Capa da publicação Exclusão social da praia e a música “As Caravanas”, de Chico Buarque
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Um retrato da exclusão social da praia na música “As Caravanas”, de Chico Buarque

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O texto faz uma análise da desigualdade social na divisão do espaço público das praias da Zona Sul carioca, a partir da letra da música de Chico Buarque.

INTRODUÇÃO

A música e a literatura invariavelmente são utilizadas como instrumentos para apontar as mazelas do cotidiano, chamando a atenção para comportamentos que, na maioria da vezes, de tão corriqueiros, passam desapercebidos pela sociedade. De forma direta ou indireta, o artista retrata em sua obra a visão do mundo que lhe rodeia e o modo como se relaciona com ele. Isso é chamado de Eu lírico, que é um termo usado na literatura para demonstrar o pensamento daquele que está narrando o texto, a junção de todos os sentimentos, expressões, opiniões e críticas, seja do narrador ou da pessoa ao qual o texto está se referindo.

A obra de Chico Buarque possui a característica de articular o drama, a tragédia, o amor e a ironia. São letras que tem alma feminina, que concedem voz ao desvalido, ao operário, ao malandro e aos marginalizados de toda ordem que ganham voz através do cantor. O grau de elaboração de suas letras permite que elas sejam identificadas com a poesia, ainda que o mesmo, por diversas vezes, tenha declarado que não se vê como um poeta e sim como escritor.

Chico Buarque já publicou onze livros e ganhou por duas vezes o Jabuti de melhor livro do ano, a mais tradicional premiação literária do Brasil, concedido pela Câmara Brasileira do Livro. A primeira com Estorvo, seu primeiro romance, que foi publicado em 1991 e a segunda com Leite Derramado, publicado em 2009.O nosso objetivo é fazer uma análise da letra da música que dá nome ao álbum, As Caravanas, o vigésimo terceiro do artista, e que foi lançado pelo selo Biscoito Fino, em 2017.

Neste artigo, que utilizou como suporte textos jurídicos, da Filosofia e da Sociologia demonstramos que tal música é uma alegoria da exclusão social e racial ao qual o suburbano pobre, no caso da letra, os negros, são submetidos ao fazer um passeio tipicamente carioca, que é ir à praia. Para tanto, utilizamos o método indutivo, sendo nossa pesquisa de cunho qualitativo.


1. OS CÃES LADRAM E AS CARAVANAS PASSAM

Chico Buarque, cantor, compositor e escritor brasileiro, tem sua obra marcada por diversas canções cujas letras apontam um contexto político e social inserido na realidade, sendo algumas de suas músicas consideradas canções de protesto.

Foi denominada, entre as décadas de 1960 e 1970, como canção de protesto, um tipo de produção poética feita por alguns segmentos da MPB – Música Popular Brasileira, cujo objetivo era o de denunciar a opressão do regime militar, uma espécie de resgate da voz coletiva do povo. De acordo com Silva (2009, p. 115), por não se tratar de uma categoria crítica, sendo definida somente pelo caráter contestatório das letras que faziam alusão a uma possível militância, com o término da situação política ao qual as letras se referiam, as canções de protesto desapareceram.

Nas décadas seguintes, diversos gêneros musicais como o Rock, o Reggae e o Hip Hop também passaram a utilizar suas músicas para chamar atenção dos problemas sociais, das discussões a favor da liberdade de expressão e contra a violência, verbalizando o momento político do seu tempo.

Talvez com a intenção de que suas composições fossem vistas como literatura cantada, Chico Buarque foi um dos primeiros compositores brasileiros a incluir a impressão das letras nos encartes de seus discos de vinil, ou conhecidos simplesmente LP, abreviatura de long play. A maioria das suas canções extrapolam o limite da análise melódica, tendo sido objeto de análise em estudos literários, ou seja, a partir da criação do autor, que, ao colocar seu texto no mundo, diversas serão as interpretações, as vezes diferentes da sua ideia original.

Uma característica marcante na obra do compositor é criar personagens com identidade contraditórias, de status social baixo e que de alguma maneira, ao transitar por ambientes diferentes do qual vivem, o desarticulam e provocam conflitos, levando desarmonia, e por isso precisam ser neutralizados. Eles são aquilo que Girard (2004, p. 13) chama de categoria vitimária, que consiste em indivíduos que, devido uma condição especial ou diferenciada, estão particularmente expostos à perseguição.

“As Caravanas” é a última música do álbum homônimo e nela Chico Buarque fez um retrato da sociedade através de um microcosmo específico, o da praia carioca, um local que longe de ser aprazível, é palco do embate de grupos que procuram assegurar seu território.

As Caravanas (Chico Buarque)

É um dia de real grandeza, tudo azul

Um mar turquesa à la Istambul enchendo os olhos

Um sol de torrar os miolos

Quando pinta em Copacabana

A caravana do Arará, do Caxangá, da Chatuba

A caravana do Irajá, o comboio da Penha

Não há barreira que retenha esses estranhos

Suburbanos tipo muçulmanos do Jacarezinho

A caminho do Jardim de Alá

É o bicho, é o buchicho, é a charanga

Diz que malocam seus facões e adagas

Em sungas estufadas e calções disformes

É, diz que eles têm picas enormes

E seus sacos são granadas

Lá das quebradas da Maré

Com negros torsos nus deixam em polvorosa

A gente ordeira e virtuosa que apela

Pra polícia despachar de volta

O populacho pra favela

Ou pra Benguela, ou pra Guiné

Sol

A culpa deve ser do sol que bate na moleira

O sol que estoura as veias

O suor que embaça os olhos e a razão

E essa zoeira dentro da prisão

Crioulos empilhados no porão

De caravelas no alto-mar

Tem que bater, tem que matar, engrossa a gritaria

ilha do medo, a raiva é mãe da covardia

Ou doido sou eu que escuto vozes

Não há gente tão insana

Nem caravana do Arará

Não há, não há

Sol

A culpa deve ser do sol que bate na moleira

O sol que estoura as veias

O suor que embaça os olhos e a razão

E essa zoeira dentro da prisão

Crioulos empilhados no porão

De caravelas no alto-mar.

Os primeiros versos nos revelam o cenário: um dia de muito sol e a praia de Copacabana, cuja água é comparada ao mar de cor turquesa de Istambul. Também observamos outras menções geográficas, como no verso “um dia de real grandeza”, que se refere ao túnel que liga Botafogo a Copacabana, entre as ruas Real Grandeza e Siqueira Campos, bem como ao Jardim de Alah, que consiste num conjunto de praças que fazem limite entre os bairros do Leblon e Ipanema, ladeado por um canal que une a lagoa Rodrigo de Freitas ao Oceano Atlântico.

Logo em seguida somos apresentados ao outro foco da narrativa: o deslocamento das pessoas, que vem dos subúrbios, bairros distantes da zona sul da cidade do Rio de Janeiro, em direção à praia. Nas cidades litorâneas, ir à praia é uma ótima opção de lazer, pois como se trata de um espaço público, não há pagamento de ingresso para frequentá-la, no entanto, nem sempre o banho de mar foi visto como algo prazeroso.

Corbin (1989) nos relata, que no século XVIII, com raras exceções, eram totalmente ignorados o encanto das praias marítimas, a emoção do banhista ao enfrentar as ondas e as distrações da contemplação do mar. O oceano era um lugar caótico, o avesso desordenado do mundo, sendo povoado por monstros, condutor de violência imprevisível e geralmente associado à loucura.

Ao longo do tempo, esse imaginário adquiriu novos contornos e reinterpretações, primeiro sendo visto como terapêutico e depois como lúdico. A fase terapêutica, situada no século XIX, teve início quando o banho de mar passou a ser receitado como forma de “corrigir os males do corpo e da alma, encarados como remédio para a robustez física e moral das crianças e a correção dos distúrbios tidos como femininos, como a anemia e a histeria” (MACHADO, 2000, p. 22).

Não somente a água do mar purificava, mas também a brisa marítima, que afastava as doenças, porém, nem todos a frequentavam. A princípio, só quem ia à praia era a aristocracia e a nobreza, tendo Corbin verificado que as praias somente alcançaram um estado de pré-civilização quando as elites inventaram a prática dos banhos de mar como receita médica (1989).

No Brasil, quem deu início ao costume dos banhos de mar curativos foi D. João VI, que passou a fazê-lo após a recomendação médica, mesmo com muita resistência, para o tratamento de um ferimento que infeccionou após ser ter sido picado por um carrapato. A praia em questão era localizada no bairro do Caju, hoje Zona Portuária do Rio de Janeiro e tão logo João VI se viu curado da ferida, parou de frequentá-la (MOURA, 2015).

Pouco a pouco, a acelerada mobilidade social desencadeada pela burguesia adaptou tal hábito aristocrático, e passamos, no século XX, a observar praia dentro de uma perspectiva lúdica, onde a higiene e a saúde foram substituídas pelo prazer. As primeiras horas da manhã dos banhos terapêuticos foram trocados por um dia completo de interações marítimas, pela alegria e o convívio entre os indivíduos e a partir daí a praia assume um caráter de espaço público (MACHADO, 2000, p. 23). Contudo esse espaço público não é neutro. Ele carrega consigo relações de poder que se manifestam através da divisão do território da praia, bem como a forma dos banhistas se comportarem entre si, em atitudes marcadas por distinções de classe, de território e de gênero.

O estilo de vida é um conjunto unitário de preferências distintivas que exprimem, na lógica específica de cada um dos subespaços simbólicos, mobília, vestimentas, linguagem ou héxis corporal, a mesma intenção expressiva, princípio da unidade de estilo que se entrega diretamente à instituição e que a análise destrói ao recortá-lo em universos separados (BOURDIEU,1976, p. 02).

Frequentam as praias cariocas, espaço delimitado pela letra da música, indivíduos com estilos de vida diferentes e de todas as classes sociais, da média e média-alta que moram nos bairros nobres das Zonas Sul como Copacabana, Ipanema, Leblon e São Conrado, a Barra da Tijuca e no Recreio dos Bandeirantes, e das classes populares, moradores das favelas e subúrbios. Esse encontro na areia não é simples, ocorrendo tensões e explosões ocasionais de violência.


2. A CARAVANA DO IRAJÁ, O COMBOIO DA PENHA

Foi no ano de 1992 que ocorreu a primeira transmissão pela televisão das cenas de uma multidão de jovens praticando roubos na praia, no caso a praia de Ipanema. O impacto foi assombroso. A partir daquele momento, a ficha caiu: ir à praia passou a ser perigoso. A princípio, esses grupos de jovens periféricos investiam contra o comércio de rua do bairro, depois, passaram a se fixar na praia, em numa espécie de disputa territorial, com os moradores locais no estilo, nós vamos invadir a sua praia (grifo nosso).

Os arrastões participam da construção do imaginário das praias cariocas, determinam o ir ou não à praia, o trecho da beira mar que o banhista vai se estabelecer e o dia da semana e o horário de chegar e de ir embora. Arrastão, é o nome popular conferido ao furto e ao roubo coletivo de dinheiro e demais bens de consumo, e são praticados geralmente em locais públicos, por um grupo organizado ou não de pessoas.

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Em matéria penal ele é tipificado como concurso de crimes nos artigos 69, 70 e 71 do Código Penal que tratam, respectivamente, do concurso material, do concurso formal e do crime continuado. Nestes artigos encontramos duas situações: ou os crimes são praticados mediante uma só ação ou omissão - concurso formal, ou são praticados mediante mais de uma ação ou omissão - concurso material ou crime continuado (BRASIL, 2020).

Existe em tramitação na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal (CCJ), o projeto de lei 2.171/2019, que pretende alterar o Código Penal para definir o crime de arrastão. De acordo com essa proposta, os atos de saquear, apropriar-se, com o emprego de violência ou despojar grupo de pessoas ou estabelecimentos mediante ação coletiva repentina, planejada ou não, serão crimes puníveis com prisão de 06 a 12 anos, mais multa. Se do fato resultar dano ao patrimônio alheio, a pena será de 08 a 15 anos de reclusão e multa. Caso haja emprego de violência ou grave ameaça, os criminosos poderão ser condenados a passar de 10 a 20 anos na cadeia e pagar multa (SENADO, 2020).


3. NÃO HÁ BARREIRA QUE RETENHA ESSES ESTRANHOS

Antes de se referir aos suburbanos tipo muçulmanos, Chico Buarque faz o anúncio da chegada deles ao cantar “quando pinta em Copacabana, a caravana do Arará, do Caxangá, da Chatuba, a caravana do Irajá, o comboio da Penha

A heterogeneidade dos grupos sociais que habitam um lugar é exatamente a característica básica na formação das cidades. É essa mistura, suas constantes migrações internas, intercâmbios comerciais e culturais que fazem prosperar a vida urbana. É bem possível que o ato de transitar em um espaço público seja a única coisa que alguns grupos sociais heterogêneos tenham em comum. Porém, algumas forças podem fazer com que determinados grupos permaneçam afastados daquilo que Lefebvre chama de direito à cidade, que vem ser a vida urbana e tudo aquilo que ela proporciona com os ritmos vitais de trocas, encontros e usos do tempo (2001, p. 106).

Na letra da música, as barreiras podem ser entendidas como a distância dos bairros da periferia (o local de moradia dos estranhos) até a praia, as dificuldades enfrentadas dentro do transporte coletivo, e o mais importante: a não percepção (de acordo com os moradores da Zona Sul) de que os suburbanos, não são bem vindos a aquele lugar.

O estranho é aquele que de algum modo, gera a desconfiança de um grupo por ser diferente, seja pelas suas ideias, local de nascimento e ou moradia, raça ou etnia e identificação sexual. A presença desse ser inquietante nos coloca diante de fatos que temos muita dificuldade em lidar, ele é o nosso “o bode no meio da sala”, expressão popular que diz respeito a alguém ou alguma coisa que gera incômodo e desconforto, mas que não temos ideia do que fazer para dar fim naquele mal estar.

Girard (2004, p. 42) diz que no interior de todas as sociedades sempre haverá alguém que gosta de ser ou de se sentir diferente dos demais, contudo, essa seria o tipo de diferença que normalmente é exaltada, pois se trata de uma espécie de sentimento cultural, que faz com que indivíduos se sintam pertencentes a um sistema específico, um estilo de vida em particular, que faz com que cada um viva confortavelmente no seu quadrado.

Desse modo, a diferença que incomoda é a fora do sistema, é a possiblidade do sistema diferir de sua própria diferença. Por exemplo, um indivíduo pertencente ao quadrado A tenta entrar no quadrado B. Ao conseguir entrar, o grupo do quadrado B, percebe a diferença e passa se comparar com o indivíduo do quadrado A, e concluem que não são tão legais, inteligentes ou bonitos o quanto achavam, e não gostam nenhum pouco daquilo. Ou seja é “a diferença fora do sistema aterroriza porque ela sugere a verdade dentro do sistema, sua relatividade, sua fragilidade, sua mortalidade” (GIRARD, 2004, p. 31).

Constatamos então que a praia é um campo de disputas pelo espaço de lazer, uma representação física de uma idealização moral. Ela simboliza o pertencimento e o direito à cidade, isto é, o direito ao território e o direito de usufruí-lo, e nela o nosso estranho é o negro pobre, o morador de comunidade que se vê intimidado, constrangido por querer frequentar um espaço que lhe é interditado, fazendo gerar o espanto, o medo e a perplexidade, pois o censor (o racista) não compreende o porquê do “estranho” ainda não ter entendido de que não pertence a aquele lugar.

É a invasão dos espaços considerados privilegiados pelos negros e pobres das favelas, dos subúrbios ou como na letra de “As Caravanas”, os navios negreiros.

Realmente estou convencido de que a sociedade brasileira ainda não se viu como um sistema altamente hierarquizado, onde a posição de negros, índios e brancos está ainda tragicamente de acordo com a hierarquia das raças. Numa sociedade onde não há igualdade entre as pessoas, o preconceito velado é uma forma muito mais eficiente de discriminar pessoas de cor, desde que elas fiquem no seu lugar e “saibam” qual ele é (DAMATTA, 1986, p.46).

Chico Buarque fez um trocadilho na frase “Suburbanos tipo muçulmanos do Jacarezinho, a caminho do Jardim de Alá”, o que nos remete ao muçulmano - Der Muselmann, de Agambem, que ao escrever sobre o campo de concentração de Auschwitz, relatou sobre a existência de indivíduos que não causavam pena a ninguém, não contavam com a misericórdia dos demais prisioneiros, muito menos dos guardas nazistas, “eram pessoas indignas do olhar dos demais” (2008, p. 26).

Esse jovem negro diversas vezes é rotulado como bandido, um sujeito que carrega o crime em sua alma, não que necessariamente o tenha praticado, e sim por ser marcado e acusado socialmente pela pobreza, pelo estilo de vida e pela cor.

Se um garoto entra sem camisa, sem chinelo, sem dinheiro e não paga o ônibus, como eles vão ficar em uma praia durante duas ou três horas sem comer e sem beber uma água ou um líquido qualquer? Qual é a finalidade deles? Eles já vêm justamente para fazer arrastão mesmo (UOL, 2015).


4. A GENTE ORDEIRA, VIRTUOSA E INSANA

A letra da música “Construção” (1971), também de autoria de Chico Buarque, traz a estória de um operário da construção civil que despenca do alto do prédio no qual trabalhava, e cai morto na rua. Sua morte é vista como um aborrecimento, não como a perda de um ser humano, pois “morreu na contramão atrapalhando o sábado”.

Este indivíduo, além de perturbar as pessoas e o trânsito, desestabilizou, na dimensão de um dia, o próprio tempo coletivo de uma cidade, assim como as hordas de estranhos que, ao invadirem a praia, rompem com o frágil equilíbrio daquele território, pois aquilo que é invisível, pode até criar a ilusão de não existir, mas ao insistirem em compartilhar o espaço, a existência desses inquietantes passa a ser real.

De acordo com o antigo testamento da Bíblia, Yahweh (Deus) ordena que uma vez por ano o povo judeu celebre um ritual onde o sumo sacerdote deveria oferecer sacrifícios pelos pecados de todo o povo de Israel. Esse sacrifício promoveria a expiação, ou seja, o perdão dos pecados do povo com a oferta de uma vítima que seria imolada à Deus.

Para esta cerimônia, dois bodes eram escolhidos, um deles era imolado em nome dos pecados de todos. O outro bode, que era chamado de emissário ou expiatório, era solto no deserto e levava consigo todos os pecados que lhe foram passados pelas mãos do sumo sacerdote. Os momentos de crise e de enfraquecimento das instituições sociais favorecem ao aparecimento de multidões em busca de alguém para culpar, para descarregar toda a sua revolta e insatisfação acerca da situação.

Tem-se consciência que o sujeito que encarna a função do bode expiatório é inocente e aqueles que o sacrificam sabem disso, porém ele representa o desajuste, é a anomalia não resolvida, e o seu martírio representa o sistema expurgando sua parte defeituosa que insiste em aparecer e que eles não conseguiram ou não querem consertar.

As categorias vitimárias, ou os portadores de sinais vitimários, são indivíduos ou um grupo de indivíduos, que são mais facilmente considerados indesejáveis pela comunidade e se diferenciam por serem uma justaposição de estereótipos, como exemplo o doente, seja o mental ou aquele que possui uma deformação genética, bem como as mutilações acidentais; pode ser o indivíduo que experimenta dificuldades de adaptação; o estrangeiro e as minorias étnicas; o provinciano; o órfão; o filho de família; o desprovido ou simplesmente, o último a chegar (GIRARD, 2004, p. 27).

Segundo Girard, é exatamente essa justaposição de estereótipos que leva uma pessoa ou toda uma categoria delas a serem perseguidas. A visão dos suburbanos muçulmanos é face da desigualdade social e econômica, o não direito à cidade, é a discriminação racial, é subverter uma pretensa ordem dos fatos, colocando à luz do dia as mazelas as quais o Estado, seja através de políticas públicas, ações afirmativas, melhor distribuição de renda e ou o acesso à educação de qualidade poderiam resolver.

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Sobre os autores
Carla Torquato

Doutora em Função Social do Direito - FADISP. Coordenadora do Grupo de Estudos de Direito de Águas (GEDA/UEA). Professora da Universidade do Estado do Amazonas.

Ricardo dos Santos Castilho

Prof. Dr. dos Programas de Doutorado e Mestrado em Função Social do Direito na Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo (PPGD-FADISP) e Diretor Executivo e Acadêmico da Escola Paulista de Direito – EPD.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TORQUATO, Carla ; CASTILHO, Ricardo Santos. Um retrato da exclusão social da praia na música “As Caravanas”, de Chico Buarque. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7643, 4 jun. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/88507. Acesso em: 17 nov. 2024.

Mais informações

Artigo apresentado para obtenção de nota da disciplina seminário de pesquisa, ministrada pelo pelo Professor Dr. Ricardo Castilho.

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