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Repercussões das espécies de vitimização no crime de estupro

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Agenda 16/05/2021 às 16:05

4. Espécies de Vitimização Secundária e Terciária aplicadas no Crime de Estupro

O crime de estupro é de vasta tipificação no mundo, e tem longo histórico de positivação no Brasil. Foi demarcado por utilização de diferentes pesos punitivos a depender a figura da vítima do delito, geralmente do sexo feminino, assim, merece especial atenção quando associado ao fenômeno da vitimização, que se ocupa a estudar o processo de ofensa e sua repercussão na esfera particular do ofendido em diferentes estágios.

O crime de estupro é paradoxal, pois de um lado existe a reprovação máxima social ao transgressor, todavia, a vítima também sofre pelo abandono e julgamento dos meios de controle social. Varella (1999) em sua obra célere “Estação Carandiru” complementa: “É universal o ódio aos estupradores. Os ladrões aceitam tudo: agressão física, estelionato, roubo, exploração do lenocínio e assassinos torpes – menos o estupro. A ojeriza a este crime é compartilhada pelos próprios funcionários e pela sociedade em geral (Varella, 1999, p. 144)”. Deste modo, o que justifica a presença dos estágios de vitimização endereçado ao sujeito passivo de um crime tão bárbaro?

Primeiro, uma das respostas ao questionamento acima se dá pelo fato da vítima do crime de estupro ser via de regra mulher, o que é somado a cultura do estupro fundada e sedimentada em nossa sociedade, que se alinha a um nível duvidoso de tolerância comunitária à violência contra o gênero feminino, que ainda está fixada em uma concepção de família nuclear parental, associado com a tendência de conjugação da mulher digna com a figura de mulher casta, transcorrendo no sentido da honra e caráter da vítima ser dependente da forma de expressar ou não sua sexualidade. (FOGLIA, 2018).

A mulher, segundo a concepção de sociedade patriarcal, é tida por ser traiçoeiro, em uma associação com a figura de Eva, já que por sua falta foi responsável por sua expulsão, junto de Adão, do paraíso, o que é somado a ideia de que a mulher deve seguir os ensinamentos de Maria, mantendo sua figura de pura e casta para ser considerada indivíduo honesto e confiável, assim, mesmo que tenha sua liberdade sexual violada, tem seu papel de vítima relativizado tendo em vista a esfera do delito a ela dirigido. O que influi diretamente nos estágios de vitimização, uma vez que o meio probatório mais difundido dentro do crime de estupro é a palavra da vítima, que muitas vezes não pode ser apoiada em outros meios de prova.

Ao considerar as marcas de gênero e o patriarcado verifica-se que os homens e mulheres são tutelados, desde a infância, como agir para se adequar em seus respectivos gêneros, e esta separação gera manchas de desigualdade, conflitos, desrespeitos e violência. Gerando concepções em que a mulher necessita se adaptar em um padrão tido como “correto” a fim de ser respeitável e digna da condição de vítima, condutas como o uso de bebida alcoólica, vestimentas de pouco cumprimento ou até o fato de estar sozinha podem servir de sustentáculo para afirmações pífias como de que a vítima teria provocado ou requisitado a violência sexual. (ASSUNÇÃO; CARDOSO, 2018).

Mendelsohn mantinha a concepção de vítima ideal, como já explanado no presente artigo, que seria aquela que não contribuiu para prática do ato criminoso, mas este prisma não é suficiente dentro do tipo penal do estupro. Miller e Armstrong (2018) personificam a “vítima ideal” do referido delito como a mulher agarrada na rua por um estranho, brandindo uma arma, que deve gritar e lutar, mas que no final não tem nenhuma alternativa se não se submeter ao domínio do transgressor, aliás, ela deve ter uma casa agradável, carece ser boa filha ou uma boa esposa de uma família amorosa, precisa ter um emprego estável e por fim, necessita se vestir modestamente, e não pode ter bebido ou estar em uma parte duvidosa ou decadente da cidade.

Assim, a concepção aceitável de “vítima ideal” dentro do delito de estupro é um patamar de difícil persecução, pois até a reação do ofendido e sua vestimenta são fonte de dúvida em relação a sua provocação ou participação no delito, e mesmo que os requisitos citados sejam atingidos não há garantia que contexto social de controle formal e informal abarque as preocupações e ensejos da vítima, pois, geralmente, esta estará fadada eternamente a maior pena, a de ser mulher.

Destaca-se que o crime de estupro é comum e pode ser praticado contra qualquer pessoa, inclusive pessoas do sexo masculino. Apesar de serem minorias entre os ofendidos do delito em testilha, também sofrem com os estágios de vitimização, principalmente em nível terciário, já que a cultura machista emprega que o homem é ser soberano e marcado pela força, o que é contrariado pela dominação e subversão que delimita o tipo penal do estupro, o que incide na falta de notificação às autoridades competentes por estas vítimas sobre a ocorrência do crime, com fulcro em temor na vexação social.

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Outro ponto importante para a existência dos estágios de vitimização dentro do crime de estupro, principalmente o de cunho terciário, é em função de quem comete o delito, que em geral, são pessoas próximas a vítima, mantendo até relação de parentesco e que mascaram sua índole em meio social. Varella (2017), elucida:

A maioria dos crimes de estupro não é cometida pelo homem que ataca a mocinha num beco ermo. Os agressores mais frequentes são os que aproveitam da proximidade de vítimas indefesas. São padrastos, tios, avôs, primos mais velhos, filhos do companheiro da mãe, amigos de família ou vizinhos que gozam da confiança dos moradores da casa. Pais que abusam das filhas pequenas completam essa caterva de celerados. (VARELLA, 2017, p. 168).

Isto posto, os sujeitos ativos do crime de estupro são em sua grande maioria pessoas próximas ao contexto social da vítima, que se misturam de forma satisfatória a sua conjectura comunitária, o que implica que esta ao procurar ajuda de terceiro seja desacreditada em razão da falta de provas além de sua palavra, ou, em razão do histórico do transgressor, como fruto da tendência da depreciação da vítima de estupro. Bueno e Sobral (2020), dentro do Anuário de Segurança Pública de 2020, com dados fornecidos pelas Secretarias Estaduais de Segurança Pública e/ou Defesa Social, informam que em 84,1% dos casos de estupro e estupros de vulnerável o autor era conhecido da vítima.

Outra consequência dos estágios de vitimização, é o processo de auto culpabilização da vítima, primeiro sobre o prisma de vitimização secundária, como no caso onde o ofendido não é atendido adequadamente por funcionários de delegacia, que fazem perguntas impróprias como, qual o cumprimento da saia que a vítima estava usando, se esta teria provocado o transgressor, ou ainda, questionamentos sobre a vida sexual do sujeito passivo, além disso, em sede de vitimização terciária, por exemplo, quando a vítima percebe que seus vizinhos e amigos não acreditam na versão contada por esta por conhecerem o transgressor, o que decorre em um processo de trauma de difícil tratamento.

O Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2020 atestou dados alarmantes. No Brasil ocorre um estupro a cada oito minutos, no ano de 2019 ocorreram sessenta e seis mil e cento e vinte e três estupros e estupros de vulnerável registrados no país, entre os quais, 57,9% das vítimas tinham no máximo treze anos, e que 85,7% eram do sexo feminino. (FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2020).

A efetivação dos estágios de vitimização contribui para a subnotificação ou para a ocorrência do fenômeno da cifra negra, onde os delitos não são notificados as autoridades competentes. Bueno e Sobral (2020) estabelecem que a subnotificação é resultado do sentimento de culpa, medo e vergonha que são enfrentados pela vítima, consequência do desestimulo das autoridades e até mesmo social, o revela que o número anteriormente apresentado pode ser na realidade dez vezes maior. Demonstrando mais um fruto podre da vitimização secundária e terciária no crime de estupro.

Um exemplo de vitimização secundária e sua repercussão negativa é o caso do livro Unbelievable (2018), escrito pelos repórteres e professores universitários T. Christian Miller e Ken Armstrong, que mais tarde foi adaptado em forma de série para a Netflix, que relata o caso real de uma jovem que vive em um complexo juvenil de moradia e estímulo de emprego para jovens adultos que viviam em lares adotivos, que não foi acolhida pelas autoridades policiais, que a desrespeitaram, a desacreditaram, fazendo que a jovem tivesse dúvidas sobre sua própria versão, além disso, por conta de sua mudança de depoimentos durante a fase de inquérito foi denunciada e condenada por denunciação caluniosa, o que mais tarde foi refutado, em razão da prisão do culpado, que foi encontrado na posse de fotos da jovem e de outras vítimas durante busca policial. Christian Miller e Ken Armstrong venceram o prêmio Pulitzer, em 2016, pelo seu artigo sobre o supracitado desfecho, que se tornou no referido livro.

Ao falar de vitimização terciária salta a memória da menina de 10 anos do estado do Espírito Santo, que sofreu com violações sucessivas desde os seis anos de idade, e por resultado foi engravidada por um tio, assim, como vítima de estupro de vulnerável era seu por garantia legítima o direito de abortar legalmente, o que não foi levado a cabo pelos controles informais sociais. Em um primeiro momento, pelos médicos do estado da criança que se recusaram a fazer o procedimento pois a infante estaria com vinte e duas semanas de gestação alegando questões técnicas sem apelo jurídico, uma vez que o aborto já teria sido apreciado e confirmado em sede judiciária, o que obrigou a menina a viajar para o estado de Pernambuco para realizar o procedimento. Acrescenta-se que membros do próprio governo federal e militantes de extrema direita publicaram diretamente sua reprovação a infante e sua família (EL PÁIS, 2020a).

O processo de vitimização terciária da infante de 10 anos foi intensificado com o assédio de uma pediatra e uma obstetra que entraram no hospital, se valendo de suas identidades profissionais, com o fito da criança e sua responsável, a vó, mudarem de decisão. Além disso, grupos de conservadores religiosos se juntaram na frente do hospital em que se realizaram o procedimento gritando, tentando invadir a instituição e fitando impedir o procedimento. (EL PÁIS, 2020b).

O relato do calvário da menina do Espírito Santo indica como a sociedade trata a vítima do crime de estupro, mesmo que esta seja uma infante de meros dez anos, ela não é vista como ser detentora de direitos, e sim como mero receptáculo, a vítima é objetificada, o que delimita a perversidade da vitimização terciária, que suprime os direitos garantidos e positivados legalmente, com o consequente abandono social do ofendido, em razão de um olhar social tendencioso e sem o cuidado necessário resguardado a ela.

Neste diapasão, uma possível solução para o quadro da vitimização secundária é a realização de cursos de capacitação e de formação cíclicos para agentes responsáveis pelo controle social formal no crime de estupro, sobre temas como gênero, o próprio machismo, cultura de estupro, violência sexual e temáticas correlatas, com o objetivo de conscientizar os operadores do Direito envolvidos no processo. (PRADO; NUNES, 2016).

Destaca-se que o Projeto de Lei 5.091/2020, apresentado em 04 de novembro de 2020, tendo por ementa a alteração da Lei nº 13.869/19 (Lei de abuso de autoridade), que se encontra até a presente data aguardando apreciação pelo Senado Federal após regular tramitação pela Câmara dos Deputados, propõe tipificar a prática de violência institucional. O referido projeto de lei se destina a criminalizar o agente público que por meio de atos comissivos ou omissos prejudiquem o atendimento tanto à vítima como a testemunha de violência ou que incidam em sua revitimização, a pena é de três meses a um ano, cominado com multa. (BRASIL, 2020).

O Projeto de Lei 5.091/2020 define revitimização como o discurso ou a prática de cunho institucional que subjugue a vítima ou a testemunha a procedimentos desnecessários, repetitivos ou até mesmo invasivos que perpetuem a situação de violência, estigmatização ou exposição de suas imagens, e complementa, é isento de pena aquele que, por erro justificável, supõe situação de fato que, se existisse no contexto real, tornaria a ação legítima. (BRASIL, 2020).

A vitimização secundária ocorre no crime de estupro quando o estigma social patriarcal incide na prática do agente público, que ao invés de abarcar os sofrimentos da vítima os intensificam, para que esta mancha não ocorra é necessário a aplicação de práticas de cunho conscientizador como cursos de formação aos ditos profissionais e medidas que tipifiquem a prática, como o projeto de lei retro transcrito.

Como forma de combater o estágio terciário da vitimização no crime de estupro é necessário a desconstrução da cultura do estupro. Prado e Nunes (2016) delimitam que as mulheres que são estupradas são revitimizadas pela sociedade em geral, que lhe coisificam como mero objeto no ato de lhe atribuir culpa, total ou parcial, pelo evento delituoso, ao normalizar e permitir o acontecimento da referida violência sexual contra ela, o que é fruto do machismo institucionalizado, personificando a cultura do estupro.

A problemática da vitimização terciária do crime de estupro é de difícil resolução, em face das marcas históricas e dogmáticas a quais nossa sociedade se insere, mas é preciso perseverar, como medidas de conscientização aplicadas ao público em geral, aplicadas em instituições de ensino, como inserção na grade de ensino básico, é necessário a discussão do tema em ambiente escolar e familiar, difusão de palestras sobre igualdade de gênero, políticas públicas de discriminação positiva para inclusão da mulher, e aplicação daquela famosa crença perdida no tempo, o famoso bom senso, pois é importante influir que nem toda vítima reage igual e que para a prática do estupro é apenas necessário a figura do estuprador, a mulher, sua vestimenta e sua interação social não provocam o estupro, ninguém pede para ser estuprado.

Por fim, Sohaila Abduli (2019) ensina em seu Guia Abduli para salvar a vida de uma sobrevivente de estupro:

Mostre-se horrorizado, mas não caia da cadeira, a ponto de obrigar a outra pessoa cuidar de você. Acredite nela. Nada de perguntar “E se...”, ou discordar, ou duvidar. Simplesmente acredite nela. Deixe que ela tome a iniciativa. Se ela quiser falar, tudo bem. Se ela quiser ficar calada, tudo bem também. Se ela quiser chorar, a mesma coisa. Se ela quiser fazer piada, tudo certo. Se ela quiser atirar as coisas na parede, sem problemas. Pergunte o que ela quer. Você não precisa adivinhar. Incentive-a a procurar ajuda – médica, legal, física e profissional. Mas não force isso. Não fique querendo saber detalhes, mas deixe-a saber que você está disponível para ouvir, se ela quiser explicar melhor. Não questione os julgamentos que ela fez. Deixe que ela formule o que está dizendo do jeito que quiser, com as palavras que escolher. Não tente entender ou analisar. Simplesmente esteja disponível. Lembre-se de que essa é a mesma pessoa que você conheceu antes de saber que ela havia sido estuprada. Trate-a do mesmo jeito. Algo terrível aconteceu a ela, mas é a mesma pessoa. Talvez ela também precise ser lembrada disso. E, por fim, mas não menos importante, não poderia dar um conselho melhor que o de Caitilin Moran: não seja babaca. (Sohaila Abduli, 2019, p. 97/98).

Apesar de usar o gênero feminino na passagem, a autora se refere a todos os gêneros. A vítima do crime do estupro pode desenvolver variados traumas em razão da violência sofrida, tanto a nível primário, secundário e terciário, e assim é necessário que esta receba apoio tanto das autoridades competentes bem como do seu círculo social, cuidar da vítima é acalentar os dogmas do direito penal, é manter o equilíbrio comunitário, uma vez que esta se reinserirá no ambiente coletivo.

A vítima de estupro sofre com as repercussões bárbaras iniciais do ato do transgressor, porém, inserida em uma sociedade como a brasileira, demarcada pela cultura do estupro e patriarcado, pode ser revitimizada, como consequência da atuação destrambelhada de agentes públicos, e com o jugo social, na forma da vitimização terciária, como fruto da tendencia machista em implicar a mulher, a vítima em via de regra, como ser traiçoeiro ou mero objeto social, assim, é necessário a implantação de medidas públicas, como de treinamento das autoridades envolvidas no processo, e leis, como o projeto de lei 5.091/2020, que reprimam a prática, além da adoção de medidas de conscientização da população acerca da problemática de gênero e a cultura do estupro.

Sobre a autora
Eleusis Britto

Pós-Graduanda em Ciências Criminais – Escola Superior de Advocacia do Piauí.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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