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A comissão de alto nível.

História da Emenda Constitucional nº 1, de 1969

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Os trabalhos da Comissão

O registro das reuniões da Comissão de juristas e o texto do projeto que Costa e Silva recebeu, no dia 26, revelam não apenas os embates entre as duas posições antagônicas presentes no governo e no movimento, mas principalmente uma tendência de aceitação, entre os participantes, da maior parte das teses consolidadas por Pedro Aleixo.

Entretanto, no texto final da Comissão, incorporadas as sugestões dos membros do Conselho de Segurança Nacional e dos ministros militares, a manutenção do AI 5 prenunciava a derrota do projeto de dar início ao processo de democratizar o país. Os acontecimentos posteriores, que culminaram com a doença e o impedimento de Costa e Silva, resultaram numa vitória da linha dura, com a qual se afinava o ministro Gama e Silva.

A polarização entre as duas tendências fica evidenciada principalmente nas discussões dos temas políticos. Visto por setores da linha dura como um entrave à continuidade da revolução, o Congresso e todos os assuntos a ele relacionados provocaram intensas polêmicas, nas quais se confrontavam, principalmente, Pedro Aleixo e Gama e Silva. As intervenções dos demais membros da comissão revelam ainda que a posição de Gama e Silva era, na maioria das vezes, solitária. Na maior parte das vezes, o Presidente fazia questão de demonstrar sua simpatia pela posição defendida por seu vice.

São recorrentes as manifestações contrárias aos parlamentares, nas falas de Gama e Silva, sempre que se discutem assuntos do legislativo, como o decoro parlamentar, as imunidades parlamentares, a concessão de licença para processar parlamentares, a perda de mandato por exercício de função no poder legislativo, o período de funcionamento do Congresso, o número de deputados e senadores, as condições para apresentação de emenda constitucional, a iniciativa das leis, o colégio eleitoral, os partidos políticos, as inelegibilidades, a separação e harmonia dos poderes, as eleições indiretas. A animosidade do ministro manifestou-se até na discussão referente ao subsídio dos parlamentares.

Os debates estão reproduzidos por inteiro neste volume.

Não pretendemos, nem seria possível, comentar todos os pontos abordados. Discutiremos, no entanto, brevemente, alguns momentos particularmente significativos em termos da oposição principal, que, em nossa opinião, atravessou os trabalhos da Comissão e refletia as tensões do próprio movimento.

Na discussão sobre a forma de escolha dos prefeitos de capitais e municípios de interesse para a segurança nacional, Pedro Aleixo defendeu sua nomeação pelos Governadores. Apenas naqueles de importância para a segurança nacional o Presidente da República seria ouvido. Gama e Silva, por outro lado, sugeriu que todos fossem nomeados pelo Presidente da República. O Presidente Costa e Silva sustentou a posição do vice, argumentando que a sugestão do Ministro da Justiça feria a autonomia dos governadores, aos quais deveria caber a indicação.

Sobre o funcionamento do Congresso, Rondon Pacheco defendeu um período mais longo de atividade e ponderou que quem precisava mais da Câmara era o próprio Executivo. "Nós é que damos trabalho à Câmara", afirmou. Gama e Silva aproveita a oportunidade para criticar mais uma vez o Congresso: "Nesse período de dois anos e meio como Ministro da Justiça, se formos apurar o que a Câmara produziu de matéria útil, verificaremos que poderia ter feito num mês." E conclui: "A Câmara é que dá trabalho ao Executivo. São convocações, são comissões parlamentares de inquérito e, principalmente, pedidos de informações. Estes têm de ser extintos."

A discussão sobre imunidade parlamentar está presente em quase todos os períodos de reunião da Comissão, como seria de se esperar. Gama e Silva insiste, por diversas vezes, na tese da dispensa da licença da Casa de origem para se instalar processo contra parlamentar. Pedro Aleixo, contrariamente, defende a manutenção da licença para a instauração do processo. Em discussão sobre o decoro parlamentar, Miguel Reale sugere a redação seguinte: "cujo procedimento for declarado incompatível com o decoro parlamentar ou atentatório à dignidade das instituições vigentes, porque o decoro parlamentar simplesmente traria o problema da conceituação. Preveniríamos a hipótese de o parlamentar comparecer à tribuna para atentar contra a dignidade das instituições vigentes. Seria melhor acrescentarmos essa emenda para tornar mais positivo o texto."

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Gama e Silva defende a perda de mandato do parlamentar que exerça qualquer função no Poder Executivo. A intenção manifesta é prevenir o centro real de poder da contaminação do jogo da política. Para ele, "o fato de o parlamentar vir integrar órgão do Poder executivo é o fruto de entendimentos políticos, de conchavos políticos e de cambalachos políticos".

A questão da divisão e harmonia dos poderes propiciou um debate exemplar das divergências em jogo. O ministro da Justiça manifestou seu entendimento sobre a obsolescência da expressão "poderes independentes e harmônicos". Na sua opinião, a fórmula havia perdido totalmente o sentido, estava completamente superada. "Mas a tendência – e esse o motivo fundamental da revolução – é dar supremacia ao Poder Executivo, a fim de que, respeitada a função de cada qual, se possa evitar a superveniência de crises futuras, de choques entre poderes (...) é o que notamos nas constituições modernas de países democráticos como a França e os próprios Estados Unidos. Verificamos que lá o homem mais politizado é o Presidente da República." E completa: "(...) Senhor Presidente, temos de fazer uma constituição rígida, forte. Não podemos mais apegarmo-nos a conceitos."

A resposta de Costa e Silva, criticando seu ministro da Justiça, demonstra o quanto ele se preparara para essa discussão. Com efeito, o esforço de atualização de Costa e Silva para acompanhar as discussões de cunho mais teórico, mediante estudos e leituras de autores de direito constitucional, principalmente, é relatado por Carlos Chagas. Miguel Reale (1986-87), por sua vez, assinala as manifestações para ele inesperadas, de conhecimentos jurídicos do Presidente.

Após longos e acirrados debates, de que participam Pedro Aleixo, Hélio Beltrão e Carlos Medeiros, em defesa da divisão e harmonia dos poderes, o Presidente coloca a matéria em votação e todos se manifestam pela manutenção da fórmula. Ao comentar a aprovação da expressão já existente no texto, Costa e Silva alerta para a necessidade de manter a tradição, acrescentando: "Vamos modificar tanto, que é melhor deixar alguma coisa."

A comissão aprova a redução do número de senadores para dois por Estado, numa votação em que Pedro Aleixo, inicialmente contrário, altera seu voto para garantir a unanimidade da decisão.

A aprovação do Procurador-geral da República, após o crivo do Senado, é duramente criticada por Gama e Silva: "é intervenção demasiada do Poder Legislativo em matéria que deve ser da competência do Executivo. Temos de acabar com esse liberalismo que ainda está imperando no Brasil. Acho que deveríamos eliminar o máximo possível." Nessa questão, o ministro reafirma a coerência de suas posições.

Depois de muita discussão sobre as condições para apresentação de emenda constitucional, Gama e Silva insiste na tese da diferença de tratamento de propostas originárias do Executivo e do Legislativo, posição seguida por Miguel Reale. Discutia-se a garantia da apreciação das propostas do Executivo, garantia de que não gozariam as de iniciativa de parlamentares. Todavia, o texto é suprimido e permanece a redação da Constituição de 67.

Miguel Reale apresenta uma proposta que foge um pouco à norma tradicional da iniciativa das leis. "Temos hoje um fenômeno fundamental, que são os grupos de pressão que atuam à margem do Congresso. É melhor recebê-los na sua realidade, de maneira que, em lugar de o projeto ser apresentado pelos Deputados, através de formas indiretas, o seja pelas próprias organizações, conservando-se tal como é". Pedro Aleixo comenta que em outros países, como os Estados Unidos, esses grupos são registrados e atuam no congresso. Debate-se o assunto e Reale insiste: "A ciência política moderna não pode fechar os olhos diante desse fenômeno. Do ponto de vista empresarial, ainda se aceita. São os órgãos maiores da representação, da categoria dos empresários."(...) O elemento decisório, que caracteriza o ato político, permanece na Câmara, não pertence a esses outros órgãos. Eles apenas põem em movimento, de maneira direta."

Aos argumentos de Hélio Beltrão, de que outras corporações, como a Igreja, a Universidade, poderiam integrar esse leque, e que talvez não valesse a pena inovar, Costa e Silva acrescenta que, com a ampliação, os congressistas perderiam o cunho de representação popular. "O Deputado passaria a ser também acionado por essas corporações. É um perigo muito grande, ainda mais com o poder econômico a predominar. Há também o poder de massa, que é outro perigo muito grande. Enfim, está em discussão. Os senhores resolvem." Pedro Aleixo opta pelo processo clássico, pois entende que, se o interesse for defensável, qualquer um poderá apresentar o projeto e ele imediatamente encontrará eco entre Deputados e Senadores. O Presidente encerra a discussão: "A idéia é sedutora, brilhante até. Talvez para mais tarde, quando tivermos outro grau de politização, quando estivermos mais amadurecidos. O Brasil ainda está meio confuso."

Pedro Aleixo relata a supressão da votação secreta em todos os casos que poderiam suscitar problemas. "Tem-se entendido, na prática parlamentar, que quando um deputado pede uma votação secreta, aquela votação a favor da votação secreta já significa a descoberta do voto."

Instado a se manifestar sobre colégio eleitoral e eleição indireta, Pedro Aleixo se posiciona contra: "do ponto de vista proposto, nós estamos afastando cada vez mais a representação popular do voto, que é indireto mas é uma representação do povo, dos cidadãos." Discute-se ainda, dentro do tema, qual será o congresso que elegerá o próximo Presidente. Mais uma vez, Pedro Aleixo alerta para o fato de que a próxima eleição presidencial será decidida "por um Congresso no ocaso."

O capítulo da segurança nacional foi redigido com modificações trazidas pelo Conselho de Segurança Nacional a Pedro Aleixo, que as acatou, acrescentando que o capítulo lhe parece tranqüilo, pois contém a orientação dos técnicos. Miguel Reale sugere que se use segurança nacional em minúsculas, ao que Gama e Silva intervém: "Acho que se poderia dar outra redação (...) o conselho de segurança nacional é o órgão de mais alto nível (...)".

As discussões prosseguem, centradas na participação ou não do Presidente da República no conselho. Pedro Aleixo e Gama e Silva discordam, mais uma vez, quanto a esse ponto. O Vice-Presidente insiste na condição de membro do Conselho, com direito a voto portanto, que deve ser reservado ao Presidente. Diz ele: "Está no art. 83. Dele participa." O ministro da Justiça, ao contrário, enfatiza o caráter de assessoramento do órgão e, conseqüentemente, a exclusão do Presidente de sua composição. Com ele concorda Miguel Reale: "Seria um modo de assessoramento. Tenho a impressão de que o Presidente da República não deve participar (...)".

Gama e Silva aproveita a discussão sobre inelegibilidades para, mais uma vez, manifestar sua prevenção contra os parlamentares: "(...) pessoas dotadas de absoluta incompatibilidade ética para o exercício do mandato têm sido eleitas, e praticaram, em sua vida particular, em sua vida pregressa, atos de improbidade, delitos cuja pena, na verdade, foi extinta, ou por prescrição, ou por outro motivo qualquer. Acho que para preservar os ideais da revolução, necessário seria que a lei complementar que vai regular a inelegibilidade desses pudesse compreender isso."

Na discussão sobre partidos políticos, o pluripartidarismo, a sublegenda, as coligações partidárias estão na pauta. Forma de convivência partidária, minoria dentro do partido, forma de indisciplina partidária, são opiniões que se complementam no correr do exame do projeto, em que se destaca a avaliação de Rondon Pacheco." A sublegenda existe para a solução de problemas municipais. Ela evita o fortalecimento do adversário. No caso, a sublegenda evita o fortalecimento do MDB nos municípios."

Na discussão sobre direitos e garantias individuais, Gama e Silva propõe a supressão da soberania do júri.

No capítulo dedicado às imunidades, Gama e Silva voltou a defender a dispensa da licença para processar parlamentar, contra a posição defendida por Miguel Reale, que propõe assegurar ao paciente a mais ampla defesa. Gama e Silva concorda para "demonstrar o liberalismo do texto", porém sem licença. Costa e Silva manifesta-se pela manutenção da licença, apoiando entendimento de Pedro Aleixo. Gama e Silva lamenta ter sido vencido naquilo que considera o seu parágrafo.

Na discussão sobre o estado de sítio, é mantido o texto de 67, ao qual se acrescenta o estado de emergência, e se volta a debater a questão das imunidades. Gama e Silva ainda insistirá no assunto, depois da discussão das Disposições Gerais e Transitórias, reforçando sua posição irredutível de que se deve retirar a exigência de licença da casa respectiva para processar parlamentar.

Entram em pauta, finalmente, a exclusão de apreciação judicial dos atos da revolução e a vigência do AI 5. Também se discute a competência privativa do Presidente da República, ouvido o Conselho e Segurança Nacional, para revogar ou comutar as sanções impostas por força de Atos Institucionais, ocasião em que Costa e Silva desabafa: "Nunca vi um Conselho mais duro". Gama e Silva não concorda com o Presidente e quer mais :"Acho que esse parágrafo único não terá boa repercussão porque já é um prenúncio de anistia." Defende também a supraconstitucionalidade dos atos institucionais, que não podem ser subordinados ao Congresso.

Na avaliação de Miguel Reale, não havia condições para o retorno imediato à normalidade democrática. Tratava-se de construir um caminho, um cronograma, para esse retorno. Nesse caminho, o governo Costa e Silva seria a fase de transição. Transcorreria com a suspensão do habeas corpus para crimes políticos. Em compensação, os Poderes Legislativo e Judiciário seriam excluídos de imediato dos efeitos do AI 5, garantindo-se a imunidade dos parlamentares e a vitaliciedade dos magistrados. O AI 5 seria remetido às Disposições Constitucionais Transitórias, com revogação progressiva prevista, por iniciativa do Presidente, ouvido o Conselho de Segurança Nacional. Não haveria mais atos.

Após o encerramento das discussões, Pedro Aleixo consolidou as sugestões e as entregou ao Presidente. Nos meios militares, fortalecia-se a tese do exame do anteprojeto pelos membros do Conselho de Segurança Nacional. Todos os membros do CSN, com exceção do Vice-Presidente, se manifestaram contrários à linha democratizante que Pedro Aleixo tentara imprimir ao projeto, o que se verifica, principalmente, pela sugestão expressa de manutenção do AI 5. Acrescentaram dispositivo dizendo que o Presidente poderia revogar qualquer um de seus artigos, o que deixava implícita a continuidade de sua vigência. Derrotaram Pedro Aleixo também ao manterem as eleições indiretas para Presidente por um congresso em final de mandato e as eleições para governador também de forma indireta.

A forma final do texto, redigida por Pedro Aleixo, incorporou as modificações que atestavam sua derrota. Para registrar sua posição, enviou uma carta ao Presidente, em que lamentava que o processo tivesse se desviado do que ambos pretendiam, e acrescentava que os dois eram os grandes derrotados de todo o episódio. Conforme relata Carlos Chagas, "Costa e Silva o animou, enfatizando que, apesar de tudo, o País voltaria ao regime constitucional, e que até o final de seu governo haveria condições para se completar a obra, revogando o AI 5. Para demonstrar seu apreço ao Vice-Presidente, pediu-lhe que com sua própria letra alterasse o dispositivo que reduzia para dois o número de senadores por estado. ‘Vamos manter os três, Dr. Pedro. Sei que o senhor acatou a idéia da redução, desde o início, mas que no fundo a lamentava muito.’" (Carlos Chagas, op. cit., p. 257)

O trabalho, completado no dia 29 de agosto, sofreu quase quarenta alterações depois que a Junta Militar assumiu o comando do governo, do Estado e da revolução, logo nos primeiros dias da doença que inabilitou Costa e Silva.

Sobre os autores
Caetano Ernesto Pereira de Araújo

consultor legislativo do Senado Federal

Eliane Cruxên Barros de Almeida Maciel

consultora legislativa do Senado Federal

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARAÚJO, Caetano Ernesto Pereira; MACIEL, Eliane Cruxên Barros Almeida. A comissão de alto nível.: História da Emenda Constitucional nº 1, de 1969. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1137, 12 ago. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8779. Acesso em: 24 nov. 2024.

Mais informações

Texto originalmente publicado no site da Consultoria Jurídica do Senado (<a href="http://www.senado.gov.br/conleg/">http://www.senado.gov.br/conleg/</a>).

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