Um dos temas de maior recorrência e importância atualmente é o conceito do que venha a ser bis in idem e suas consequências sobre as diversas áreas da Administração Pública.
Isso porque, diante das revoluções sofridas pelo Direito Processual Penal e Administrativo sancionador, cada vez mais se percebe a profunda identidade de ambos, tanto em estrutura de responsabilização quanto na aplicação de sanções, motivo pelo qual o famoso jargão da “independência das instâncias” perde força e passa, em vez de garantir autonomia às diversas áreas de intervenção do Estado, a ser verdadeiro excesso punitivista que avança contra o cidadão.
Nessa linha, e em conformidade com o Tribunal Europeu de Direitos Humanos, é necessário reconhecer-se o Direito Administrativo Sancionador como um subsistema do Direito Penal para que, a partir daí, na esteira das ideias defendidas pelo ministro — e doutor em Direito — Gilmar Mendes e pelo professor doutor Bruno Tadeu Buonicore, tenhamos entre nós a concepção de que a independência das instâncias anunciada pelo artigo 37, parágrafo 4º, da Constituição Federal “deve ser interpretada como uma independência mitigada, sem ignorar a máxima do ne bis in idem” [1].
Essa é, também, a linha adotada pelo item 4 do artigo 8º da Convenção Americana de Direitos Humanos, onde expressamente resta afirmado que “o acusado absolvido por sentença passada em julgado não poderá ser submetido a novo processo pelos mesmos fatos”.
A questão interessante que surge dessa vedação ao “duplo punir” diz respeito à possibilidade, ou não, de uma “dupla investigação”.
Caso, em esfera penal, o Ministério Público, titular do ius persequendi, decidir pelo arquivamento de um expediente investigativo por absoluta ausência de provas quanto à autoria que se imputa a um determinado acusado, ainda que reservando-se ao direito de nova investigação nas hipóteses do artigo 18 do Código de Processo Penal [2], poderá a autoridade administrativa investigar o mesmo fato de maneira independente?
Tal debate torna-se especialmente importante diante da situação que hoje o Leviatã impõe ao governador de Santa Catarina que, investigado pela aquisição de 200 respiradores para tratamento da Covid-19, teve a seu favor, após extensas investigações: 1) relatório policial que não lhe indicia; 2) pedido de arquivamento dos autos por parte da Procuradoria-Geral da República; 3) deferimento do pedido pelo Superior Tribunal de Justiça; e 4) solicitação de arquivamento de inquérito civil por parte da Procuradoria-Geral de Justiça daquele Estado.
Mesmo após quatro distintas autoridades entenderem pelo arquivamento dos autos, ressalvado o já mencionado artigo 18 do Código de Processo Penal, o chefe do Executivo será julgado por crime de responsabilidade pelo “tribunal especial” formado por desembargadores e deputados estaduais.
Ora, qual seria a “nova prova”, ou, pelo menos, a “notícia de nova prova” que justificaria um julgamento político de tal cidadão?
O excesso punitivista do Estado enquanto “Medusa” fica patente, pois, apesar de quatro pronunciamentos oficiais, o governador volta ao banco dos investigados exatamente pelos mesmos fatos que, após profunda e diligente investigação federal e estadual, restou inocentado.
Além do evidente bis in idem que a situação retrata, com flagrante desrespeito à Constituição Federal, à Convenção Americana de Direitos Humanos, ao Tribunal Europeu de Direitos Humanos e, finalmente, ao codex processual penal, resta também inexplicada a curiosa perseguição política em andamento, pois, como é tradicional, a existência de uma Comissão Parlamentar de Inquérito e o julgamento de um agente político por delitos de responsabilidade jamais foi constatada após tantas e tão qualificadas declarações pela ausência de provas que justifiquem tal persecução.
Enfim, se em Santa Catarina o poder político resolveu se sobrepor às razões jurídicas já esposadas, assim o fez por não encontrar em solo pátrio jurisprudência firme que ateste a relação de independência mitigada entre as instâncias, cabendo ao Poder Judiciário, quiçá com base neste próprio caso enquanto precedente, começar o traçado das balizas necessárias à proteção cidadã contra o gigantismo desmesurado da vontade e poder de punir estatal.
[1] A vedação do bis in idem na relação entre direito penal e direito administrativo sancionador e o princípio da independência mitigada: artigo de 02/03/2021, por Bruno Tadeu Buonicore e Gilmar Mendes, disponível em https://ibccrim.org.br/publicacoes/edicoes/741/8454.
[2] Artigo 18. Depois de ordenado o arquivamento do inquérito pela autoridade judiciária, por falta de base para a denúncia, a autoridade policial poderá proceder a novas pesquisas, se de outras provas tiver notícia.