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Dignidade humana, fraternidade e direito de defesa

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Agenda 26/04/2024 às 17:29

6. PRINCÍPIO DA AMPLA DEFESA

A noção de ampla defesa remonta às priscas eras, posto ser da natureza humana a inconformação. Bem conhecido, por isso, o exemplo bíblico do julgamento de Adão, onde, neste caso, o próprio Deus concedeu-lhe o direito de defesa, ao aduzir “Adam, ubi es?” Surgia, com isso, já no paraíso, segundo o jurista Afonso Fraga, citado por Tourinho Filho27, o instituto da citação. Era a vocatio, característica ínsita da jurisdição, que permite ao Juiz processante determinar, atualmente, o comparecimento do réu à sua presença ou a praticar determinado ato, sob as penalidades da lei.

Acrescento que, seguido daquele ato citatório, veio o interrogatório do primeiro homem e sua autodefesa28, tudo na forma oral, dando a entender que, no começo, a jurisdição se orientava pelo princípio da oralidade.

Mas não se encerrou aí o julgamento de Deus. Como Juiz supremo, deu seguimento aos atos instrutórios, interrogando separadamente Eva, mulher de Adão, e a serpente. Ao final, condenou a todos e aplicou a cada um deles castigos diferentes, dando origem ao que, em nossos dias, chamamos de princípio da individualização da pena. É importante registrar que, no referido julgamento, Deus tratou a todos os acusados com dignidade e fraternidade, aplicando-lhes penas proporcionais às suas culpabilidades.

Rica em exemplos, a bíblia também narra o caso em que o evangelista Paulo29, após ser preso e levado à enxovia, exige o direito à ampla defesa, por ser cidadão romano. Para que não passe despercebido, tenha-se em mente que nos dois exemplos bíblicos se encontra evidente a presença do devido processo legal, como pressuposto necessário para a imposição da medida que se perseguia.

Aglutinada também nesses episódios se encontra a ideia do contraditório como elemento preponderante da ampla defesa. O contraditório é o exercício da dialética processual, plasmada a partir da pretensão deduzida em juízo pela parte demandante. Trata-se de princípio constitucional do processo, cujo escopo é oportunizar ensanchas à parte demandada de ser informada a respeito do que está sendo alegado pelo demandante, a fim de que possa produzir defesa de qualidade e indicar prova necessária, lícita e suficiente para alicerçar sua peça contestatória. A impugnação da pretensão varia, em sua forma bilateral, de acordo com o interesse ou direito que se pretende resguardar ou obter.

O contraditório implica também no direito que tem as partes de serem ouvidas nos autos. O processo é marcado pela bilateralidade da manifestação dos litigantes. Essa regra de equilíbrio decorre do denominado princípio da igualdade das partes ou da isonomia processual, tão importante para o embate processual quanto qualquer um dos demais princípios orientadores do processo.

A ampla defesa representa garantia constitucional prevista no art. 5.º, inciso LV, da Constituição Federal Brasileira. Sua concepção possui fundamento legal no direito ao contraditório, segundo o qual ninguém pode ser condenado sem ser ouvido.

Por força do que foi enunciado, não seria demasiado dizer que a ampla defesa também está intimamente ligada a outro princípio constitucional mais abrangente, qual seja o devido processo legal, seu epifenômeno, pois é inegável que o direito a defender-se amplamente implica consequentemente na observância de providência que assegure legalmente essa garantia.

Tão importante é o devido processo legal, como princípio constitucional, que ele representa a base legal para a aplicação de todos os demais princípios, qualquer que seja o ramo do direito processual. Esta afirmação não afasta, por outro lado, a incidência desse postulado também no âmbito do direito material ou administrativo.

Numa concepção primária, trata-se a ampla defesa de direito constitucional processual assegurado ao réu subjetivamente. Por esse postulado, a parte que figura no pólo passivo da relação processual exige do Estado-Juiz, a quem compete a prestação da tutela jurisdicional, o direito de ser ouvida, de apresentar suas razões e de contra-argumentar as alegações do demandante, a fim de elidir a pretensão deduzida em juízo.

A ampla defesa é garantia do demandado inerente ao Estado de Direito. Mesmo quando se está diante de regime de exceção, a noção desse instituto não desaparece porque é algo que se encontra arraigado ao ser humano, é uma necessidade inata do indivíduo, é algo que resulta do próprio instinto de defesa que orienta todo ser vivo.

Apesar de esse princípio vir expresso pela fórmula “ampla defesa”, seu raio de aplicação não se limita exclusivamente a beneficiar o réu, posto que visa também favorecer outros sujeitos da relação processual. Sendo assim, não é errôneo dizer que a ampla defesa constitui direito que protege tanto o réu quanto o autor, bem como terceiros juridicamente interessados.

Diante disso, é forçoso reconhecer que somente haverá ampla defesa processual quando todas as partes envolvidas no litígio puderem exercer, sem limitações, os direitos que a legislação vigente lhes assegura, dentre os quais pode-se enumerar o relativo à dedução de suas alegações e à produção, sem restrições, de prova admitida em juízo.


7. DIREITO DE DEFESA

Um dos fundamentos do Estado Brasileiro é a dignidade da pessoa humana, assim estatuído no art. 1.º, inciso III, da Constituição Federal. No Estado Democrático de Direito todos os princípios que o regem devem se basear no respeito à pessoa humana, pois esta funciona como princípio estruturante, ou seja, representa o arcabouço político fundamental constitutivo do Estado e sobre o qual se assenta todo o ordenamento jurídico. Por isso, é considerado como princípio maior na interpretação de todos os direitos e garantias conferidos às pessoas no texto constitucional.

O direito de defesa é um dos princípios decorrentes da dignidade da pessoa humana e da fraternidade. Somente o ser humano pode usufruir dessa prerrogativa, porque não é possível atribuir a animais irracionais a prática de crimes. Não se trata de privilégio, mas de garantia fundamental assegurada constitucionalmente ao infrator. Por essa razão, é dever do Estado conceder a todo indivíduo acusado da prática de um delito a oportunidade de exercer o direito de defesa técnica de maneira ampla e irrestrita. Dito de outro modo, não basta a concessão pura e simples do direito de defesa. É imprescindível que o acusado tome ciência do conteúdo da acusação em idioma que lhe seja acessível e que o ente estatal lhe garanta o exercício dessa prerrogativa por meio de profissional da advocacia que tenha especialização específica na área penal, sob pena de não se cumprir tecnicamente a finalidade para o qual foi concebido esse irrenunciável preceito de nível constitucional.

Partindo da premissa dignidade da pessoa humana, que tem íntima relação com o Direito Penal da ofensividade (garantista), faz-se necessário entender que num Estado Democrático de Direito, um fato punível deve ser encarado tendo em vista a finalidade do Direito Penal, que é a proteção de bens jurídicos penais.

Para o entendimento do que seja o valor bem jurídico, não basta a leitura gramatical da figura típica, ou seja, a compreensão da tipicidade, porque esta não se esgota na literalidade da lei. O que o intérprete precisa descobrir é o que está por trás do tipo penal, isto é, na norma, porque é ela quem revela a percepção que necessitamos ter do bem jurídico protegido. Concluindo, podemos afirmar que o que pune o infrator não é a lei, e sim a norma.

O saudoso penalista Luís Flávio Gomes30, relacionando a dignidade humana com o Direito Penal, nos transmite a ideia de que, sendo a dignidade humana o fundamento máximo do modelo de Estado de Direito, parece não haver dúvida de que a sanção penal só deve incidir quando há uma concreta lesão ou perigo para o bem jurídico protegido pela norma. O princípio da ofensividade, destarte, decorre naturalmente dos fundamentos do Estado Constitucional e Democrático de Direito, a partir das garantias e dos princípios assegurados pela Constituição do país. Na incensurável ensinança do penalista Argentino Eugênio Raúl Zaffaroni31:

“El derecho penal tiene la función de prover a la seguridad jurídica mediante la tutela de bienes jurídicos, previniendo la repetición o realización de conductas que los afectan en forma intolerable, lo que ineludiblemente, implica una aspiración ético- social. Cabe consignar que en este sentido usamos "ético” para denotar lo que hace al comportamiento social, expresión que nada tiene que ver con la moral, que la entendemos como cuestión que incumbe a la conciencia individual y que, por ende, es autónoma. En este sentido, la "aspiración ética” del derecho, es la aspiración que éste tiene de que no se cometan acciones prohibidas por afectar bienes jurídicos ajenos. La coerción penal busca materializar esta aspiración ética, pero la misma no es un fin en sí misma, sino que su razón, su "por qué" (y también su "para qué") es la prevención especial de futuras afectaciones intolerables de bienes jurídicos.”

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Com efeito, dispõe a Constituição Federal Brasileira, em seu art. 1.º, inciso III, verbis:

Art. 1.º - A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamento:

III – a dignidade da pessoa humana;

Notória, portanto, a consagração do valor da dignidade da pessoa humana como princípio máximo, diga-se, fundamental do Estado Brasileiro, lançado no pórtico da Carta Magna (art. 1.º, III). Segundo José Afonso da Silva32, "a dignidade da pessoa humana é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida". O constitucionalista J. J. Gomes Canotilho33 , também entende que

“concebido como referência constitucional unificadora de todos os direitos fundamentais, o conceito de dignidade humana obriga a uma densificação valorativa que tenha em conta o seu amplo sentido normativo constitucional e não uma qualquer idéia apriorística do homem, não podendo reduzir-se o sentido da dignidade humana à defesa dos direitos pessoais tradicionais, esquecendo-se nos casos de direitos sociais, ou invocá-la para construir teoria do núcleo da personalidade individual, ignorando-a quando se trate de garantir as bases da existência humana.”

Vê-se, a partir desses ensinamentos, que a dignidade da pessoa humana é um conceito que permeia todo o ordenamento jurídico, em todas as suas formas, em todos os ramos do Direito, até por não ser apenas um direito fundamental, mas um fundamento do nosso próprio modelo de Estado Democrático de Direito.

Os penalistas são unânimes em afirmar que a história da pena coincide com a história da humanidade. Desde os tempos primitivos, cada povo ou agrupamento humano, não importando a raça, governo ou origem étnica, tinha sua forma de aplicação da pena, ainda que rude ou degenerada, onde era permitida a inflição de variados suplícios ao condenado, todos corporais, por autoridades públicas ou por pessoas investidas de autoridade familiar, numa verdadeira barbárie em que se destacava uma espécie de Direito Penal do terror e do martírio instituído ao alvedrio do executor.

Assim, eram aplicadas, sem qualquer critério, penas cruéis e desumanas que levavam a homicídios decorrentes de apedrejamentos, enforcamentos, sufocamentos34, torturas, crurifrágios, castrações, crucificações, tudo em defesa de um poder punitivo que os arcontes julgavam possuir, proveniente de uma moral divina que autorizava a prática de tais horrores sem a instauração de processo justo e sem a concessão do direito de defesa ao acusado, muito menos da concepção de fraternidade e dignidade humana.

Como não se permite, entre nós, condenação judicial tendente ao sacrifício corporal do réu, alguns Juízes de coração empedernido aplicam penas excessivas, que chegam a centenas de anos de reclusão, sem darem a devida importância aos aspectos educativo e ressocializador da sanção penal. Partem de conclusões deturpadas de suas consciências, violando os parâmetros mínimos e máximos do preceito legal para, numa atitude de ostentação pessoal, cominarem reprimendas recheadas de citações doutrinárias nacionais e estrangeiras, assim como de jurisprudências escolhidas ao seu talante com o propósito de abrilhantarem suas imagens na sentença. Numa atitude de puro arbítrio esquecem que estão julgando seres humanos, vale dizer pessoas com nome, idade, profissão e família, pervertendo os interesses da sociedade que as querem de volta regeneradas, promessa que o cárcere não pode cumprir. Tais magistrados julgam como Deus e entregam a execução da pena ao Diabo, mantendo-se tranquilos e regozijados em seus refrigerados gabinetes, durante o longo período de cumprimento da pena imposta, sem sequer fazerem alguma visita à enxovia para averiguarem o estágio de recuperação do condenado.

Vivemos, atualmente, um período de humanização da pena. O Direito Penal moderno concebe a pena como fator de recuperação do infrator condenado, considerando que a reprimenda não deve ter caráter apenas retribuitivo, mas principalmente ressocializador. Dessa forma a Constituição Federal aboliu as denominadas penas aflitivas e infamantes35. Na atualidade, sua aplicação adquire especial destaque, conquanto é sabido que a nenhum julgador é permitido a inflição de pena ao acusado sem o devido processo legal ou acima dos parâmetros da proporcionalidade e da razoabilidade.

Essa assertiva decorre da confirmação de vários aforismos jurídicos, dentre os quais, na concepção de seus idealizadores, se destacam o nullum crimen, nulla poena sine praevia lege poenali, assim como o nulla poena sine judicio, ou o apotegma nulla poena sine culpa, posto que o princípio da humanidade das sanções proíbe a imposição de penas sem processo e de caráter desumano.


8. DIGNIDADE HUMANA NO PROCESSO PENAL

O processo penal existe no ordenamento jurídico da maioria dos países com a finalidade de assegurar uma série de garantias ao acusado, que vão desde o direito de defesa até a aplicação de pena proporcional ao dano causado. Cada país tem suas próprias leis, as quais variam conforme o bem jurídico a ser protegido ou de acordo com sua cultura e costumes. Por isso mesmo, algumas condutas que são punidas em determinados países não guardam qualquer importância para outros. O certo, no entanto, é que com os olhos voltados para o mundo inteiro a ONU e outros organismos internacionais têm lutado pela uniformização do procedimento processual de todas as nações, integrantes ou não da organização, principalmente em matéria de direitos humanos.

O jus puniendi estatal tem como seu contrapeso natural o jus libertatis do indivíduo. Aliás, deve ser interesse do próprio Estado garantir ao acusado o direito ao justo processo legal, por força do contrato social celebrado com o povo, que lhe outorga o monopólio da jurisdição.

Valor básico fundamentador de todos os direitos humanos, a dignidade da pessoa humana36 tem sido violada constantemente em prol de uma pretensa segurança e da busca frenética pela verdade real no âmbito do processo penal, sonho pueril que à realidade compete negar, posto o Juiz sempre julga com base na verdade processual. Enquanto persistir essa busca incessante pela autonomia da sociedade, ou um rigor excessivo do Direito Processual Penal existir, a função primordial deste como instrumento de distribuição de justiça e pacificação social é que será afistulada.

Se o Direito brasileiro é fundado na fraternidade e na dignidade da pessoa humana, como o processo penal pode, para conseguir a verdade real, por exemplo, violar o binômio fraternidade/dignidade em prol de outros princípios que orientam a colheita da prova? Aqui, temos uma colisão de princípios, que deverá ser resolvida, em último caso, por uma ponderação.

Tratando dessa questão, afirma J. L. Mackie, citado pela jurista Argentina Mirta F. Bokser37, ipsis verbis:

“La colisión entre reglas produce el efecto de excluir una, porque el resultado de aplicar las dos es incompatibile [...]. En estos casos, la actividad de intérprete consiste en una opción: o una o la outra. En cambio, cuando se trata de princípios y valores, no hay opción, sino ponderación. [...] No se trata entonces de una antinomia en el sentido tradicional, sino de un campo de tensión. El coflicto entre princípios se soluciona mediante un juicio de ponderación de intereses opuestos. Se trata de cuál de los intereses abstractamente del mismo rango, tiene mayor peso en el caso concreto. Si se entiende a los princípios como mandatos de optimización, como aspiraciones a algo que encierran una referência a la ideia del dererecho justo, debe estimarse en qué medida se puede realizar en el caso concreto [...]. Los principios son normas que tienem una estructura deóntica, ya que establecen juicios de deber ser; son normas prima facie sin una terminación acbada, y por lo tanto flexibles, susceptibles de ser completados [...]. Los principios son normas que receptan valores y como tales no pueden ser sino aspiraciones cuyo grado de concreción varía según los sistemas jurídicos, los períodos históricos, y la relación com las reglas. De manera que el juego de los principios jurídicos de rango constitucional aporta la determinación de valores necesaria para llenar de contenido la cláusula general, conforme a un criterio normativo [...]. Desde nuestro punto de vista, los principios como normas son fundamentales cuando están reconocidos en una de lãs fuentes constitucionales y son susceptibles de argumentación iusfundamental.”

Por sua vez, o penalista Luís Flávio Gomes38, em bem lançada assertiva obtempera:

“Considere-se, de outro lado, que é da essência da lei contemplar casos genéricos, não casos concretos, podendo estabelecer regras favoráveis a um ou outro dos princípios em eventual conflito, mas nunca desvirtuar a priori nenhum deles, porque isso equivaleria à violação da Constituição. O legislador, em suma, pode orientar a ponderação do juiz, mas, ainda que queira, por sua própria posição, carece de faculdades para substituí-lo nesse trabalho, determinando a decisão que proceda (em cada caso concreto) à vista do jogo conjunto dos preceitos constitucionais e das circunstâncias do caso (dado que precisamente não pode ter essa ‘visão’).

Dito de outro modo: os conflitos entre princípios são resolvidos pelo juiz no caso concreto, e jamais podem ser definitivamente cancelados pelo legislador, pois eliminar a colisão (entre princípios), como regra geral, requereria postergar um princípio em benefício de outro e, com isso, estabelecer, por via legislativa, uma hierarquia entre preceitos constitucionais que, simplesmente, suporia assumir um poder constituinte que o legislador não ostenta.”

A interpretação acadêmica a respeito da resolução dos conflitos entre princípios jurídicos é invariável, quer ela proceda do jusfilósofo, quer do constitucionalista, quer do civilista, quer do penalista ou do processualista, visto que a ciência do Direito não pode vulgarizar seus conceitos em relação a institutos que devam ser aplicados de forma equânime, isto é, na exata medida de sua importância e relevância jurídica.

O intérprete imparcial deve ser justo em suas conclusões e fiel à comunidade que acredita em suas percepções. Daí porque deve trabalhar com extremo rigor a mensagem que é empregada em cada palavra da lei, fazendo uma investigação sistêmica de sua aplicação, a fim de fornecer subsídios àqueles que necessitam utilizá-la no dia-a-dia forense.

A mesma regra aplica-se ao Juiz isento, posto que não deve agir como um servo da lei. Ao contrário: se a regra da lei exige uniformidade de tratamento para aqueles que estão sob o seu império, o Juiz pode romper com essa concepção e aplicar, de acordo com o modelo de conduta que achamos razoável ser praticada em sociedade, quer em relação a nós ou a nossos semelhantes, os corretivos que o legislador não editou e que editaria, se tivesse tido conhecimento do caso em questão, para garantia da segurança jurídica, ainda que, para isso, tenha que recorrer à equidade.

O Juiz não pode ser um leguleio. Devemos sempre conceder a ele o poder da interpretação, porque não é a lei que representa a noção que devemos ter da palavra Justiça, e sim o resultado de sua intelecção frente às peculiaridades do caso concreto. Destarte, por não ser a lei um produto fabril, pronto para consumo, compete ao Juiz interpretá-la, alheio a qualquer paixão, sopesando as provas apresentadas e a pretensão deduzida para encontrar a justa medida da Justiça.

No entendimento lapidar de Raphael Boldt:

“Mesmo em períodos de grande clamor popular por penas mais severas e maior repressão à violência, inexiste qualquer justificativa para afronta aos ideais democráticos e humanitários, cuja preservação é imprescindível. De acordo com Rodrigo Boldrini (2006), "[...] essa preservação não impede nem a realização da prevenção geral positiva nem o combate ostensivo ao crime [...]” 39

A visão autoral no final do texto transcrito, por mais justificável que possa parecer, se nos afigura míope e equivocada. É que, no âmbito dos direitos fundamentais, por mais acertada ou definitiva que pareça uma posição, ela sempre deve ser posta em debate em caso de colisão com outro princípio. Como dissemos alhures, a dignidade humana ainda é um conceito por demais abstrato, que não podemos tomar como certo e definitivo; ela se analisa caso a caso. E caso a caso, mesmo que a opinião manifestada goze de valor altíssimo, em face de quem a tenha emitido, ela representa sempre um ponto de vista que deve ser aferido na medida de sua razoabilidade.

Um ponto de vista diferente do esposado pelo doutrinador pode ser ponderado, qual seja: o balanceamento da dignidade da pessoa humana com o princípio da verdade substancial no processo penal. Em cada caso se fará uma ponderação levando em conta: 1) o nível de agressão à parte demandada; 2) o bem jurídico protegido; 3) o interesse público em jogo; 4) a possibilidade de meios alternativos de aplicação da pena, entre outros, à vista do caráter subsidiário e fragmentário do Direito Penal.

O Juiz, como agente político que conduz e resolve o processo, deve ter as condições necessárias para analisar e decidir sobre tais questões. Afinal, além de administrador do processo, ele é o destinatário da prova e se encontra investido de poderes legais para interpretar a norma vigente e emitir a prestação jurisdicional (em nome do Estado), na forma que melhor atenda aos fins previstos no ordenamento jurídico.

Mas essa prestação jurisdicional não pode ser realizada de maneira leviana e improvisada. É indispensável que o Juiz vasculhe a intenção da lei, vale dizer, interprete a norma conforme a gramática da Constituição, cuidando para que sua sentença seja a fiel radiografia da realidade concreta da vida a partir dos fatos noticiados; para que a decisão declare o que o dinamismo social espera, e não aquilo que a letra fria e inerte da lei estabelece em abstrato, pois do contrário qualquer pessoa ou até mesmo uma máquina poderia emitir o que a literalidade da lei informa, e não necessitaríamos de Juízes para interpretá-la.

A nenhuma autoridade, muito menos ao Juiz, é conferido o direito de aplicar a lei de maneira iníqua. Processo sem garantias é o mesmo que vida sem liberdade. Não há injustiça maior do que a promovida pelo próprio Judiciário. É como se, de repente, o mundo desabasse sobre a cabeça do indivíduo e, num passe de mágica, perdesse todo o patrimônio e sua liberdade, tornando-se um desprezível arremedo de figura humana.

Um dos exemplos mais significantes desse absurdo vem da literatura. Na clássica obra “O Processo” de Franz Kafka40, encontramos a descrição perfeita do que significa um processo sem garantias. Um homem acorda pela manhã na pensão onde reside e, antes do desjejum, é visitado por desconhecidos que o avisam sobre sua detenção. Embora tenha tentado, o prisioneiro não conseguiu apurar qual o crime que lhe fora imputado? Quem eram os homens que o detiveram e a serviço de qual autoridade estavam? Quem era o seu acusador? Qual o conteúdo da acusação? Para onde seria levado?

Sem contato com qualquer autoridade governamental ou judicial e sem direito a defender-se em qualquer processo, esse homem tem um fim trágico. Levado como um animal cativo ao local da execução, por ruas escuras e tortuosas, ainda no trajeto, foi morto com uma profunda facada no coração, aplicada impiedosamente por um dos carrascos. Antes, porém, a caminho do cadafalso, abstraído em seus pensamentos, teve a ilusão de haver avistado a figura da mulher amada, mas logo prescindiu dela e curvando-se à sua triste realidade questionou-se: “Onde estava o Juiz que nunca tinha visto? Onde estava o alto tribunal ante o qual nunca comparecera? Elevou as mãos e separou todos os dedos.”

Sabemos que ainda hoje fatos dessa natureza acontecem em várias partes do mundo, inclusive no Brasil, não obstante inúmeros setores da sociedade, na mais completa pervigília, se esforcem para evitar essa prática espúria. A lógica do processo visa a pacificação social, mediante a composição da lide. Todos nós caminhamos em busca dessa satisfação. Por isso, não se pode consentir a violação dessa lógica inquebrantável, sob pena de permitirmos a desordem e a anarquia sociais.

No Brasil, o Supremo Tribunal Federal, guardião de nossa Constituição, em vários de seus julgados, tem tomado posições semelhantes. No Habeas Corpus n.º 97.346/SP, Relator Min. Eros Grau, foi decidido que a dignidade da pessoa humana é fundamento suficiente para proibir a prisão provisória fundada apenas na gravidade do crime, que não é critério hábil para essa decisão:

(...) 4. Entendimento respaldado na inafiançabilidade do crime de tráfico de entorpecentes, estabelecida no artigo 5.º, inciso XLIII da Constituição do Brasil. Afronta escancarada aos princípios da presunção de inocência, do devido processo legal e da dignidade da pessoa humana. (...) 6. A inafiançabilidade não pode e não deve --- considerados os princípios da presunção de inocência, da dignidade da pessoa humana, da ampla defesa e do devido processo legal --- constituir causa impeditiva da liberdade provisória. 41

Ainda segundo o STF, também ofende a dignidade da pessoa humana a duração excessiva da prisão cautelar, como defende o Min. Celso de Mello, na ementa de seu voto:

"HABEAS CORPUS" - PRISÃO CAUTELAR - DURAÇÃO IRRAZOÁVEL QUE SE PROLONGA, SEM CAUSA LEGÍTIMA - CONFIGURAÇÃO, NA ESPÉCIE, DE OFENSA EVIDENTE AO "STATUS LIBERTATIS" DOS PACIENTES - INADMISSIBILIDADE - PRECEDENTES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL - INJUSTO CONSTRANGIMENTO CONFIGURADO - PEDIDO DEFERIDO EM PARTE. - O excesso de prazo, mesmo tratando-se de delito hediondo (ou a este equiparado), não pode ser tolerado, impondo-se, ao Poder Judiciário, em obséquio aos princípios consagrados na Constituição da República, a imediata devolução do "status libertatis" ao indiciado ou ao réu. - A duração prolongada, abusiva e irrazoável da prisão cautelar de alguém ofende, de modo frontal, o postulado da dignidade da pessoa humana, que representa - considerada a centralidade desse princípio essencial (CF, art. 1.º, III) - significativo vetor interpretativo, verdadeiro valor-fonte que conforma e inspira todo o ordenamento constitucional vigente em nosso País e que traduz, de modo expressivo, um dos fundamentos em que se assenta, entre nós, a ordem republicana e democrática consagrada pelo sistema de direito constitucional positivo. Constituição Federal (Art. 5.º, incisos LIV e LXXVIII). EC 45/2004. Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Art. 7.º, ns. 5. e 6). Doutrina. Jurisprudência.” 42

A partir de tais precedentes, concluímos que o Estado Democrático de Direito, que preza pelas liberdades e direitos dos seus cidadãos, não pode estar dissociado do princípio da dignidade da pessoa humana, posto ser fundamento basilar para a proteção de qualquer ser humano que esteja sob seu poder. Na verdade, esse princípio essencial abrange não só a proteção das pessoas, ou de classes sociais, mas especificamente do ser humano, porque esse deve ser um dos fins precípuos do Estado moderno.

Essa garantia constitucional, de caráter inalienável, não pode ser negada a qualquer ser humano, ainda que se encontre despido da própria dignidade; mesmo que desconheça ou ignore a noção a respeito do conceito de dignidade humana, ou que seja autor da mais atroz conduta criminal, tendo em vista o fato de que toda pessoa deve ser protegida pela ordem jurídica estatal.

O processo penal, que regula a aplicação do Direito Penal, e que atinge diretamente o ser humano, é intimamente e intrinsecamente ligado ao princípio da dignidade da pessoa humana, não podendo dele se divorciar, sob pena de regredirmos a um tempo em que apenas a vontade do soberano prevalecia; em que tudo girava em torno das coisas que interessavam somente ao monarca, sob a égide do Estado totalitário.

Na mesma categoria de importância se localiza a fraternidade humana, como princípio constitucional essencial, considerando que funciona como ponto de equilíbrio, porque a sanção penal não impede, segundo Reynaldo Soares da Fonseca43 , a “construção de uma Justiça restaurativa que não ignora as exigências de reparação da ordem violada”, posto que “a pena humanizada não é, em rigor, violência destinada a dominar quem é punido” (...) nem “a execução da pena pode inviabilizar a possibilidade de reconciliação.”

Sobre o autor
José Eulálio Figueiredo de Almeida

Professor de Direito Processual Penal da Universidade Federal do Maranhão - UFMA. Juiz de Direito Titular da 8.ª Vara Cível em São Luís. Membro da Academia Maranhense de Letras Jurídicas. Especialização em Processo Civil pela UFPE. Especialização em Ciências Criminais pelo UNICEUMA. Doutor em Direito e Ciências Sociais pela Universidad del Museo Social Argentino - UMSA.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALMEIDA, José Eulálio Figueiredo. Dignidade humana, fraternidade e direito de defesa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7604, 26 abr. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/89554. Acesso em: 23 dez. 2024.

Mais informações

Artigo integrante da obra coletiva Direitos Humanos e Fraternidade: Estudos em Homenagem ao Ministro Reynaldo Soares da Fonseca.

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