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Dignidade humana, fraternidade e direito de defesa

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9. CONCLUSÃO

A vida do Direito não é diferente da vida das pessoas. Ao longo da sua existência, o homem vai polindo aquele diamante bruto que ele é quando nasce, sendo, por isso, joalheiro de si mesmo. O Direito também necessita desse constante polimento, a fim de que possa conferir utilidade social àqueles que labutam nas relações sociais do dia-a-dia.

Os princípios do Direito são dogmas que se estabeleceram socialmente desde o surgimento do homem sobre a face da terra e existem independentemente de sua previsão em normas ou preceitos escritos, pois assim já demonstrou a história no exemplo de Antígona, clássica peça de Sófocles, que bem representa o atendimento a direito não escrito, vale dizer o respeito a princípio que não estava previsto em nenhuma norma ou lei do Estado.

Por conseguinte, podemos afirmar, sem o menor exagero, que os princípios são postulados derivados do Direito Natural e que antes de se tornarem preceitos dogmáticos já existiam, porque têm sua sede na natureza e independem de qualquer fórmula escrita para se tornarem estáveis.

A lei envelhece, cai em desuso; o princípio a tudo resiste, vence o túnel do tempo, sobrevive a todos os regimes jurídicos e enfrenta todas as espécies de governo, mesmo que não seja contemplado no ordenamento legislativo do País. Por isso, resulta de fundamental importância seu estudo, como fonte basilar de tudo.

Expostas essas considerações, é imperioso reconhecer que a dignidade da pessoa humana está reconhecida na legislação brasileira, como princípio fundamental, e se encontra preservada em nossa ordem jurídica processual penal, gozando de status constitucional, ao lado de uma série variada de outros princípios, de igual importância, porém de menor grandeza, que asseguram o direito ao exercício do ius postulandi do jurisdicionado, não importando a posição que ocupe na relação processual.

Alguns exemplos da real preservação desse princípio podem ser enumerados para a aplicação no plano processual penal, como garantia do acusado44, a saber: 1) o direito à citação; 2) o direito à ampla defesa; 3) o direito ao contraditório; 4) o direito de ter respeitada sua dignidade como pessoa humana; 5) o direito à apresentação de provas perante os tribunais; 6) o direito à assistência judiciária gratuita, provada sua condição de pobreza ou não; 7) o direito ao processo justo, onde sejam respeitadas garantias mínimas; 8) o direito a julgamento pelo juízo natural; 9) o direito a uma pena proporcional ao mal causado com o delito; 10) o direito à interposição de recursos às instâncias superiores; etc.

A análise da dignidade da pessoa humana, como princípio fundamental do Direito Constitucional, se traduz em algo da maior importância para a sua aplicação no campo do Direito Penal (e o processual penal) constitucional. Por isso é que, a cada dia, se torna mais frequente e fascinante o estudo desse instituto pelos juristas de nosso tempo, visando sempre a que se descortinem novos horizontes onde a sua temática deva fincar profundas raízes.

Mas não basta investigar e descobrir a imensa utilidade do princípio da dignidade da pessoa humana. É curial que haja uma política criminal voltada para o respeito à sua efetividade no processo penal como conditio sine qua non para o exercício do sagrado direito de defesa do acusado, desde o primeiro momento da privação de sua liberdade, pois do contrário faremos tábula rasa do mesmo e ficaremos apenas pregando no deserto como dantes faziam os sermonistas inveterados.

Não se deve descurar, por outro lado, que o Direito Penal e o Processual Penal possuem outras insígnias tão significantes quanto o princípio da dignidade da pessoa humana, que reclamam aplicação simultânea, no decurso da tramitação processual, a exemplo do que ocorre com os ingredientes que se misturam para temperar uma saborosa comida. O desrespeito a qualquer formalidade processual pode ensejar a nulidade insanável do ato, assim como a ausência de qualquer condimento pode tornar a refeição insípida.

Daí porque se espera que a vida do Direito, pós-pandemia da Covid 19, seja inspirada em princípios transindividuais, tais como a fraternidade e a dignidade humana, a fim de que seja possível a solução dos conflitos processuais com o olhar voltado para a finalidade precípua da pena, qual seja a certeza da punição, porém com a garantia da recuperação do condenado, pois essa é a expectativa da coletividade e deve ser a missão indeclinável dos órgãos encarregados da execução penal, considerando que a pena não se fundamenta essencialmente no fato de punir, mas na garantia de devolver o condenado recuperado à sociedade.

Na verdade, deveria haver, na entrada das penitenciárias, uma frase escrita num grande portal, onde se possa ler “Aqui pratica-se Fraternidade e Dignidade Humana”. Não seria essa frase uma carta de seguro para o condenado, muito menos um favor penitenciário, mas um alerta para os visitantes e, principalmente, para os agentes públicos que aí trabalham de que suas instalações abrigam pessoas que, não obstante tenham praticado delitos, devem ser tratadas com fraternidade e dignidade, posto que o objetivo primordial da pena não é embrutecer o recluso, mas reeducá-lo para a convivência entre seus semelhantes, o que somente será possível se o mesmo for tratado sem discriminação no cárcere.

Mas essa reinserção social passa também pelo dever de conservação da sociedade, o qual é obrigação de todos, principalmente do egresso penintenciário, considerando que somente a piedade, como consectário jurídico da fraternidade humana, não é capaz de assegurar a transformação ética do homem na reconstrução dos bons valores que permitirão sua virtuosa interação social. Nisto tudo está refletida a ideia de responsabilidade solidária, como um dever de natureza jurídica.


REFERÊNCIAS

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Notas

1 O tema da fraternidade se encontra muito bem explicado na obra do Profesor e Ministro do STJ Reynaldo Soares da Fonseca (O Princípio Constitucional da Fraternidade: seu resgate no sistema de justiça), cuja importância será significativa para este estudo.

2 A fraternidade é tratada no preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos do Homem como princípio norteador da liberdade e da igualdade. Os três constituem a ideia de participação democrática, justiça e cidadania.

3 Gênesis 2, 7.

4 Algumas bíblias utilizam a expressão limo da terra.

5 O historiador francês Fustel de Coulanges (A Cidade Antiga. 4.ª ed. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 1988, p. 8/9), falando sobre as crenças e os cultos dos povos antigos, aduz que “os ritos fúnebres mostram-nos claramente como, quando se colocava um corpo no túmulo, se acreditava em que, ao mesmo tempo, se punha lá algo vivo. Virgílio, descrevendo sempre com tanta precisão e escrúpulo as cerimônias religiosas, termina a sua narrativa dos funerais de Polidoro com estas palavras: ‘Encerramos a alma no túmulo’. Igual expressão se encontra em Ovídio e em Plínio, o Moço. (...) No final da cerimônia fúnebre havia o costume de chamar por três vezes a alma do morto, e justamente pelo nome que este havia usado em vida. Faziam-lhe votos de vida feliz debaixo da terra. Dizia-se a ele por três vezes: Passa bem. E acrescentava-se: Que a terra te seja leve. (...) Derramava-se vinho sobre o seu túmulo para lhe mitigar a sede; deixavam-lhe alimentos para o apaziguar na fome. Degolavam-se cavalos e escravos, pensando que estes seres, encerrados com o morto, o serviriam no túmulo, como o haviam feito durante a sua vida.”

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6 Sistema de la Naturaleza. Espanha: Madrid. Editora Nacional, 1982, p. 121.

7 O falecido jurista Vicente Cernicchiaro, ex-ministro do STJ, em texto de apresentação da obra “Leis Especiais e Sua Interpretação Jurisprudencial”, de Alberto Silva Franco et alli, ensina que “como ponto de partida, o Direito não se esgota na lei. A lei é um momento do Direito. Outras normas devem ser consideradas. Os usos e costumes estão presentes, a todo instante, em nossas vidas, vale dizer nas relações jurídicas de que participamos.”

8 Relativo ao Estado do Maranhão, localizado no nordeste do Brasil.

9 No Maranhão do século XVIII, o pano de algodão era considerado “dinheiro da terra” e sua cotação se dava em rolos de pano ou de tecido de algodão. O sal também era moeda valiosa nos negócios celebrados entre as pessoas, sendo cotado em forma de “surrão de sal”. Antonia Silva Mota et alli, no livro “Criptos Maranhenses e Seus Legados”, Ed. Siciliano, p. 17, 2001, registram essa prática corriqueira em várias passagens desse importante trabalho histórico, tal como se encontram dispostas em determinados testamentos. Para reforçar o argumento invocam lecionamento inserido na obra “Lineas fundamentales para la crítica a la economia política”, escrita em 1857 pelo alemão Karl Marx, na qual esse renomado filósofo, talvez com o pensamento voltado para o Maranhão do século anterior, destacava: “Originariamente serve como dinheiro a mercadoria (...) que mais seguramente pode ser trocada por qualquer outra (...), numa organização social dada representa a riqueza por excelência, é objeto da demanda e oferta geral e possui um valor de uso especial. Exemplos são o sal, peles, vacas, escravos.”

10 Prova Judiciária no Cível e Comercial. 5.ª ed., São Paulo: Saraiva, Vol. I, p. 222. a 225, 1983.

11 De acordo com Daniela dos Santos et alli “A philia Aristotélica representa os primeiros ensaios de um conceito de fraternidade. Enquanto amizade é um sentimento raro, dado a algumas pessoas, a fraternidade deve ser entendida como algo mais amplo, dirigido a um número maior de pessoas.” (Breve ensaio a partir da amizade e da fraternidade enquanto qualidades políticas de práticas cidadãs sustentáveis). Acesso: https://www.google.com/search?q=A+fraternidade+em+arist%C3%B3teles&rlz=1C1CAFB_enBR693BR693&oq=A+fraternidade+em+arist%C3%B3teles&aqs=chrome..69i57.8046j0j7&sourceid=chrome&ie=UTF-8.

12 Gênesis, Capítulo 1, Versículo 1.

13 Vocabulário Jurídico. Rio de Janeiro: Forense, Vol. III e IV, p. 447, 1.ª ed., 1.ª tiragem, 1989.

14 Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Portugal: Coimbra, p. 1.038, 1.ª ed., 1997, Ed. Livraria Almedina.

15 Processo do Trabalho: Princípios e peculiaridades – Apud Curso de Direito do Trabalho em Homenagem a Mozart Victor Russomano. São Paulo: Saraiva, p. 686, 1985.

16 Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: RT, p. 84, 5.ª ed., 1989.

17 Estado de Derecho y Dignidad Humana. Buenos Aires: Euro Editores, p. 1, 2008.

18 Vide Javoleno – In Digesto, Livro 50, Título XVII, de regulis juris, fragmento 202.

19 Hoje mais do que nunca, a expressão “dignidade da pessoa humana” está em voga, isto é, na ordem do dia, como uma locução inflacionária usada por um enorme contingente de profissionais com o intuito de atribuir-lhe o mais amplo significado e alcance frente a valores sociais definidos a partir das relações do homem com seus semelhantes e outros seres vivos. Como afirmam os doutores Augustin Narducci e José Luis Guzmán, em prefácio à tradução para o espanhol do livro “Estado de Derecho y Dignidad Humana” (Buenos Aires: Euros Editores, 2008), de autoria do jurista alemão Werner Maihofer, “dignidad humana”, “dignidad del hombre” o “dignidad de la persona”, constituyen expresiones que remiten al valor especial que ese ser vivo tiene entre todos los seres igualmente vivos”.

20 Poderíamos aqui enumerar uma série de situações que, para determinada pessoa ou grupo de indivíduos (vinculados ou não a setor cultural específico), não seriam consideradas ofensivas à sua dignidade, enquanto que para outros, trata-se de ofensa indelével, notadamente do significado essencial da honra e da dignidade da pessoa, com reflexos particulares na esfera das relações privadas de cada pessoa ofendida e pacificação no âmbito do Direito Penal mediante a aplicação judicial de sanção ao culpado. Esse paradoxo pode ser percebido nitidamente, nos dias atuais, entre os centros urbanos e as cidades do interior, assim como entre os indivíduos civilizados e os aborígenes ou silvícolas.

21 Recentemente, alguns órgãos governamentais claudicaram a assistência à saúde de vários cidadãos que testaram positivo à pandemia denominada Covid 19, os quais vieram a óbito por causa da omissão de governantes que não disponibilizaram nas unidades de atendimento leitos suficientes, máscaras, luvas, álcool gel e remédios eficazes que, certamente, salvariam essas vidas humanas. Impuseram ao povo o isolamento social sem a estratégia de uma política sanitária de proteção medicamentosa aos indivíduos que contraíram o coronavírus.

22 No Brasil, embora tais direitos estejam garantidos na Constituição Federal e no Código de Processo Penal, em certas situações, têm sido negado a indivíduos acusados da prática de ilícitos penais, bem como a réus que necessitam de cuidados especiais dos órgãos governamentais. Exemplo disso está refletido em alguns processos da chamada operação lava jato em que não se observou o devido processo legal e aplicou-se penas excessivas.

23 Disponível em www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link, acessado em 05/06/2011.

24 Ética e Direito. São Paulo: Editora Martins Fontes, p. 163, 1999.

25 A comparação de Perelman é falaciosa, pois sabemos que nenhuma muleta se adapta a todas as situações dos desvalidos. Diferentemente, a régua de lesbos de que trata Aristóteles se adaptava a qualquer superfície, plana ou não, se encaixando perfeitamente na adequação apresentada.

26 Constituciones sin constitucionalismo y la desproporción de la proporcionalidad. Dos aspectos de la encrucijada de los derechos fundamentales en el neoconstitucionalismo. Acesso: https://www.unioviedo.es/constitucional/fundamentos/noveno/pdfs/03_carlosbernal.pdf

27 Processo Penal. São Paulo: Saraiva, Vol. 03, p. 170, 11.ª ed., 1989.

28 Gênesis, Capítulo 3, Versículos 9 a 12.

29 Livro dos Atos dos Apóstolos – 22, 25 e 26, 1.

30 Norma e Bem Jurídico no Direito Penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais: Série As Ciências Criminais no Século XXI, Volume 5, p. 29. e 30, 2002.

31 Tratado de Derecho Penal, parte general, I. Buenos Aires: Ediar, p. 50, 1987.

32 SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 3.ª ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 109.

33 CANOTILHO apud SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 3.ª ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 109.

34 No dia 25 de maio de 2020, em plena pandemia da Covid 19, o mundo inteiro assistiu um policial branco americano (Derek Chauvin), do Estado de Minneapolis, matar um homem negro (George Floyd) em face de permanecer com seu joelho, premendo o pescoço da vítima por oito minutos e quarenta e seis segundos, tempo suficiente para matá-lo sufocado. O fato repercutiu não apenas nos Estados Unidos, mas em todo o planeta terra, provocando movimentos sociais liderados por políticos e ativistas.

35 Alguns países, onde a legislação ainda é bastante rudimentar ou o Direito vigente se baseia na religião, ainda é possível encontrarmos a aplicação de penas cruéis que submetem o condenado a verdadeiro sofrimento, tais como açoites, lapidações, castração, dilaceração de membros, fuzilamentos, enforcamentos, etc.

36 É bem conhecida a forma como os Estados Unidos da América tratam essa questão. Arvorando-se de Juiz do mundo desrespeitam a soberania de outros países, prendendo cidadãos em seu território de origem e os levando para prisões indevassáveis, onde permanecem incomunicáveis, sem direito de defesa e de julgamento por um tribunal internacional, anos após anos até morrerem ou receberem pena-castigo de duração indeterminada.

37 Seres Humanos – Personas – (Su) Personalidad Jurídica (Viceversa y Recíprocamente). Buenos Aires: Ed. Colihue, p. 43/44, 1.ª ed., 2009.

38 Op. Cit., p. 144.

39 BOLDT, Raphael. A dignidade da pessoa humana e as provas no Processo Penal. Jus <https://jus.com.br/artigos/8323/a-dignidade-da-pessoa-humana-e-as-provas-no-processo-penal>. Acesso em: 8 maio 2011.

40 O Processo. São Paulo: Martin Claret, p. 39. e 256, 3.ª ed., 2010.

41 STF, Segunda Turma, HC n.º 97346/SP, Relator Min. Eros Grau

42 STF, Segunda Turma, HC n.º 85988/PA, Relator Min. Celso de Mello

43 O Princípio Constitucional da Fraternidade: seu resgate no sistema de justiça. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2019.

44 Algumas dessas garantias também são asseguradas à parte contrária.

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Sobre o autor
José Eulálio Figueiredo de Almeida

Professor de Direito Processual Penal da Universidade Federal do Maranhão - UFMA. Juiz de Direito Titular da 8.ª Vara Cível em São Luís. Membro da Academia Maranhense de Letras Jurídicas. Especialização em Processo Civil pela UFPE. Especialização em Ciências Criminais pelo UNICEUMA. Doutor em Direito e Ciências Sociais pela Universidad del Museo Social Argentino - UMSA.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALMEIDA, José Eulálio Figueiredo. Dignidade humana, fraternidade e direito de defesa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7604, 26 abr. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/89554. Acesso em: 23 dez. 2024.

Mais informações

Artigo integrante da obra coletiva Direitos Humanos e Fraternidade: Estudos em Homenagem ao Ministro Reynaldo Soares da Fonseca.

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