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Um retrato da exclusão social da praia na música “As Caravanas”, de Chico Buarque

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5. A OPRESSÃO E A DESIGUALDADE

Se o espaço é um produto social e político, é possível garantir que ele seja mais ou menos favorável a todos, ou, ao contrário, que seja exclusivo e controlado por alguns. Young (1988), ao buscar identificar as injustiças que certos grupos sociais são vítimas, elaborou as bases teóricas de uma definição de opressão, não focando em critérios econômicos, mas na justiça social, na alteridade e em uma política territorial justa.

O conceito de opressão ao qual ela se refere diz respeito a fenômenos estruturais que imobilizam ou reduzem um grupo. Mas o que é um grupo? Para ela, estar em grupo é compartilhar com ele um modo de vida que define a identidade de uma pessoa e pela qual outras pessoas a identificam (YOUNG, 1988, p. 272).

Ainda discorrendo sobre esse tema, Young esclarece que tradicionalmente a opressão significa o exercício da tirania por um grupo governante, entretanto, nem sempre as pessoas são oprimidas por tiranos cruéis e malvados, pois em muitos casos, um liberal bem-intencionado pode impor restrições na sociedade como um todo, porém seu impacto é sentido com mais peso em determinados grupos, limitando sua liberdade. Segundo a autora, “para todo grupo oprimido, há um grupo que é privilegiado em relação a esse grupo” (1988, p. 276).

A opressão também pode ser o resultado das escolhas políticas de determinadas pessoas e que acabam provocam reflexos negativos, criando barreiras, imobilizando e reduzindo um outro grupo ou categoria de pessoas. O foco de pesquisa de Young foram os Estados Unidos, onde ela delimitou, como grupos oprimidos, as mulheres, os negros, os porto-riquenhos e a maioria dos americanos de língua espanhola, nativos americanos, judeus, lésbicas, gays, árabes, asiáticos, idosos, trabalhadores, pobres e pessoas com deficiência física ou mentais (1988, p. 270).

De acordo com Young (1988, p. 271- 278), são cinco as categorias ou as faces de opressão:

  1. Exploração - É o ato de usar o trabalho das pessoas para gerar lucro, não sendo as mesmas remuneradas de forma correta, por exemplo, trabalhadores que possuem salários desproporcionais aos seus esforços, isso considerando o quanto de dinheiro que eles ganham para a empresa;

  2. Marginalização - É o ato de relegar ou restringir um grupo de pessoas a um nível social mais baixo, à margem da sociedade, de forma permanente. O mundo do mercado de trabalho não os contrata, é um processo de exclusão que está relacionado em especial a indivíduos não-brancos, o que é para Young, pior que a exploração, pois as pessoas marginalizadas estão excluídas da cidadania, da vida social, como os idosos, as mães solteiras, os moradores de rua, os sem emprego e sem educação formal;

  3. Impotência - A ideia de impotência está ligada à teoria social de Marx: algumas pessoas "têm" poder enquanto outros "não têm" poder algum. Os indivíduos não participam dos processos democráticos básicos, pois acreditam que não podem ou que a sua participação não significa nada;

  4. Imperialismo cultural – É estabelecer como padrão a ser observado e imitado a cultura da classe sócio e economicamente dominante. Os grupos que detêm o poder controlam como as demais pessoas devem se comunicar e comportar, tornando-o invisível e ao mesmo tempo estereotipado;

  5. Violência - É provavelmente a forma mais óbvia e visível de opressão. Membros de alguns grupos sabem que devem temer ataques aleatórios, que não necessariamente precisam ser motivados, mas o simples fato deles pertencerem a aquele grupo, ou seja, é uma violência sistematizada. Qualquer mulher, por exemplo, tem motivos para temer o estupro, bem como todo indivíduo negro pode ser vítima do crime de racismo e ou injuria racial.

Já a desigualdade “não é apenas uma categorização: é algo que viola uma norma moral de igualdade entre seres humanos” (THERBORN, 2010, p. 145).

Para entender a perspectiva de Therborn, primeiro devemos saber como ele distingue diferença de desigualdade. A diferença pode ser horizontal ou vertical, ao se referir a posição que uma pessoa está em comparação a outra, se abaixo ou superior, melhor ou pior. É uma espécie de ranking, como na ordem de chamada dos aprovados em um concurso público. Já a desigualdade é uma diferença hierárquica evitável e moralmente injustificável (2010, p. 146).

Ele exemplifica, ao dizer que podemos considerar como diferença a comparação entre o preparo físico de um indivíduo jovem médio com a capacidade física de um indivíduo sexagenário médio, enquanto a desigualdade seriam as desiguais oportunidades de vida das mulheres em comparação aos homens, e de homens negros a homens brancos.

Therborn divide a desigualdade em três tipos. A primeira é a desigualdade vital, ou desigualdade de saúde e de morte. A vida humana no planeta tem início, meio e fim, porém, dependendo do lugar que você tenha nascido, a probabilidade de usufruir uma vida mais longa ou curta, e ter ou não gozar de boa saúde, podem aumentar ou diminuir, já que “a saúde e a longevidade são distribuídas segundo padrões sociais facilmente identificáveis” (2010, p. 146).

O segundo tipo é a desigualdade existencial. Ela restringe a liberdade de ação de certas categorias de pessoas, “significa a negação de (igual) reconhecimento e respeito, e é um forte gerador de humilhações para os negros, índios, mulheres em sociedades patriarcais, imigrantes pobres, membros de castas inferiores e grupos étnicos estigmatizados”(2010, p. 146). Para que ela se configure não é necessário que se apresente de forma ostensiva, como no antigo regime de Apartheid na África do Sul, pois também opera de modo eficaz através de hierarquias de status mais sutis.

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O terceiro tipo diz respeito a desigualdade material, que significa que as pessoas possuem recursos (ou bens) muito distintos. Ela se divide em dois aspectos. Um deles é a desigualdade de oportunidades, ou seja, de acesso à educação, à carreira e aos contatos sociais (2010, p. 147). O outro aspecto é a desigualdade de recompensa ou de resultado, que se constitui na distribuição da renda e da riqueza na sociedade (2010, p. 147).


6. NEM TODOS PODEM IR E VIR

No início do ano de 2015, a polícia carioca, na tentativa de acabar com os arrastões, interrompia, durante o trajeto, os ônibus que vinham da Zona Norte da cidade em direção à praia. Os jovens eram retirados dos ônibus e apreendidos, sendo que em apenas um dia totalizaram cento e cinquenta apreensões de menores. (UOL, 2015). Mais uma vez nos remetemos a uma estrofe da música de Chico, “tem que bater, tem que matar, engrossa a gritaria, filha do medo, a raiva é mãe da covardia”.

Ao fazerem isso, sem que houvesse a ocorrência de crime em flagrante, cometeram num total desrespeito ao direito de ir e vir, expresso na Constituição Federal de 1988, que se encontra no artigo 5º, inciso XV: “é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou sair com seus bens” (BRASIL, 1988).

Em setembro do mesmo ano, a Justiça Estadual fluminense acatou o pedido de Habeas Corpus preventivo feito pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro e tal prática foi interrompida. Em resposta à decisão judicial, o então secretário de segurança, José Mariano Beltrame, afirmou que a polícia estava sendo coagida a não trabalhar e que tais procedimentos não se caracterizavam em racismo, e sim com proteger a vulnerabilidade dos mesmos, “pois como é que um jovem sai de Nova Iguaçu, a 30 km de distância da praia, sem dinheiro para comer, para beber, para pagar a passagem, só com uma bermuda?” (UOL, 2015).

Atitudes como essa são corroboradas com a fala de alguns moradores, que à época, apoiavam não apenas a polícia, mas também a criação de grupos de moradores para enfrentar as possíveis arruaças a serem provocadas pelos rapazes suburbanos e a mudança ou extinção de linhas de ônibus, para dificultar a viagem a praia:

Tem que fazer mesmo a abordagem nos ônibus para eles ficarem lá. O que eles vêm fazer aqui? Por que não vêm curtir a praia de forma civilizada? Se eles querem violência, a gente tem que enfrentá-los com violência. A polícia não está dando conta. Os rapazes aqui têm que tomar providência. Já que eles vêm agredir a gente, temos que agredi-los também (UOL, 2015).

O Jornal Extra on line publicou, por ocasião dessas apreensões, uma matéria onde uma equipe do jornal acompanhou uma dessas ações policiais. De um grupo de quinze rapazes, que foi apreendido ao tentar chegar em Copacabana, somente um deles era branco, os demais eram negros e em comum tinham o fato de serem pobres e nenhum deles portava drogas ou armas (2015).

— Nós “estava” dentro do ônibus, não estava com nada. Nós “é” humilhado na favela e na “pista” — disparou Y., de 14 anos, que havia saído do Morro São João, no Engenho Novo, com quatro colegas (EXTRA, 2015).

— Tiraram “nós” do ônibus pra sentar no chão sujo e entrar na Kombi. Acham que “nós” é ladrão só porque “nós” é preto — disse X., de 17 anos, morador do Jacaré, na Zona Norte (EXTRA, 2015).

Na lei nº 7.716/1989, que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor, o crime de racismo é caracterizado por uma conduta discriminatória dirigida a um determinado grupo ou coletividade. Ele não depende de representação da vítima, podendo a denúncia ser feita pelo Ministério Público. A injúria racial é a ofensa à honra de uma pessoa, usando, para isso, elementos como a raça, cor, etnia, religião e nesses casos, a vítima precisa entrar com representação. Em seus vinte e dois artigos, nove possuem no seu núcleo a repressão a conduta de negar o acesso de alguém a alguma coisa ou a algum lugar (grifo nosso).

As redes sociais também ajudam na organização e disseminação do preconceito:

Criada no Facebook na semana passada, a página "Linha 474 - O inferno do Rio" já reúne centenas de pessoas que pedem o fim do itinerário de ônibus que liga o Jacaré, na zona norte, ao Leblon, na zona sul. A descrição da página afirma que a linha "aterroriza a zona sul da cidade maravilhosa com pessoas que vão à praia com o intuito de apenas criar baderna e desordem na cidade" (UOL, 2015).

Um mês após o Habeas Corpus preventivo da Defensoria Pública, a secretaria de transportes encurtou definitivamente o trajeto da linha 474, deixando o mesmo de ir até o Leblon. Havia dezoito linhas de ônibus que faziam a ligação de outras zonas da cidade para as praias de Copacabana e Leblon. Dessas dezoito, seis foram extintas e doze passaram a ter ponto final em Centro, em Botafogo e na Glória, que são bairros na Zona Sul, entretanto são mais afastados do trecho nobre da costa (O DIA ON LINE, 2017).

É uma matemática simples: se dificultamos o trajeto até a Zona Sul, os estranhos terão dificuldade em ir para Copacabana e demais praias, porém, além de tratar todos como delinquentes, todos os demais, sejam eles trabalhadores, famílias com crianças, ou pessoas que utilizam os meios de transporte público também serão punidos pela incapacidade do sistema público como um todo de lidar com a violência e a insegurança, que infelizmente é estrutural.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

As cidades não deveriam possuir espaços diferenciados, entretanto, nem todos os lugares são vividos e desfrutados da mesma forma, ainda que sejam nos seus espaços comuns. Existem alguns mecanismos sociais que muito difíceis de serem abolidos, porque eles fazem uma separação, são uma espécie de linha imaginária que dividem alguns territórios e as classes de pessoas que ali vivem.

É uma espécie de equilíbrio das coisas, um tipo de lei não escrita, ou juridicamente falando, um costume, determinando que a praia e o direito a usufrui-la pertençam aos moradores locais, em especial os brancos, e somente será permitido o seu uso á aquele que obedeça as regras não escritas daquela comunidade, e só então os mesmos serão elevados a categoria de possuidores, ou merecedores do acesso ao mar e seus prazeres.

Os relatos de violência racista, sexista ou homofóbica podem ser motivados pelo desejo de se manter privilégios ou a superioridade de um grupo dominante sobre outro e concordamos que o medo da violência ou da mera possibilidade de vir a sofrê-la funciona como elemento inibidor da busca de melhores chances ao se disputar espaços, sejam eles territoriais ou sociais.

As pessoas oprimidas ao longo da história ganharam uma maior compreensão e consciência de si e dos outros através da educação, alfabetização e autorreflexão e que as causas de tal violência pode ser atribuídas a estruturas inconscientes de identidade.

É óbvio que o crime de arrastão deve ser reprimido e que ações preventivas fazem parte dessa estratégia, o problema é quando elas atingem de forma indiscriminada pessoas que desejam apenas se divertir na praia, seja qual for a sua cor ou origem geográfica, pois ao serem recebidos com desprezo e discriminação, a reação pode ser exatamente aquilo ao qual o Estado quer evitar, ou seja, mais violência.

Chico Buarque utiliza de sensibilidade para nos mostrar que a caravana do Arará, da Chatuba, e do Irajá não é bem-vinda. Essas caravanas retratam a imagem de um país, de uma sociedade que tenta resolver através da repressão e da violência problemas sociais graves, e ao fazer isso só os agrava.


REFERÊNCIAS

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BUARQUE, Chico. As Caravanas. Rio de Janeiro: Biscoito Fino, 2017. Disponível em https://open.spotify.com/album/1s1A5EqQwJkGSXGO5ZwJpu?highlight=spotify:track:4cEfEKnJ34cV4qnqc57oOG. Acesso em: 13 fev. 2020.

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EXTRA ON LINE. PM aborda ônibus e recolhe adolescentes a caminho das praias da Zona Sul do Rio . Disponível em: https://extra.globo.com/noticias/rio/pm-aborda-onibus-recolhe-adolescentes-caminho-das-praias-da-zona-sul-do-rio-17279753.html. Acesso em: 08 out. 2019.

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Sobre os autores
Carla Torquato

Doutora em Função Social do Direito - FADISP. Coordenadora do Grupo de Estudos de Direito de Águas (GEDA/UEA). Professora da Universidade do Estado do Amazonas.

Ricardo dos Santos Castilho

Prof. Dr. dos Programas de Doutorado e Mestrado em Função Social do Direito na Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo (PPGD-FADISP) e Diretor Executivo e Acadêmico da Escola Paulista de Direito – EPD.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TORQUATO, Carla; CASTILHO, Ricardo Santos. Um retrato da exclusão social da praia na música “As Caravanas”, de Chico Buarque. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7643, 4 jun. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/88507. Acesso em: 19 dez. 2024.

Mais informações

Artigo apresentado para obtenção de nota da disciplina seminário de pesquisa, ministrada pelo pelo Professor Dr. Ricardo Castilho.

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