestação e do reconhecimento do pedido e outras situações de julgamento antecipado." (Jorge Pinheiro Castelo, op. cit., p. 381)