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Cobrança de dívida de jogo contraída por brasileiro no exterior

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Agenda 06/08/2006 às 00:00

CAPÍTULO III

ORDEM PÚBLICA

            1.CONCEITO

            A doutrina muito se debateu na tentativa de conceituar a ordem pública; diversos autores haviam se recusado a definir esse fenômeno, segundo Battifol (apud Baptista 1999:41), ou haviam naufragado nos recifes sem chegar ao bom porto da definição.

            Jacob Dolinger afirma, com propriedade, que o princípio de ordem pública é de natureza filosófica, moral, relativa, alterável e, portanto, indefinível (1996:345), acrescentando, ainda, que seus efeitos são imprevisíveis (1979:255).

            A dificuldade de conceituação da ordem pública levou a doutrina a classificá-la em interna e externa [25], a exemplificar seu campo de atuação, efeitos e conseqüências práticas. E, ao fazê-lo, segundo Dolinger (1979:3), acabou-se por desvirtuar o princípio.

            Na verdade, a ordem pública é um princípio subjacente ao sistema jurídico de cada nação, segundo Luiz Olavo Baptista (1999:42), confundindo-se com a concepção que o grupo social tem do direito e que o Estado tem de sua organização ou, conforme esclarece Baptista Machado (2002:259):

            A ordem pública escapa aos maiores refinamentos da análise porque transcende sempre, em último termo, as coordenadas analíticas com que a tentamos apreender. É que não se trata de um valor jurídico entre muitos outros, mas – digamos – do lugar geométrico de todos os valores jurídicos.

            Admitindo-se que a ordem pública é um fator exógeno à lei não há que se falar em ordem pública de direito internacional, nem tampouco aceitar a classificação, proposta por parte da doutrina, em leis de ordem pública interna e internacional.

            Entendemos que a ordem pública é um conceito uno [26] e será sempre de direito interno, uma vez que sua finalidade é apenas uma, na lição de Luiz Olavo Baptista (1999:42): manter a coerência do sistema jurídico. Assim, a ordem pública age no direito interno impedindo certos pactos, sendo aí confundida com as leis imperativas. No âmbito do direito internacional privado, este princípio assume, por vezes, o papel de negação do próprio DIP (Dolinger 1979:4), na medida em impede a aplicação da lei estrangeira indicada pela regra de conflitos. Assim, a ordem pública atua, ainda segundo Dolinger (1979:256),

            … no direito internacional privado, em um primeiro grau, ao rejeitar a aplicação de leis estrangeiras no foro e em um segundo grau, mais grave e mais restrito, quando rejeita reconhecimento a sentenças estrangeiras ou eficácia a contratos consolidados no exterior.

            2.LIMITES À APLICAÇÃO

            Tendo em vista o tema a que nos propusemos, resta saber quais seriam os limites de aplicação da reserva de ordem pública. A doutrina é pacífica no sentido de que o juiz somente deve utilizá-la quando o resultado da aplicação da lei ou do reconhecimento da sentença estrangeira for intolerável no foro, porque chocante com seu ordenamento jurídico. Segundo João Baptista Machado (2002:263), a divergência entre a lex fori e a lei estrangeira deve ter relevância decisiva, em virtude de se poder a vir a criar uma situação jurídica que, como corpo estranho e inassimilável, ficaria a «poluir» o dito ordenamento do foro. Mais adiante, o mestre português é ainda mais enfático em relação aos limites de aplicação da ordem pública:

            Em todo o caso, para a o. p. intervir, será sempre necessário que o direito estrangeiro aplicável

atropele grosseiramente a concepção de justiça de direito material, tal como o Estado do foro a entende. Será sempre preciso que esse direito estrangeiro comova ou abale os próprios fundamentos da ordem jurídica interna (pondo em causa interesses de maior transcendência e dignidade), que ele seja de molde a «chocar a consciência e provocar uma exclamação», para que se justifique um desvio da linha de justiça do DIP através da excepção da o. p..

            Esclarecedor o conceito dado pela Ministra Adelith de Carvalho Lopes, do Tribunal de Justiça do Distrito Federal [27]: A ordem pública, para o direito internacional privado, seria a base social, política e jurídica de um Estado, considerada imprescindível para a sobrevivência desse Estado.

            2.1Ordem Pública e Dívida de Jogo

            Pelos conceitos apresentados das ressalvas à aplicação da lei estrangeira e, especificamente, de ordem pública, resta saber se é possível o reconhecimento de dívida de jogo constituída no exterior.

            Como bem argumentou a eminente Desembargadora do DF, Adelith de Carvalho Lopes, o enriquecimento ilícito causado pelo não pagamento de uma dívida regularmente constituída chocaria mais a opinião pública brasileira do que a admissibilidade da cobrança de dívida de jogo [28].

            Ademais, o fato de o Brasil proibir algumas modalidades de jogos não significa que essa vedação seja considerada imprescindível à sobrevivência do Estado, uma vez que jogos existem que são lícitos e sua prática em nada abala a opinião pública.

            Mesmo que se admitisse a nomenclatura de leis de ordem pública e que estas seriam as normas imperativas ou proibitivas, ainda assim não se poderia dizer que o jogo se enquadraria nesse tipo de leis, por dois motivos:

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            a) as normas proibitivas fulminam de nulidade as avenças praticadas entre as partes; o Código Civil prevê, no caput do artigo 814, que não se pode recobrar a quantia, que voluntariamente se pagou. O texto legal é claro: a lei estabelece conseqüências diversas da nulidade, no caso de pagamento voluntário de dívida de jogo, não se podendo considerar, portanto esse dispositivo como sendo uma lei imperativa ou de ordem pública.

            b) O legislador houve por considerar a participação em jogos de azar como sendo um tipo penal menor. Fosse imprescindível à sobrevivência do Estado, a conduta seria qualificada como crime, não como mera contravenção penal.

            A homologação de sentença estrangeira condenatória ao pagamento de dívida de jogo não terá o condão de revogar o Código Civil, nem tampouco de revestir de legalidade os jogos ilícitos, quando praticados internamente. Significa apenas o reconhecimento dos efeitos de uma conduta lícita, no país onde foi praticada, de acordo com o disposto no artigo 9º da LICC.

            Somente reconhecendo como válida e exigível tal conduta evitaremos o enriquecimento sem causa de brasileiros que viajam para locais onde o jogo é permitido – até como forma de incentivo ao turismo –, assumam livremente obrigações, e retornem ao Brasil, protegidos por nossa legislação, que impede a satisfação de seu crédito.


CAPÍTULO IV

CONCLUSÃO

            1.Cada país, no âmbito de sua competência interna, estabelece quais são os jogos e apostas permitidos – e proibidos – em seu território. No Brasil, algumas modalidades são permitidas, boa parte delas patrocinados pelo governo federal.

            2.Inúmeros brasileiros viajam para países em que cassinos são legalizados – até como forma de incentivo ao turismo – e acabam por regressar ao Brasil, sem honrar dívidas de jogo legalmente constituídas, fato que leva os credores a promover a cobrança judicial dos seus haveres.

            3.A jurisprudência brasileira tem se mostrado dividida quanto à admissibilidade da cobrança de dívida de jogo. Os que entendem ser incobrável tal débito fundamentam sua posição em dois dispositivos legais:

            3.1.O artigo 814 do CC/2002 (redação equivalente ao artigo 1.477 do CC/1916) dispõe que as dívidas de jogo ou de aposta não obrigam a pagamento.

            3.2.O reconhecimento de tal dívida importaria em atentado à ordem pública, nos termos do artigo 17 da LICC, em virtude de o jogo praticado em cassinos ser considerado como contravenção penal, nos termos do artigo 50 da LCP.

            4.Entendemos que tais posições estão equivocadas, pelas seguintes razões:

            4.1.O artigo 814 do CC/2002 só tem aplicabilidade quando a dívida de jogo for contraída no território nacional. Sendo contraída em outro país, vigora o artigo 9º da LICC: para qualificar e reger as obrigações, aplicar-se-á a lei do país em que se constituírem. Para as obrigações, o direito brasileiro elegeu a elegeu como elementos de conexão a lei do local da realização do ato jurídico para reger suas formalidades (locus regit actum), bem como sua substância (lex locus actus).

            4.2.O princípio da ordem pública só deve ser utilizado se o resultado da aplicação da lei ou do reconhecimento da sentença estrangeira levar a um resultado intolerável, de forma a abalar os próprios fundamentos da ordem jurídica interna. Não nos parece o caso da dívida de jogo, sob qualquer ótica que se analise a questão:

            4.2.1.Mais intolerável para a ordem pública que reconhecer a dívida de jogo seria aceitar o enriquecimento sem causa de alguém que assumiu livremente uma obrigação considerada lícita no local onde foi constituída, abusando da boa-fé do credor.

            4.2.2.Admitida a terminologia de leis de ordem pública, a doutrina as reconhece como sendo as leis absolutamente imperativas ou proibitivas, cujo descumprimento é fulminado por nulidade. Tal não ocorre com o jogo, uma vez que o caput do artigo 814 do CC/2002 dispõe que não se pode recobrar a quantia, que voluntariamente se pagou.

            4.2.3.A prática de jogos de azar não pode ser considerada fundamental da ordem jurídica interna, suficiente à aplicação da reserva de ordem pública. A própria lei as define, não como crime, mas como mera contravenção, um tipo penal menor.

            5.Em síntese, não é possível encontrar no ordenamento jurídico brasileiro qualquer dispositivo que impeça a cobrança de dívida internacional de jogo.


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Sobre o autor
Armindo de Castro Júnior

Advogado e professor universitário, doutorando em Direito Civil e mestre em Ciências Jurídico-Empresariais pela Universidade de Coimbra (Portugal).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CASTRO JÚNIOR, Armindo. Cobrança de dívida de jogo contraída por brasileiro no exterior. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1131, 6 ago. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8752. Acesso em: 18 nov. 2024.

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