4. CONCEITO DE DIGNIDADE HUMANA
Nada que existe sobre a terra teria sentido sem a presença do ser humano. Ele é o legítimo dom da natureza. Por isso que Deus, após a criação do mundo, descansou no sétimo dia, entregando ao homem a tarefa de seguir adiante, porque a ele foi conferido vontade, inteligência, livre arbítrio e semelhança com o criador.
Mas o homem é um ser curioso e complexo. Sua natureza falível faz com que esteja em permanente acabamento. Como um diamante bruto, vai polindo-se ao longo de sua existência. Ele é a medida de todas as coisas, como afirmou acertadamente o filósofo Protágoras.
Inobstante despertar o interesse primordial da ciência do Direito, a dignidade humana constitui, na atualidade, objeto de estudo e discussão em todos os ramos do conhecimento científico, porque envolve questões complexas que reclamam o incessante pronunciamento de abalizadas opiniões de especialistas de distintos setores de pesquisa sobre o assunto, sejam elas doutrinárias, legislativas ou jurisprudenciais, sempre em busca de paradigmas que possam sustentar as garantias que esse dogma confere à sociedade.
Os temas ou institutos jurídicos precisam ser identificados pelos pesquisadores e compreendidos por uma gama variada de pessoas que se interessam pelo conhecimento de suas nuances, de suas aplicações e de suas limitações. Para isso, é preciso defini-los com precisão de ourives, se possível.
A dignidade do homem, como norma e como fato, tem sido tema recorrente em nossos dias. Todos os segmentos sociais a discutem por despertar interesse transindividual que transcende a própria existência humana. Com efeito, tanto a fraternidade quanto a dignidade humana estão inseridas no grupo dos denominados direitos fundamentais de terceira dimensão.
Ocupando-se do assunto, o jurista alemão Werner Maihofer17, em obra traduzida para o espanhol, apostila com irretorquível acerto que:
“En época alguna expresiones como dignidad o personalidad del hombre estuvieron tan en boca de todos como hoy. Sin embargo, en ningún tiempo fue tan radicalmente problemático aquello que significa y quiere decir en realidade eso que calificamos y designamos, en los textos de las Constituciones estatales y los programas de los partidos políticos, como ‘dignidad humana’, ‘dignidad del hombre’ o, expresado de outra manera, dignidad de la persona.”
Partindo de tais pressupostos, como se conceituaria a expressão dignidade humana? Os antigos jurisconsultos18 afirmavam que, em direito, toda definição é perigosa. No entanto, é sempre salutar, para o cidadão e para o estudioso dos institutos jurídicos e sociais, ter noções, ainda que básicas, sobre as questões de interesse geral para orientação de todos em sociedade.
Não há receio que se comece por uma aporia, pois as perplexidades, os desencontros e as contradições terminológicas são fatores que sempre serão encontrados nos escritos dos juristas que buscam a súmula de significado único para esse princípio universal, coisa que é impossível. Afastado o temor do equívoco, pode-se se dizer que a dignidade, como atributo inerente unicamente à pessoa humana, constitui conceito vago, abstrato, aberto, ambíguo, amplo, polissêmico e interdisciplinar.
Dignidade Humana, portanto, é uma qualidade inerente a todo ser humano, cuja concepção jurídica, social, econômica, religiosa, política ou de outra natureza pode variar e ser relativizada de acordo com a ética, a moral, os costumes, os valores19, a cultura e os hábitos de cada povo ou grupo de pessoas20, em suas relações sociais concretas, fazendo-os merecedores de direitos e deveres fundamentais, que devem ser assegurados e respeitados pelo Estado e pela sociedade, a fim de que possam usufruir de condições existenciais mínimas para o bem da criatura humana21, do meio ambiente e dos demais seres vivos.
Não obstante a amplitude do conceito acima apresentado, o estudo aqui desenvolvido ficará restrito ao exame da dignidade da pessoa humana no âmbito do Direito Criminal. No campo penal, o princípio da dignidade da pessoa humana é aplicado com o propósito de garantir o direito de ampla defesa e do contraditório ao indivíduo acusado da prática de algum delito. Essa garantia deve ser ampla, mas varia de acordo com o ordenamento jurídico de cada nação, havendo mesmo países22 que não respeitam o direito a um julgamento justo às pessoas acusadas da prática de delitos, ou o garantem de maneira limitada e restrita.
A conquista desses e de outros direitos que, atualmente, gozam de status constitucional, foi paulatina e gradual, decorrendo, portanto, de intenso labor do meio acadêmico, em especial de pensadores que dedicaram suas ideias à defesa intransigente de tal desiderato. Muitos sacrificaram a própria vida, mas não abdicaram da obstinação de sustentar até o fim a importância do reconhecimento dos direitos concernentes à dignidade da pessoa humana.
O primeiro passo para a obtenção do reconhecimento internacional dos denominados Direitos Humanos se deu com a Carta de São Francisco, tratado que criou a Organização das Nações Unidas em 1945. Esse marco histórico propiciou a posterior edição de inúmeros diplomas legais internacionais, notadamente a Declaração Universal dos Direitos Humanos, no ano de 1948, que foi ratificada por vários países, dentre os quais o Brasil que é membro signatário.
Os princípios de direito humanitário, por representarem fundamento essencial da existência humana, constituem também princípios elementares da humanidade, razão porque todos os países devem cumpri-los como normas fundamentais, tenham ou não ratificado os tratados que os estabeleceram, porque são princípios invioláveis do Direito Internacional Consuetudinário.
Uma vez instalado qualquer conflito, envolvendo a dignidade da pessoa humana, não deve o julgador olvidar a existência do princípio da primazia da norma mais favorável ao indivíduo, de tal sorte que deve optar pela aplicação da regra que mais favoreça o infrator, quer seja de origem interna ou internacional.
Mas essa regra não é de todo infalível. Pode ocorrer que direitos pertencentes a indivíduos diferentes entrem em colisão. Qual norma, então, deve ser aplicada? A nacional ou a internacional? O incidente, a nosso sentir, deve ser solucionado mediante o respeito à justiça do caso concreto e, ipso facto, tomando-se por base os princípios da razoabilidade/proporcionalidade, aqui entendidos como sinônimos de equidade.
É aceitável esse ponto de vista, considerando o fato de que o direito deve se utilizar da lógica do razoável. A resolução do conflito pode estar no detalhe de sua instalação, motivo porque deve ser investigada no contexto da demanda a intenção psicológica do litigante.
Tratando da equidade, Aristóteles a equiparou a uma régua de lesbos. Miguel Reale23, jusfilósofo brasileiro, explica o sentido que o mencionado estagirita conferia à palavra equidade, ipsis verbis:
“Para o autor da ética a Nicômaco, a eqüidade é uma forma de justiça, ou melhor, é a justiça mesma em um de seus momentos, no momento decisivo de sua aplicação ao caso concreto. A eqüidade para Aristóteles é a justiça do caso concreto, enquanto adaptada, ajustada à particularidade de cada fato concorrente. Enquanto que a justiça em si é medida abstrata, suscetível de aplicação a todas as hipóteses que se refere, a eqüidade já é a justiça no seu dinâmico ajustamento ao caso. Foi por esse motivo que Aristóteles a compara à régua de Lesbos. Esta expressão é de grande precisão. A régua de Lesbos era a égua especial de que se serviam os operários para medir certos blocos de granito, por ser feita de metal flexível que lhe permitia ajustar-se às irregularidades do objeto. A justiça é uma proporção genérica e abstrata, ao passo que a equidade é específica e concreta, como a régua de Lesbos: flexível, que não mede apenas aquilo que é normal, mas, também as variações e curvaturas inevitáveis de experiências humanas.”
Por sua vez, Chaim Perelman24, profetiza que a equidade é “a muleta 25 da justiça”, por entender que “o recurso à eqüidade só é permitido quando a lei parece manca”. O raciocínio do jusfilósofo Belga apóia-se na concepção de que, na maioria das vezes, a aplicação da justiça formal é impossível, porque a lei aplicada indistintamente pode conduzir a consequências iníquas, motivo pelo qual se faz necessário resolver a questão da maneira justa e equânime.
Não só na jurisdição penal, mas em qualquer outro campo do Direito, pode-se lançar mão da equidade, quando a situação fática de natureza fundamental envolver categorias que se tornam essenciais na apreciação dos fatos, porém revelam solução por meio de normas ou de princípios colidentes.
Seria o caso, por exemplo, de dois operários desempregados que resolvem assaltar um mercado, onde furtam pessoas e objetos. Um deles é solteiro, agrediu as vítimas e participou do projeto criminoso, porque tem como estilo de vida subtrair coisas alheias. O outro aderiu à empreitada, porque é arrimo de família e possui mulher e filhos para sustentar. Aquele por ser contumaz e reincidente furtou indistintamente produtos e valores, além de suas necessidades. Já o seu comparsa, sendo arrimo de família, furtou apenas gêneros alimentícios suficientes para alimentar sua enorme prole durante um mês e numerário necessário para fugir do local em segurança.
Presos horas depois pela polícia, foram acusados pelo mesmo fato, em face da competência jurisdicional pela conexão, visando unidade de processo e de julgamento. Ao apreciar as circunstâncias em que a hipótese concreta se consumou, por ocasião da fixação da reprimenda, o Juiz pode aplicar ao caso a equidade (fraternidade e dignidade humana), visto que tal julgamento é perfeitamente viável, por força da aplicação do princípio da individualização da pena, que tem como um dos pilares fundamentais a culpabilidade do agente como limitação do poder de punir estatal. Afinal, a culpabilidade do infrator não pode ser vista apenas como grau de reprovabilidade de sua conduta, mas também como pressuposto da aplicação da pena.
Destarte, ao trabalhador que agiu com egoísmo, subtraindo gêneros alimentícios e dinheiro em quantidade superior às suas necessidades, deve ser aplicada a norma sem ressalvas. Com relação ao operário que agiu de forma comedida, deve a norma ser aplicada com as atenuações ou inculpações que apontam as circunstâncias do caso concreto.
É importante registrar que a legislação penal latino-americana é pródiga quanto à normatização de tal particularidade, como circunstância atenuante da aplicação da pena. Assim se verifica na Argentina (art. 41, CP), quanto à maior ou menor dificuldade do autor para prover seu sustento ou de familiares. O mesmo fenômeno ocorre no Equador (art. 45, CP), quando se refere à indulgência, família numerosa e à falta de trabalho do imputado. No Paraguai (art. 32, CP), vincula-se a conduta do infrator ao seu estado de miserabilidade. Em outros países, como a Colômbia (art. 55, CP), o Peru (art. 46, CP), o México (art. 52, CP), a Bolívia (art. 40, CP), procura-se atenuar a pena em face da indulgência do agente criminoso.
No Brasil (art. 66, CP), a pena pode ser atenuada em razão de circunstância relevante, anterior ou posterior ao crime, embora não prevista expressamente em lei. Pratica-se, com isso, fraternidade legislativa e jurídica, porque a Justiça não pode dissociar-se do conceito de dignidade humana que o moralista ignora.
5. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
Alguns países, como o Brasil e a Alemanha, lançaram no pórtico de suas Constituições, o respeito à dignidade da pessoa humana como princípio fundamental. No caso específico do Brasil, pode-se afirmar sem equívocos que a dignidade humana constitui, na conformidade do que dispõe o art. 1.º, inciso III, da Constituição Federal, o principal fundamento jurídico da nossa República.
A regra sobredita serviu como passo decisivo para a afirmação de que o Brasil aderiu à Convenção Interamericana de Direitos Humanos, na medida em que produziu mudanças profundas na jurisprudência do STF, colocando nosso país entre aqueles que entendem que os tratados internacionais de direitos humanos se encontram no mesmo nível hierárquico das normas e princípios consagrados na Constituição Federal, além de permitir que outros tratados que não gozam da mesma categoria tenham maior hierarquia que as leis infraconstitucionais.
Muito embora alguns países não reconheçam qualquer validade às normas decorrentes do denominado Direito Internacional dos Direitos Humanos, suas disposições não representam mais apenas um discurso isolado, nem são aplicáveis somente ao mundo ocidental. Nas últimas décadas, tal direito, de cunho universal, tem tido uma influência enorme e crescente nas legislações dos Estados contemporâneos, posto que sua aplicação tornou-se uma prática generalizada decorrente dos tempos modernos para salvaguarda dos povos no âmbito doméstico e o afastamento de situações que ponham em risco a paz, a segurança e a estabilidade de outros Estados.
A proteção efetiva dos Direitos Humanos, por isso, encontra guarida na ordem jurídica internacional, onde o costume, as convenções e os princípios gerais do Direito são fontes inesgotáveis de resoluções e de outros instrumentos similares que constituem o denso ordenamento jurídico denominado Direito Internacional dos Direitos Humanos, bastante utilizado não só pelas Cortes Internacionais de Direitos Humanos, como também por juízes e tribunais de diversos países.
Ante tais premissas, observa-se que a lei (Direito interno), na maioria das vezes, chega atrasada. Isso se deve, quase sempre, por conta de sua lenta tramitação, da constante dinâmica da sociedade e da negligência do poder legiferante. O Direito nela assegurado é entregue, comumente, após as mudanças sociais, políticas, éticas, morais, culturais, tecnológicas, econômicas, etc., vivenciadas pelos cidadãos.
A dignidade da pessoa humana tem sido o princípio reitor de todas as Constituições dos países civilizados. Dentro dessa concepção formal, é correto afirmar que todos os demais princípios decorrem desse postulado fundamental, afirmando a ideia de que nada deve ser feito juridicamente sem a observância do preceito que proclama a valorização da pessoa como ser humano dotado de direitos e de deveres processuais que envolvam: a) o acesso ao Judiciário e à justiça; b) garantia do juízo natural; c) igualdade de tratamento e paridade das armas entre as partes; d) respeito à ampla defesa e ao contraditório; e) garantia do devido processo legal; f) assistência jurídica integral (e gratuita aos necessitados); g) razoável durabilidade do processo; h) direito à produção de prova; i) publicidade dos atos processuais; j) motivação das decisões; l) confiança e segurança jurídica na estabilidade dos atos decisórios.
Não é impossível, nem difícil, obter a concretização de tais garantias, inobstante algumas vezes tais direitos sejam ignorados por agentes públicos, em flagrante violação à Constituição Federal, quando não à vista de leis rígidas ou mal interpretadas por seus aplicadores, bem como em face da tenacidade do julgador tendencioso em submeter o destino da parte, que é seu alvo, ao seu desejo pessoal, desvirtuando a finalidade da norma e o papel de isenção que lhe é outorgado pelo poder estatal para dirimir os interesses individuais e coletivos.
O que deve ser reivindicado pelo povo, no exercício do poder que lhe confere a Constituição Federal, é o cumprimento de tais políticas públicas, uma vez que o pacto social obriga seus representantes, junto às câmaras legislativas e aos governantes, em especial, ao dever de cumprir o que a lei maior estabelece. Nesse particular o jurista Carlos Bernal Pulido26, com percuciente acuidade, lembra que:
“Casi todas las constituciones del mundo incorporan un catálogo de derechos fundamentales. De esta manera, quienes las promulgan persiguen ofrecer la máxima protección jurídica en el derecho interno a intereses humanos que se consideran esenciales, frente a vulneraciones y amenazas provenientes de poderes públicos y privados.”
Por essa razão, adverte o mencionado professsor Carlos Bernal Pulido, magistrado da Corte Constitucional da Colômbia, no estudo supracitado:
“De esta manera, el principio de proporcionalidad permite que haya una crítica informada de las decisiones judiciales. A su vez, este principio impide decisiones arbitrarias atinentes a los derechos. Los jueces y las autoridades políticas deben justificar las limitaciones a los derechos fundamentales una vez que hayan considerado todos los argumentos e intereses en juego.”
O homem reivindica constantemente o cumprimento do rol de direitos prometidos na Constituição Federal e nas leis infraconstitucionais, levando a sociedade organizada a exigir do Estado sua efetivação através de legislação específica que tenha respaldo no Direito Constitucional; afinal, o ser humano, conforme a concepção Kantiana, é um fim em si mesmo, e não um meio como infelizmente ainda pensam algumas autoridades sem olharem a si próprio.
O homem se distingue dos outros seres vivos porque é dotado de racionalidade. Essa particularidade lhe confere o atributo de ser considerado como pessoa, ou seja, como indivíduo pensante e integrante do organismo estatal. Daí, a importância de ter assegurados o respeito e garantia à sua dignidade como pessoa humana, por tratar-se não somente de regra legislativa, de status constitucional ou de princípio jurídico, mas de qualidade inalienável outorgada pela natureza a todo homem para construção de uma sociedade fraterna.