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Controle constitucional do abuso de poder do Estado

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Agenda 07/09/2006 às 00:00

O texto defende a plena penetrabilidade do ato administrativo discricionário, que não poderá ficar imune ao controle judicial, máxime quando envolver o critério de conveniência e de oportunidade.

SUMÁRIO: I. – DIREITO E PODER. II. – ABUSO DE PODER PÚBLICO NO DIREITO FRANCÊS, ITALIANO, ESPANHOL E BRASILEIRO. III. – DO CONTROLE CONSTITUCIONAL DO ABUSO DE PODER. IV. – CONCLUSÃO.


I. – DIREITO E PODER

            Na origem dos povos, o poder esteve sempre interligado à autoridade. E tanto entre os gregos, quanto entre os romanos, nos primórdios da civilização, a família aparece como o início da autoridade, onde o patriarca institui a sua lei própria, primada no respeito e na religião doméstica. Para os gregos, esta religião doméstica pertencia a um deus chamado de "senhor do lar", e que entre os latinos recebeu o nome de "lar familiae pater". O pai é o pontífice junto ao lar, responsável pelas orações e pelas regras familiares.

            Com o surgimento das cidades, o poder central ficava a cargo do Rei, encarnação da representação divina.

            O poder concentrado no Rei era para manter a ordem e a proteção aos domínios territoriais, e também do próprio povo.

            Os reis eram escolhidos na classe dos nobres, como informa Gustave Glotz: [01] "Os nobres pertencem às famílias que descendem dos deuses: são os filhos, os rebentos de Zeus. Cada um deles conserva cuidadosamente a genealogia que é causa do seu orgulho; a qualquer ensejo, desfia em tom glorioso a lista dos ascendentes que o levara até o ancestral divino. Mas a riqueza já importa tanto como a pureza do sangue. Depois de enumerar os maiores, o herói homérico fascinar o interlocutor com o inventário dos bens que lhe pertencem."

            Assim surgiu o poder de uma forma ilimitada, pois o soberano era o pontífice da sociedade e competia a ele, com o auxílio da Igreja, estabelecer os deveres e as obrigações de todos. Nesta época, o direito era aquele que o Rei estabelecia, devendo os súditos obedecerem e acatarem as ordens superiores.

            A evolução dos tempos trouxe para os povos várias situações conflituosas, que deságuam em ditaduras sangrentas e muitas guerras, tudo isso em nome do poder. Desta vez o poder sai dos limites territoriais de um país, para se exteriorizar em domínios alheios.

            Em face da expansão do poder, e do seu uso irregular, surgiram excessos, que passaram a ser combatidos pelo direito.

            Instituído pelo ordenamento jurídico, o direito vem disciplinando o poder, através de atos regrados e coordenados por normas legais, passando a sociedade a ser destinatária de prerrogativas que não podem mais serem vilipendiadas pelos detentores do poder estatal.

            Dessa forma, o poder, de ilimitado, passou a ser instituído pelo direito, para privilegiar o seu legítimo exercício, em prol da sociedade.

            Simon Blackburn, [02] responsável pelo "Dicionário Oxford de Filosofia", define o poder, no seguinte sentido: "O poder de um indivíduo ou instituição é a capacidade de este conseguir algo, quer seja por direito, por controle ou por influência. O poder é a capacidade de se mobilizar forças econômicas, sociais ou políticas para deter um certo resultado, e pode ser medido pela probabilidade desse resultado obtido em face dos diversos tipos de obstáculos ou oposição enfrentada."

            E Michel Foucault, dentre outros autores, destaca que todas as relações sociais são sistemas de poder, pois o poder fundamental não é exercido por indivíduos e sim como eles são governados uns pelos outros, e a sua análise norteia como, através de certas formas de "governo" dos alienados, dos doentes, dos criminosos, etc., é objetivado o sujeito louco, doente, delinqüente. Tal posicionamento não estabelece no abuso do poder, a criação de loucos, doentes ou criminosos, mas sim que as formas diversas e particulares de "governo" dos indivíduos foram determinantes nos diferentes modos de objetivação do sujeito.

            Já para o Barão d’Holbach, [03] eminente escritor e crítico, nascido em Heidelsheim (1723-1789), o poder pode ser traduzido como: "Realizada a reunião dos homens em sociedade, e tendo a espécie humana povoado o mundo, é necessário que um poder os contenha e os mantenha à distância uns dos outros; pois o homem, enquanto animal é conduzido por sua natureza à agressividade e à injustiça".

            Immanuel Kant [04] (1724 – 1804), que nunca se ausentou de sua cidade natal (Königsberg), ensinou sobre o tema: "Todo Estado contém em si três poderes, isto é, a vontade geral reunida em três pessoas (trias política): o poder soberano que reside na pessoa do legislador, o poder executivo, na pessoa que governa (conforme a lei), e o poder judiciário (que atribui a cada um o que é seu de acordo com a lei), na pessoa do juiz (potestas legislatória, sectoria et iudiciaria). (...) o poder legislativo só pode pertencer à vontade unificada do povo".

            Pois bem, segundo a linha Kantiana, dentre outros jusfilósofos franceses, ingleses, americanos, alemães, etc., o direito público francês criou o princípio da legalidade, como verdadeiro fundamento da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, em seu aspecto jurídico.

            Na lei, segundo os revolucionários franceses, se curam todos os males que se arquitetavam contra a sociedade européia do século XVII. Ideologicamente se pode destacar das circunstâncias coadjuvantes ao êxito e da valorização da norma jurídica, como um dos caminhos para se acabar com a tirania, influenciando, inclusive as idéias revolucionárias inglesas de 1648 e dos norte-americanos. [05]

            Sendo certo que na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, aparece a lei com um ente central, quase intangível: "La Ley solo tiene el derecho de proihibir lãs acciones perjudiciales para la sociedad. Todo lo que no esta prohibido por la Ley no puede impedirse y nadie puede ser obligado a haver lo que la Ley no ordena... La Ley es la expresión de la voluntad general". [06]

            Não resta dúvida que a influência de Jean Jacques Rousseau (1712-1778) foi decisiva na concepção da vontade geral do povo em ter a liberdade, como fundamento axiológico da Revolução Francesa.

            Direcionada a sociedade para a necessidade de controlar o poder pela lei, foi surgindo nas sociedades a necessidade premente de se dotar os órgãos públicos de prerrogativas, fundados no respeito aos direitos e garantias da sociedade como um todo.

            A idéia de excesso de poder aparece pela primeira vez em uma Constituição, em 1791, na da França, influenciada pela Teoria de Montesquieu (1689-1755) de divisão de poderes do Estado. [07]

            E segundo Francesco Carnelutti, [08] excesso significa quando se passa da medida.

            Sendo certo que o excesso de poder é aquele exercitado pelo Estado fora dos limites de uma função pública, com exorbitância.

            Ou pelas brilhantes colocações do saudoso Caio Tácito, [09] o abuso de poder administrativo se resumia em três modalidades distintas, são elas:

            - violação de direitos individuais (liberdade de opinião, crença, comércio, locomoção, reunião, etc.);

            - violação de direitos econômicos e sociais (direito ao trabalho, saúde, educação, assistência, segurança social e etc.);

            - violação aos fins de interesse público (moralidade administrativa, isenção política, eficiência do serviço, respeito aos princípios e normas constitucionais e etc.).

            Portanto, a sociedade dotou-se de instrumentos legais para estabilizar as relações com o poder, utilizando-se do direito, como forma de disciplinar e conter os excessos da atividade pública, sujeitando-o aos princípios do bem comum e da justiça social.

            Estes avanços do direito público foram e são cruciais para a estabilidade jurídica do poder frente aos cidadãos, visto que a humanidade já não admite mais as violências perpetradas em um passado recente. O direito funciona como a fronteira de atuação do poder, regulado e conformado por ele.

            Os excessos ou as extrapolações do poder já não são mais admitidas pela sociedade contemporânea, que dotou sua Constituição fulcrada em um Estado Democrático de Direito capaz de abolir o totalitarismo dos homens públicos.

            Sendo que o "princípio básico do Estado de Direito é o da eliminação do arbítrio no exercício dos poderes públicos com a conseqüente garantia de direitos dos indivíduos perante esses poderes." [10]

            Dessa forma, nosso trabalho visa estabelecer o controle constitucional do abuso de poder do Estado, visto que este tema é e sempre será recente, pois a cada dia que passa são verificados inúmeros excessos praticados por homens públicos. Nós sabemos que os seres humanos são falíveis, pois a perfeição é efêmera. Todavia, quando se trata de delegatários do poder público, estes erros ou atuações contrários às normas legais, possuem o condão de gerar inúmeros dissabores para os administrados e particulares, vez que muitas injustiças são praticadas, totalmente dissociadas do direito e da legalidade.

            Por esta razão, nosso ordenamento constitucional dota as pessoas/lesadas, de garantias e de prerrogativas que são indelegáveis.

            Temos verificado nos dias de hoje, muitos abusos de poder por parte da Administração Pública quando ela atua em processos administrativos disciplinares de servidores públicos; em bancas examinadoras de concurso público; tendenciosas por determinados candidatos; licitações, onde através de critérios ilegítimos são alijados concorrentes; contratos administrativos e etc.

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            Portanto, resolvemos discorrer sobre o presente tema, dada a sua permanente necessidade, pois em pleno Século XXI, os operadores do direito não podem permitir que atos dissociados do direito e da Constituição sejam praticados pelo poder público.

            O "bem do povo" e os "interesses do Estado" devem ser invocados não para dar cobertura a privilégios de classes dirigentes e sim para estabelecer um real alcance do bem comum.

            Destarte, o Estado constitucional pressupõe, desde logo, o poder constituinte do povo, onde ele estabelece na Lex Mater a forma de governo e os seus limites, bem como, os direitos e liberdades dos cidadãos.

            Esta harmonia entre o poder e a sociedade é essencial para a evolução dos povos, que traz no Estado de Direito a exteriorização dos princípios e valores constitucionais razoáveis para uma ordem humana de justiça e de paz.


II. – ABUSO DE PODER PÚBLICO NO DIREITO FRANCÊS, ITALIANO, ESPANHOL E BRASILEIRO

            Em face às mudanças revolucionárias, a idéia de excesso de poder apareceu pela primeira vez na França, como já dito alhures, desenvolvendo-se paulatinamente.

            Como os três Poderes eram harmônicos e independentes entre si, era vedado ao Poder Judiciário invadir o raio de competência do Poder Executivo.

            E para evitar a extralimitação do Poder Judiciário, a primeira manifestação contrária a ela foi estabelecida pelo Decreto francês de 2.11.1864, que permitia que a parte que se sentisse lesada, poderia interpor recurso contra os atos administrativos viciados pela incompetência do agente público ou excesso de poder.

            Esta nova concepção foi de curial importância, visto que o abuso de poder anteriormente era aquele consistente no vício de competência do agente público. Ou seja, somente era admitido ao Poder Judicial corrigir os atos administrativos praticados por servidores públicos incompetentes. A partir do momento em que o Decreto de 2.11.1864 estabelece a possibilidade do administrado recorrer ao Conselho de Estado não só quanto à incompetência do agente público, mas também contra qualquer vício de abuso do poder, está aberto o caminho para o início do controle de legalidade dos atos públicos praticados pelo Poder Executivo, através do Poder Judiciário.

            Assim sendo, o excés de pouvoir do direito francês, concernente a noção de abuso de poder da autoridade administrativa não ficou mais imune ao controle de um outro poder.

            Esta fantástica evolução jurídica colocou um ponto final nos regimes absolutos, onde a administração era apenas uma técnica a serviço do Rei.

            Fulcrando-se no Estado de Direito, que ao contrário, submete o Poder ao domínio da Lei, a atividade administrativa fundamentada no arbítrio se transforma em atividade jurídica, controlada pelo Poder Judiciário. Mesmo que de forma embrionária, a lei passou a expressar a vontade coletiva, onde o Poder já não pode mais se movimentar de forma arbitrária e irresponsável.

            Doutrinariamente, Maurice Hauriou [11] definiu o recurso de excés de pouvoir nos seguintes termos: "El recurso por exceso de poder es una via de nulidad contenciosa que confiere al consejo de Estado el poder de anular una decisión ejecutoria administrativa, si ésta contiene um exceso formal de la autoridad que ha adoptado la decisión (incompetencia, violación de forma, desviación de poder, violación de la ley) y que, por ello, tiende a oponerse al procedimiento de oficio. Este recurso es contencioso porque se interpone ante un juez publico, el Consejo de Estado, y finaliza en una decisión jurisdiccional dotada de fuerza de cosa juzgada..."

            Por esta nova sistemática, o Conselho de Estado francês ficou apto juridicamente para controlar a legalidade dos atos administrativos, além de seu efetivo controle da moralidade.

            Esta histórica guinada jurídica, por si só, foi suficiente para estabelecer uma nova realidade nas relações do Poder com os administrados.

            Dessa forma, era motivo de impugnação ("formes de ouvertures"), através do recurso por excesso de poder o vício de forma do ato administrativo, a violação à lei, o desvio de poder e a incompetência, como já deixamos grafado anteriormente, mas sempre oportuno realçar.

            Dito isto, é necessário trazermos as definições clássicas de abuso de poder, para que se possa mensurar o seu real alcance, sob o prisma jurídico.

            Já nos idos de 1869, em sua primeira edição, Leon Aucoc, [12] que criou a expressão détournement de pouvoir, em seu "Conferénces sur l´Administration et Droit Administratif, assinalou certos casos de desvio de poder de polícia conferido a Administração Pública, quando o agente administrativo, no exercício da função, utilizava de seu poder discricionário de forma irregular, contrário ao poder que lhe foi outorgado.

            Este conceito foi aplicado por Laferriére, quando ele, na segunda edição de seu consagrado "Traité de la juridiction administraive et dês recours contentieux", em 1888, estabeleceu que o abuso ou desvio de poder da Administração Pública estaria também configurado quando o agente público pratica um ato sob falsa aparência de legalidade. [13]

            Outro expoente do direito público francês, Maurice Hauriou, [14] definiu o desvio de poder do ente público como: "El hecho de uma autoridad administrativa que, cumpliendo un acto de su importância, observando las formas prescritas y sin cometer ninguna violacion de ley, usa de su poder com um fin y por motivos distintos a aquellos por los cuales se le ha conferido el poder, es decidir, distintos al bien del servicio."

            No mesmo sentido, André de Laubadére, [15] estabeleceu uma importante consideração sobre o desvio de poder estatal: "Hay desviación de poder cuando se ha tomado una decisión con vistas a un fin distinto de aquei para ei que le ha sido conferido; la competencia se ha ‘desviado’ de su fin legitimo y el acto es ilegal por razón de su fin."

            Por sua vez, Marcel Beurdeley, [16] deixou registrado um conceito mais explícito sobre o tema: "Un acto administrativo que haya sido adoptado por una autoridad competente, regular en la forma, que no comportaría ninguna violación de ley, estando dotado, así, de aparencia de legalidad, puede ser declarado, no obstante, ilegal, anulado o privado de sanción penal, si su autor ha usado de sus poderes con fin distinto a aquellos por los cuales le fueron conferidos tales poderes."

            Por tanto, apesar de na França as autoridades administrativas disporem de grandes poderes, o Conselho de Estado e a doutrina estabeleceram um controle efetivo dos atos públicos, deixando a Administração Pública de ser irresponsável para se submeter a ordem jurídica.

            Esta evolução, deveu-se ao fato da Administração Pública francesa possuir grandes poderes, derivados do espírito centralizador da monarquia. [17]

            Mesmo tradicionalmente os agentes do Estado francês possuírem muitos poderes, para não serem reeditados os princípios despóticos do regime passado, estes poderes passaram a ser regrados pelo direito e pelo interesse público, como uma forma de disciplina-los, para que não fossem usados de forma indevida.

            Assim, coube à jurisprudência do Conselho de Estado, [18] que inicialmente estava vinculada ao Primeiro Cônsul francês, evoluir em sua primitiva função, que era praticamente referendar os atos do Poder Executivo. Isto porque não havia a devida independência dos seus membros que eram nomeados e destituídos ao bel prazer do representante do Imperador (Primeiro Cônsul).

            Dessa forma, o Conselho de Estado, quando da sua instituição não era um verdadeiro órgão jurisdicional, tendo em vista que as suas decisões eram apenas meras proposições do Primeiro Cônsul, que, sozinho decidia se mantinha ou não o que lhe era proposto. Funcionava, portanto, o Conselho como conselheiro jurídico, sem vinculação.

            Esta carência decisiva do Conselho de Estado se acentuava quando se constatava que ele examinava requerimentos administrativos, visto que não era obrigado a seguir as regras de procedimentos, tão necessárias para garantir ao interessado uma instrução imparcial de seu requerimento.

            Sem imparcialidade e sem função decisória, o Conselho de Estado carecia de credibilidade e de efetividade, pois ele não funcionava como um verdadeiro juiz.

            Paulatinamente, o Conselho de Estado francês foi ampliando o primitivo significado do reconhecimento do excesso de poder como extralimitação do poder judicial. Assim, a primeira manifestação desta evolução constitui no Decreto de 2 de novembro de 1864, que permitiu a parte interessada interpor recurso contra atos administrativos viciados por incompetência ou excesso de poder. Esta situação jurídica para R. Vidal [19] foi a consagração definitiva do reconhecimento da existência do desvio de poder por parte do Estado.

            Mais tarde, com a queda da Segunda República Francesa, a Lei de 24 de maio de 1872, dotou o Conselho de Estado de uma função de jurisdição. Nesse sentido, desde esta lei, o Conselho de Estado recebeu o que se chama justiça delegada, examinando e decidindo reclamações contra o Estado. Funcionava, nesta nova fase, como uma verdadeira Corte de Justiça, tomando as suas próprias decisões, que possuíam a força de coisa julgada.

            E em 1872, foi outorgado ao Conselho de Estado o verdadeiro caráter jurisdicional, que funcionava como Corte para julgar, via recurso de apelação, ou pela interposição de recurso de cassação.

            Destarte, caiu a imposição do governo déspota, movido pelo interesse pessoal, que geralmente explorava o povo, sem maiores preocupações com o interesse público, pois o Conselho de Estado, independente, possuía poderes para anular até os atos administrativos tidos como discricionários.

            Dizia-se, antigamente, que um ato administrativo era discricionário quando – com a condição de agir em nome do interesse público – a autoridade administrativa possuía todo poder para praticar soberanamente esse ato, sem que houvesse controle externo do uso feito desse poder, pois ele possuía competência legal para a realização do dito ato.

            Com a queda deste dogma, os Tribunais Administrativos passaram a fiscalizar a competência vinculada pela lei do administrador público, afim de verificar se foram reunidas as condições legais para a prática do ato.

            Para o juiz investigar se houve ou não desvio de poder na prática de determinado ato público, Marcel Waline, [20] com precisão, deixou expresso: "Para se estabelecer o desvio de poder, o juiz deve buscar: a) com qual objetivo o legislador conferia um determinado poder às autoridades administrativas; b) com que objetivo essa autoridade, em caso litigioso, realmente utilizou tais poderes; c) o juiz aproxima esses dois objetivos para verificar se o segundo está de acordo com o primeiro; em termos mais simples, o juiz investiga se a autoridade administrativa valeu-se de seu poder para atingir um objetivo que constituía efetivamente um objetivo do legislador ao conferir-lhes tais poderes."

            Deixando de lado o aspecto doutrinário dos magistrais operadores do direito francês, o Conselho de Estado, em 25 de fevereiro de 1864, no caso "Lesbats", confirmado em 7.06.1865, deu uma demonstração de grande independência, pois coibiu ato administrativo discricionário ilegal. Isto porque, com base na Lei de 25.11.1846, que conferiu aos Prefeitos poder de polícia para regular a circulação e estacionamento de veículos nos arredores das estações de trens, para assegurar o livre acesso ao público, a Corte estabeleceu o desvio de poder do Prefeito de Departamento de Leine-et-Marne, que criou o monopólio de um único contratado (empresa privada), que teria o direito de acesso às vagas reservadas pela estação de trens de Fontainebleau, através de convênio.

            A decisão histórica do Conselho de Estado, anulou o respectivo convênio, que obstruía que outros interessados pudessem utilizar-se das vagas de veículos da respectiva estação de trens. O Prefeito de Departamento de Leine-et-Marne havia justificado seu ato no fato das necessidades de se evitar obstrução à citada estação de trens, e que o monopólio a um único empresário teria este fim, bem como o poder de polícia público facultava ao alcaide a tomada do ato administrativo, em prol do interesse público.

            Inconformado com este ato, o Sr. Lesbats, que teve a sua autorização de entrado no estacionamento dos ônibus da estação ferroviária de Fontainebleau recusada, recorreu e ganhou no Conselho de Estado, o direito de também usufruir do respectivo estacionamento, pondo um fim ao contrato que estabelecia o monopólio de somente um contratado. [21]

            O Conselho de Estado francês, através de suas decisões passou a controlar o elemento interno do ato administrativo, para confrontá-lo com a lei e com o interesse público.

            Já o sistema italiano de "ecceso di potere" também foi de grande importância para o desenvolvimento do direito administrativo naquele país.

            Não obstante, tradicionalmente, na esfera do direito positivo italiano, o excesso de poder do Estado foi identificado como a incompetência do agente público para praticar o ato, bem como a hipótese de violação da lei.

            Estabelecendo a diferença fundamental do regime italiano em relação ao sistema francês quanto ao abuso de poder estatal, Jaime Sanches Isac, [22] escreveu: "No obstante, tradicionalmente, en el terreno del Derecho positivo, en Derecho italiano, el excesso de poder se há considerado como un vicio de ilegitimidad, juntamente con la incompetencia y violación de ley, por los textos jurídicos que se han venido promulgado. Inicialmente, por tanto, podemos observar una diferencia fundamental, con relación al sistema francés: en Italia el exceso de poder es una especie, dentro de la clase general, la ilegitimidad, en Francia, el exceso de poder se centra en calificación genérica del recurso de nulidad, del que, concretamente, la violación de ley y la incompetencia, forman parte, juntamente con el defecto de forma y la desviación de poder."

            Verifica-se que o desvio de poder é a caracterização de um excesso do agente público, que mesmo investido de uma competência legal, pratica ato administrativo contrário ao interesse público, com fim diverso ao da previsão legal.

            Desde a Lei nº 2248, de 20 de março de 1865, o sistema italiano se baseia em uma dupla competência, a jurisdição ordinária é responsável também por todas as questões jurídicas de competência dos antigos tribunais contenciosos, consoante se verifica na redação do artigo 2º, da Lei nº 2.248/1865. [23] Assim mesmo, tendo a jurisdição administrativa, tal como em nosso país, o Poder Judiciário está autorizado a rever a decisão praticada pelo órgão administrativo. O Conselho de Estado italiano funcionava como mero órgão administrativo, que desempenhava a função de julgador os atos administrativos.

            A característica geral da justiça administrativa italiana é resultado de uma lenta evolução legal e jurisprudencial, cuja tendência se concretizou com o submetimento da atividade administrativa, desde o ponto de vista da legitimidade, ao controle jurisdicional, conforme o disposto no artigo 113, da vigente Constituição de 1948, [24] que dispõe a admissão da tutela jurisdicional contra os atos da Administração Pública, dos direitos de interessados legítimos, ante aos órgãos da jurisdição ordinária e administrativa.

            Mesmo a parte tendo o direito de ingressar na esfera judicial contra os atos públicos, o Conselho de Estado italiano funciona paralelamente ao órgão jurisdicional, com a prerrogativa de também decidir os recursos por incompetência do agente público, excesso de poder ou violação da lei, contra atos e resoluções de uma autoridade administrativa ou de um corpo administrativo deliberante. Prevalece a jurisdição ordinária, que possui a competência de, inclusive, reformar a decisão emanada pela Justiça Administrativa.

            Uma histórica sentença do Tribunal Supremo de Justiça de Palermo, de 9 de março de 1839, muito citada pela doutrina do século XX, afirmava que "el exceso de poder, según de muestra la energia de la palabra no se acusa cuando um juez invade la jurisdición o outro juez, en cuyo caso existe, propriamente, defecto de poder y se llama incompetencia." [25]

            A doutrina italiana se desenvolveu também lutando contra o "sviamento de potere", que segundo Zanobini [26] era: El ‘sviamento di potere’ compreende todos aquellos casos em que la autoridad era de uso de un poder próprio para fines distintos de aquel para el cual le que conferido por la ley, tal poder."

            Ainda sobre o "sviamento di potere", que é figura de excesso de poder estatal, relacionando a violação da finalidade legal, segundo o qual se permite a anulação judicial do ato administrativo, Renato Alessi, [27] com precisão estabeleceu o que venha a ser o exercício ilícito da função administrativa, como: "... es ‘ilícito’ el ejercicio de la función administrativa cuando la acción administrativa venga a lesionar la esfera jurídica (em sentido estricto), formada por los derechos subjetivos que las normas garantizan a los sujetos privados."

            O direito italiano, tal qual o direito francês, estudou amplamente o problema do excesso de poder. Pode-se citar um dos grandes publicistas italianos que difundiu este importante tema, que foi Livio Paladine, [28] para quem: "I – illegitmitá di ogni fine, diverso da quello constituzionalmente previsto, consente logicamente di configurare, sul piano legislativo qual vizio della causa degli atti amministrativ, Che é l’ecesso di potere."

            A definição dos doutrinadores italianos sobre o excesso de poder segue a mesma direção da utilizada pela doutrina francesa, significando o vício do ato administrativo, capaz de anula-lo perante o ordenamento jurídico.

            Orlando [29] identificava o desvio de poder como: "Es uma violación de la ley susceptible de autorizar una investigación sobre los motivos determinantes del acto discricional de la autoridad pública."

            Já F. Cammeo [30] o qualificava como um defeito de causa do ato administrativo. Forti [31] o situava em: "un desarrollo irregular del proceso de la voluntad, de donde nasce al acto administrativo."

            Tal qual na Itália e na França, o desvio de poder do Estado teve na Espanha a mesma repercussão jurídica.

            O desvio de poder é expressamente combatido pelo artigo 83, nº 2, da Lei de Jurisdição contenciosa administrativa, de 27 de dezembro de 1956, que assim estava redigido: "constituirá desviación de poder el ejercicio de potestades administrativas para fines distintos de los fijados por el Ordenamiento Jurídico."

            O artigo 358, do Código Penal espanhol, ao regular o delito de prevaricação, pune com a pena de inabilitação, em especial ao "funcionário público que a que a sabiendas, dictarse resolución injusta em asunto administrativo." A resolução injusta sempre se opõe ao ordenamento jurídico, estabelecendo o desvio de poder administrativo. É óbvio que na esfera penal o elemento subjetivo do tipo é o dolo, consistente na vontade do servidor público em exceder o seu poder, legalmente outorgado.

            E a Constituição espanhola de 1931, em seu artigo 101, proclamava que "la ley estabelecerá recursos contra la ilegalidad de los actos o disposiciones emanadas de la Administración en el ejercicio de su potestad reglamentaria, y contra los actos discricionales de la misma, constitutivis de exceso o desviación de poder."

            Sendo certo, que este controle do desvio de poder público ficava por conta do Tribunal de Garantias Constitucionais, na forma do artigo 121, da Constituição espanhola de 1931. Para dar efetividade a esta determinação constitucional, a Lei Orgânica de 14 de julho de 1933, que regulou a respectiva Corte, previu em seu artigo 31 o recurso de inconstitucionalidade nos "pleitos contencioso-administrativos" e em relação com "los pleitos de ilegalidad y exceso o desviación de poder", a que se referia o art. 101, da Constituição de 1931.

            A fórmula fundamental da atual Constituição espanhola, de 1978, seguindo as lições das demais nações evoluídas, vincula ao Estado Democrático de Direito, ou seja, aquele que se vincula ao direito materialmente e possui os seus princípios gerais. Estando o Poder do Estado vinculado ao direito, o seu controle externo fica mais favorecido.

            Por outro lado, a Espanhola, se comparada com a evolução do controle de abuso de poder na França e na Itália, teve o seu desenvolvimento, nesta área do direito público, somente no século XX, onde García de Enterría e Fernandéz Rodriguez, [32] sob a égide da Lei de Jurisdição contenciosa-administrativa de 1956, consagravam a definição de desvio de poder, que constava no art. 83.3., dizendo que constitui uma infração do ordenamento jurídico consistente no "ejercicio de potestades administrativa para fines distintos de los fijados por el ordenamiento jurídico."

            Destarte, a Administração Pública se submete ao interesse geral como uma condição de validade de seus atos. Assim, segundo Carmen Chinchilla Marin, [33] "desviación de poder es, pues, el vicio que afecta al elemento reglado de todo acto administrativo que es el fin."

            E coube ao Tribunal Supremo da Espanha, pela decisão de 17 de março de 1970, estabelecer a similitude do abuso de direito com o desvio de poder, que possuem o ponto em comum de fraudar a lei: "que desde este punto de vista, la invocación del abuso de derecho y del fraude de ley están fuera de lugar en cuanto que no están referidos al ejercicio de un derecho, sino que se juzga un acto administrativo plural que si aparece reglamentado en todos sus elementos y se ajusta al ordenamiento jurídico, estará necesariamente orientado a la promoción del interés público y si no lo es y la Administración se aparta del sentido teleológico que debe dar a sus actos, la infracción habrá de denunciarse por el cause de la desviación de poder, institución propia del Derecho Administrativo que completa en esta materia las de fraude de ley y abuso del derecho, recogidas en los artículos 6.4 y 7.2 del Código Civil."

            No Brasil, tal qual ocorreu na Espanha, a evolução do controle e da identificação do abuso de poder de autoridade administrativa ocorreu tarde, em comparação com a França e com a Itália.

            A Constituição do Império, de 25 de março de 1824, dispõe, de forma tímida, em seu artigo 35, que as autoridades, em geral serão responsáveis pelos abusos praticados. Por igual, a Constituição Republicana de 1891, conforme reforma de 7 de setembro de 1926m faz referência a abuso, seguindo a mesma forma da anterior, no mesmo artigo 35.

            Pela primeira vez em uma Constituição, a de 16 de julho de 1934, aparece a expressão abuso de poder de autoridade.

            No plano infraconstitucional, a Lei nº 221, de 20 de novembro de 1894, instituiu a ação sumária especial para anulação dos atos administrativos, preceituava em seu artigo 13, § 9º: "Verificando a autoridade judiciária que o ato ou resolução em questão é ilegal, o anulará no todo ou em parte, para o fim de assegurar o direito do autor. a) consideram-se ilegais os atos ou decisões administrativas em razão da não aplicação ou indevida aplicação do direito vigente. A autoridade judiciária fundar-se-á em razões jurídicas, abstendo-se de apreciar o mérito dos atos administrativos, sob o ponto de vista de sua conveniência ou oportunidade; b) a medida administrativa tomada em virtude de uma faculdade ou poder discricionário somente será havida por ilegal em razão da incompetência da autoridade respectiva ou do excesso de poder."

            Pois bem, os Tribunais Superiores no Brasil, inicialmente, protegiam o ato administrativo, visto que não permitiam que ele fosse controlado externamente, a não ser pelo vício da competência ou pelo excesso de poder do mesmo.

            Na prática, o Poder Judiciário ficava engessado quanto ao controle de mérito e de oportunidade do ato administrativo, por entender que a atividade discricionária da Administração Pública era inviolável.

            Dessa forma, como dito por Caio Tácito, [34] no Seminário sobre Direitos Humanos da ONU em Buenos Aires (1959): "O juiz pode considerar a motivação dos atos administrativos, mergulhando na apreciação da matéria de fato, para analisar os elementos de legalidade interna da conduta do administrador. Uma vez comprovada a inexistência dos motivos alegados, ou a observância de fins estranhos ou incompatíveis com a norma legal, os tribunais brasileiros têm anulado, em mais de um caso, a ilegalidade administrativa."

            E o mesmo Caio Tácito, [35] então professor da Faculdade de Direito da Universidade do Rio de Janeiro, foi o responsável, em 1959, pelo primeiro livro sobre o tema ora em análise, contribuindo muito para o seu debate em nosso direito público.

            O supracitado mestre, na obra já declinada, advertia: [36] O uso do poder discricionário, ou seja, da liberdade atribuída pela norma de direito na determinação da conduta do administrador, não se pode confundir com o abuso de poder, que se caracteriza pela violação da legalidade extrínseca ou intrínseca dos atos administrativos."

            Lentamente esta barreira do controle do ato administrativo discricionário, em seu aspecto de mérito e de conveniência vem sendo superada pela doutrina e pela jurisprudência, pois, após a promulgação da Constituição Federal de 1988, a Administração Pública passou a se constitucionalizar, vinculando-se a princípios e às normas maiores em todos os seus atos, pouco importando se eles são ou não discricionários.

Sobre o autor
Mauro Roberto Gomes de Mattos

Advogado no Rio de Janeiro. Vice- Presidente do Instituto Ibero Americano de Direito Público – IADP. Membro da Sociedade Latino- Americana de Direito do Trabalho e Seguridade Social. Membro do IFA – Internacional Fiscal Association. Conselheiro efetivo da Sociedade Latino-Americana de Direito do Trabalho e Seguridade Social. Autor dos livros "O contrato administrativo" (2ª ed., Ed. América Jurídica), "O limite da improbidade administrativa: o direito dos administrados dentro da Lei nº 8.429/92" (5ª ed., Ed. América Jurídica) e "Tratado de Direito Administrativo Disciplinar" (2ª ed.), dentre outros.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MATTOS, Mauro Roberto Gomes. Controle constitucional do abuso de poder do Estado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1163, 7 set. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8897. Acesso em: 22 nov. 2024.

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