III - DA INCONSTITUCIONALIDADE DA EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 20 DE 1998 E DA INSUBSISTÊNCIA DA LEI N.º 10.887/2004
3.1 – Da Super-Rigidez da Constituição Brasileira e do Espaço de Atuação Reservado ao Poder Constituinte Derivado em Matéria Tributária
Ora, é ressabido por todos que a Constituição Federal encampa direitos fundamentais que não podem ser alterados, nem por via de Emenda Constitucional.
O legislador constitucional ordinário (ou derivado) não é totalmente livre para exercer sua atividade, sua ação é limitada por parâmetros fixados dentro da própria Constituição.
Grande parte das normas constitucionais só pode ser alterada por um procedimento especial e existe ainda outro grupo de normas que sequer podem ser alterados, ex vi do artigo 60, parágrafo 4º, da CF/88 (cláusulas pétreas).
Neste pesar, socorre-se da lição de Alexandre de MORAES [10], que classifica a Constituição Federal de 1988 como super-rígida.
Rígidas são as constituições escritas que poderão ser alteradas por um processo legislativo mais solene e dificultoso do que o existente para a edição das demais espécies normativas (por exemplo: CF/88 – art. 60); por sua vez, as constituições flexíveis, em regra não escritas, excepcionalmente escritas, poderão ser alteradas pelo processo legislativo ordinário. Como um meio termo entre as duas anteriores, surge a constituição semiflexível ou semi-rígida, na qual algumas regras poderão ser alteradas pelo processo legislativo ordinário, enquanto outras somente por um processo legislativo especial e mais dificultoso. Ressalta-se que a Constituição de 1988 pode ser considerada como super-rígida, uma vez que em regra poderá ser alterada por um processo legislativo diferenciado, mas, excepcionalmente, em alguns pontos é imutável. (CF, art. 60, § 4º - cláusulas pétreas). (sem grifo no original)
Ao tomar o caminho da super-rigidez constitucional o constituinte originário optou por garantir uma maior segurança jurídica e a decorrente manutenção da ordem jurídica originária.
Entre enveredar por hipóteses que permitam uma alteração da Constituição com maior facilidade ou por um sistema constitucional super-rígido, o constituinte optou pela última via. Esta escolha foi feita exatamente para que a ordem constitucional primária fosse respeitada e mantida, evitando assim um esfacelamento da Constituição original.
Não é a toa que diversos constitucionalistas referem-se à atual carta suprema como "remendada" ou utilizando-se de outras expressões jocosas, pois é sabido que a Constituição, passou a ser, infelizmente, uma "colcha de retalhos" e está bem distante daquilo que foi idealizado pelos legisladores constituintes originários.
Não há dúvida que a CF/88 é super-rígida, já que para se procederem alterações em seu texto é necessário um procedimento muito mais rigoroso do que para produzir demais instrumentos normativos.
Como já citado, existe ainda em nosso texto constitucional um componente que é imutável. É o que dispõe o § 4º, do artigo 60, da Constituição Federal, ao disciplinar que não será objeto de deliberação proposta de emenda tendente a abolir a forma federativa do Estado, o voto direto, secreto, universal, e periódico, a separação dos Poderes e os direitos e garantias fundamentais.
O constituinte originário limitou a atuação do constituinte derivado, firmando balizas onde este pode atuar. Isso ocorre porque o constituinte derivado possui um poder limitado de atuação, o qual foi fixado pelo constituinte originário, este sim, com uma atuação livre e ampla.
José Afonso da SILVA dispõe:
O poder de reformar a Constituição é inquestionavelmente um poder limitado, porque regrado por normas da própria Constituição que lhe impõem procedimento e modo de agir, dos quais não pode arredar sob pena de sua obra sair viciada, ficando mesmo sujeita ao sistema de controle de constitucionalidade. Esse tipo de regramento de atuação do poder de reforma configura limitações formais, que podem ser assim sinteticamente enunciadas: o órgão do poder de reforma (ou seja, o Congresso Nacional) há de proceder nos estritos termos expressamente estatuídos na Constituição. [11]
A atuação do poder reformador, portanto, não deve colidir com os direitos e garantias dos contribuintes e da sociedade e com a segurança jurídica, sendo oportuno, a partir disso, indagar se se coaduna com os valores constitucionais uma Emenda Constitucional atropelar a definição do constituinte originário, consoante o qual a criação de nova fonte de custeio da Seguridade Social deve ser feita por Lei Complementar, atingindo a segurança jurídica que deve ser devotada à sociedade.
Conveniente lembrar também que toda alteração promovida pelo constituinte derivado deve partir de uma leitura de todo o texto constitucional, e não apenas do art. 60, parágrafo 4º, da CF/88, vez que os direitos e garantias fundamentais dos contribuintes e vão além daqueles relacionados no art. 5º da CF e estão espraiados por toda nossa Constituição.
E também tem um aspecto fático que não pode ser desprezado nesse contexto: o fato de que as reformas constitucionais têm sido editadas na atualidade para atender a interesses outros, não gerando surpresa quando as mesmas atropelam os limites do Poder Constituinte Originário, em especial os direitos e garantias fundamentais.
3.2 – Da Não Subsunção da "Nova Fonte de Custeio", dada pela Lei n.º 10.887/04 às novas expressões contidas no art. 195 da CF.
O argumento que a Lei n.º 10.887/2004, publicada no D.O.U. em 21/06/2004, ao inserir a alínea j ao inciso I do art. 12, da Lei n.º 8.212/91, o fez sob a égide regulamentar do incisos I e II, artigo 195 da CF, com a redação dada pela EC n.º 20 de 1998, também não valida tal situação, a persistir a necessidade de lei complementar para tanto.
O art. 195 da CF/88 declara que as contribuições sociais são "do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei, incidentes sobre folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício", bem como "do trabalhador e dos demais segurados da previdência social. (sem grifos no original)
Antes da EC n.º 98, como já demonstrado, o art. 195 não continha tais hipóteses.
Esforçou-se o legislador constituinte derivado no sentido de promover um alargamento do texto do art. 195, ao inserir expressões abertas, tais como: "demais rendimentos do trabalho", "demais segurados da previdência social", "entidade a ela equiparada na forma de lei".
Em que pese a alteração promovida pela EC n.º 20/98, ainda persiste a impossibilidade de os agentes políticos e de os entes federativos serem considerados sujeitos passivos da contribuição social sobre os subsídios pagos àqueles, seja porque os agentes políticos não se enquadram ao conceito de empregado, seja porque os entes federativos não se enquadram no conceito de empregador, empresa ou entidade a ela equiparada na forma da lei, seja porque os subsídios dos agentes políticos não constituem salário, inexistindo, portanto, base de cálculo para a incidência da contribuição.
3.2.1 – Agentes Políticos x Empregados e demais segurados
Os detentores de mandato eletivo, como o prefeito, o vice-prefeito, e os vereadores, não integram a fonte de custeio prevista no art. 195, II, da Constituição, haja vista não se enquadrarem no conceito de trabalhadores, pois mantêm com o Estado vínculo de natureza política e não profissional, como assenta Celso Antonio Bandeira de MELLO [12].
O caso atinente à contribuição por parte dos entes federativos (União, Estados, Municípios e Distrito Federal) sobre os subsídios percebidos pelos agentes políticos também não é diferente.
Percebe-se que os conceitos utilizados pela Constituição e pela Lei 8.212/91 são pertinentes ao direito privado, não se coadunando com a esfera pública, de modo que não só o agente político não pode ser enquadrado no conceito de "empregado", e nem ente federativo ao de "empresa, empregador", sendo incongruente exigir contribuição do ente federativo a partir da base de cálculo "folha de salários".
3.2.2 – Entes Federativos x Empresas e entidades a ela equiparadas
Os entes federativos não podem ser tratados como empresas, empregadores ou entidades equivalentes, nem ser tida como relação trabalhista o vínculo do parlamentar com o Poder Público, pois os cargos são eletivos e não contratuais.
Os conceitos eleitos pelo texto constitucional, quais sejam: empregador, empresa e entidade a ela equiparada, são conceitos inerentes à seara privada, ao Direito do Trabalho e ao Direito Civil. Trabalhemos um a um os termos e expressões contidos na Constituição em comparação a ente federativo.
Consoante o art. 2º da CLT, "Considera-se empregador a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviços".
No mais, o parágrafo 1º do art. 2º, declara que "Equiparam-se ao empregador, para os efeitos exclusivos da relação de emprego, os profissionais liberais, as instituições de beneficência, as associações recreativas ou outras instituições sem fins lucrativos, que admitirem trabalhadores como empregados".
Mesmo nas hipóteses de empregador equiparado, percebe-se que a CLT recorre à necessidade de uma relação jurídica de natureza trabalhista.
Nesse sentido, a propósito, Amauri Mascaro NASCIMENTO diz que "Empregador é o ente, dotado ou não de personalidade jurídica, com ou sem fim lucrativo, que tiver empregado". A partir desse conceito, verifica-se ser necessária a participação da pessoa em uma relação jurídica definida pelo Direito como de natureza empregatícia, contratando trabalhador para atuar de forma subordinada, para que seja qualificado como empregador.
A EC n.º 20/98 não teve o condão de possibilitar o enquadramento do agente político e do ente federativo na regra de incidência das contribuições sociais sobre os subsídios pagos àqueles, ao inserir ao texto constitucional a expressão "empresa ou entidade a ela equiparada na forma da lei", e "empregador ou outros segurados".
Para o art. 966 do Código Civil, "Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços". E, segundo dicção do parágrafo único, "Não se considera empresário quem exerce profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, ainda com o concurso de auxiliares ou colaboradores, salvo se o exercício da profissão constituir elemento de empresa".
Ora a situação do ente federativo é totalmente oposta à da empresa, a começar pela natureza jurídica, em que a União, os Estados-Membros, o Distrito Federal e os Municípios são pessoas jurídicas de direito público interno (art. 41, I a III, do CC) e a empresa pessoa jurídica de direito privado (art. 44 do CC).
Ademais, pelo princípio da especialidade, as normas de caráter especial, revogam as de caráter geral e as normas posteriores revogam as normas anteriores, se com estas colidirem.
O Decreto-Lei nº 4.707, de 1.942 (Lei de Introdução ao Código Civil), disciplina:
Art. 2o Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue.
§1o A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior.
Ora, o Novo Código Civil foi promulgado em 2002 e trata de modo específico das questões empresariais, revogando em seu art. 2.045 a primeira parte do Código Comercial que disciplinava sobre a matéria.
Desta maneira, qualquer acepção jurídica que se tente impor ao Município, inclusive sua equiparação à figura da empresa, não encontra respaldo legal.
Tal pretensão viola a disposição literal do art. 110 do CTN que disciplina:
Art. 110. A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias. (sem grifo no original)
De certo, o Município não pode ser equiparado a uma empresa, pois não possui elemento de empresa, não trabalhando com o intuito de obter lucros.
Desta forma, a rubrica "Empresa" não pode ser aplicada a uma pessoa jurídica de direito público interno, sob pena de subversão da legislação civil que trata do assunto.
Não se pode falar também que a Emenda Constitucional n.º 20/98, ao determinar a nova redação ao artigo 195, inciso I, da Constituição Federal de 1.988, abarcou tal situação ao dispor da possibilidade de haver tributação da "...da empresa e da entidade a ela equiparada...". (sem grifo no original)
De certo, o poder constituinte derivado guarda limitações materiais e formais à sua atuação, diferindo neste aspecto do poder constituinte originário.
Cristalina é atuação inconstitucional da EC n.º 20/98, ao equiparar Municípios à Empresa, em um atropelo aos mais basilares conceitos de direito.
A jurisprudência do E. STF é remansosa ao constatar que os direitos e garantias fundamentais dos contribuintes encontram-se espraiados por toda a Constituição Federal de 1.998. Nesta toada, a violação do desenho constitucional originário atribuído à Constituição de 1.988, ao art. 195, incisos I e II, veicula norma que vilipendia a Regra Matriz de Incidência Tributária, no espectro da Sujeição Passiva, causando um aumento dos contribuintes obrigados à recolher a exação.
Assim, a EC n.º 20/98, ao alterar o texto do art. 195, apenas autorizou a tributação da empresas não-empregadoras, não tendo o condão de justificar a cobrança de contribuições sociais dos agentes políticos, bem como dos entes federativos em correspondência às contribuições sociais pretensamente devidas por aqueles.
3.2.3 – Subsídios dos Agentes Políticos x Salário e Folha de Salário
O art. 195 da CF/88 deferiu competência à União para a instituição de contribuição social dos empregadores a incidir sobre "folha de salários, o faturamento e o lucro". Após a EC n.º 20/98, a contribuição do empregador, empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei, passou a incidir sobre folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício".
A partir do momento em que a Constituição Federal, bem como a Lei n.º 8.212/91 apenas se referem à base de cálculo "folha de salários", constata-se que apenas por lei complementar (art. 154, I) poderia ser instituída base de cálculo para se tentar autorizar a contribuição por parte dos entes federativos, sendo indevidas, por tal razão, as mencionadas contribuições.
3.3 - Da Impossibilidade de se Alterar a Regra Matriz de Incidência Tributária
Como visto no artigo 60, § 4º, IV, da CF/88, as garantias e os direitos fundamentais não podem ser suprimidos de nosso ordenamento jurídico.
Vê-se que o § 2º do artigo 5º da CF/88 disciplina que os direitos e garantias expressos no referido dispositivo não excluem outros decorrentes dos regimes e princípios adotados em nossa Constituição.
Isto significa que além dos direitos e garantias fundamentais expressos no artigo 5º da CF/88, existem outros direitos que também são fundamentais, mas que estão espraiados por toda nossa CF/88.
Sobre a prevalência dos princípios sobre as meras regras veiculadas pela Constituição, Roque Antonio CARRAZZA disciplina: "As normas jurídicas de mais alto grau encontram-se na Constituição Federal. Tais normas, ao contrário do que pode parecer ao primeiro súbito de vista, não possuem todas a mesma relevância, já que, algumas, veiculam simples regras, ao passo que, outras, princípios." [13]
Sendo estes – garantias fundamentais – decorrentes dos princípios adotados pela CF/88, constatando-se um princípio por ela adotado, existirá também, coligado a este princípio, um direito, também fundamental na mesma proporção dos elencados expressamente no art. 5º da CF/88.
Sobre este assunto, valorosas são as lições de Sacha Calmon Navarro Coelho e Misabel Abreu Machado DERZI:
A partir do julgamento da ADIn 9397 (15 de dezembro de 1993), confirmado em outros, em especial na PET 1.466-PB (28 de agosto de 1998), o Supremo Tribunal Federal identificou e acolheu as limitações constitucionais ao poder de tributar, tanto as imunidades, como os direitos do contribuinte (à legalidade, irretroatividade, anterioridade, igualdade e não confisco), consagrados na Seção II do Capítulo do Sistema Tributário, como direitos humanos irreversíveis, imodificáveis por meio do poder derivado de emenda e reforma, conferido ao legislador. [14]
Inegável é que a CF/88 veicula, entre outros, como princípios tributários, o da capacidade contributiva, o da anterioridade tributária, o da proteção à propriedade.
Assim, estes e outros princípios que estão consignados por toda nossa CF/88 constituem-se em direitos e garantias fundamentais dos contribuintes, que não podem ser suprimidos de nosso ordenamento jurídico sequer por Emenda Constitucional.
O constituinte de 1988 delimitou e apontou de maneira expressa e rígida a competência tributária da União; dos Estados e do Distrito Federal e dos Municípios, delimitando ainda outras formas suplementares de a União exercer sua competência.
Ora, não foi à toa o fato de o constituinte originário de 1988 descer às minúcias ao dispor sobre a competência tributária no Brasil.
Desta forma, ficou delimitado na CF/88 os campos de atuação de cada ente federativo, a fim de se preservar e delimitar a competência tributária de cada membro.
O legislador constitucional originário ainda foi além, definiu minuciosamente o arquétipo tributário de cada exação. A CF/88 trouxe as características de cada imposto, colacionando elementos possíveis para analisarmos a regra matriz de cada tributo.
A composição da regra matriz de incidência tributária faz-se necessária, pois o sujeito passivo do tributo, faz parte do conseqüente da regra matriz de incidência tributária, na clássica lição de Paulo de Barros CARVALHO, conforme destacou-se anteriormente.
3.4 – Da Segurança Jurídica como Integrante dos Direitos e Garantias Fundamentais do Contribuinte
O princípio da segurança jurídica tem destaque nos Estados Democráticos de Direito, que se encontra estatuído no Brasil conforme a norma do artigo 1º da Constituição Federal: "A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito", e assim deve ser administrado.
De acordo com o que prega Dalmo de Abreu DALLARI, citado por Kildare Gonçalves CARVALHO [15], o Estado Democrático de Direito deve observar três pontos fundamentais: a) supremacia da vontade popular; b) preservação da liberdade; e c) igualdade de direitos, necessitando de instituições que fortaleçam e defendam tais princípios.
Um dos princípios inerentes a este Estado é o da segurança jurídica, que se refere à garantia de que as relações jurídicas não serão prejudicadas pela atuação estatal, sendo regido pelo artigo 5º, incisos XXXVI e LXXIII, da Constituição Federal:
XXXVI - a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada;
LXXIII - qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência;
A questão que envolve este artigo se refere à atuação do Estado, através de seu órgão legislativo, que editou uma primeira norma (Lei nº 9.506/97, considerada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal); depois através da Emenda Constitucional n.º 20/98, reeditou aquela norma interpretada pela Corte Suprema, permitindo a edição de nova lei no exercício de 2004.
Como já foi ressaltado, a Constituição Federal de 1988 é classificada como super rígida, necessitando para sua alteração a edição de emenda constitucional, que possui limitações, dentre as quais os direitos fundamentais.
Ao instituir o regime brasileiro como de um Estado Democrático de Direito, o princípio da segurança jurídica deve ser arrolado como um dos direitos fundamentais do cidadão, maneira através da qual exerce-se a sua cidadania contra os abusos do Estado.
A edição da Lei nº 10.887/2004 afronta ao princípio da segurança jurídica porque em razão de uma situação concreta, devidamente analisada pela Corte Suprema, foi considerada violadora das normas da Carta Magna, demonstrando a utilização das emendas constitucionais para fins outros, mas não a adequação às necessidades e aspirações sociais.
Dentre as garantias constitucionais individuais encontra-se a segurança jurídica que, segundo José Afonso da SILVA [16] consiste no "conjunto de condições que tornam possível às pessoas o conhecimento antecipado e reflexivo das conseqüências diretas de seus atos e de seus fatos à luz da liberdade conhecida", entretanto, não é o que ocorre no Brasil, uma vez que o Estado no afã de aumentar a sua arrecadação ultrapassa os limites da segurança, alterando a Constituição Federal, possibilitando a instituições de outros tributos.
A Carta Cidadã, como foi denominada a Lei Maior, encontra-se totalmente desfigurada em relação àquela editada no mês de outubro de 1988, porque inúmeras emendas foram editadas, ultrapassando-se o primado da excepcionalidade que as deve nortear. De fato, a Constituição não deveria ser uma norma sujeita a tantas alterações. Não obstante se trate da norma mais importante para o País, é tratada pelo Legislativo Brasileiro como mais uma regulamentação, alterando-a a seu bel prazer.
Tantas mudanças no sistema constitucional ensejam um estado de insegurança. Num momento a norma é julgada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal. Posteriormente, em razão de uma emenda à Constituição, edita-se outra, com a mesma redação daquela. Pergunta-se, qual a segurança que o cidadão tem em praticar atos, firmar contratos, contribuir para a previdência, seja pública, seja privada, se se operam alterações no regime jurídico sem as justificativas necessárias.
O Supremo Tribunal Federal, ao julgar Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 3685/DF, ajuizada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, cuja Relatora foi a Ministra Ellen Gracie, se pronunciou quanto à inclusão da segurança jurídica aos direitos e garantias fundamentais:
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ART. 2º DA EC 52, DE 08.03.06. APLICAÇÃO IMEDIATA DA NOVA REGRA SOBRE COLIGAÇÕES PARTIDÁRIAS ELEITORAIS, INTRODUZIDA NO TEXTO DO ART. 17, § 1º, DA CF. ALEGAÇÃO DE VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA ANTERIORIDADE DA LEI ELEITORAL (CF, ART. 16) E ÀS GARANTIAS INDIVIDUAIS DA SEGURANÇA JURÍDICA E DO DEVIDO PROCESSO LEGAL (CF, ART. 5º, CAPUT, E LIV). LIMITES MATERIAIS À ATIVIDADE DO LEGISLADOR CONSTITUINTE REFORMADOR. ARTS. 60, § 4º, IV, E 5º, § 2º, DA CF. 1. Preliminar quanto à deficiência na fundamentação do pedido formulado afastada, tendo em vista a sucinta porém suficiente demonstração da tese de violação constitucional na inicial deduzida em juízo. 2. A inovação trazida pela EC 52/06 conferiu status constitucional à matéria até então integralmente regulamentada por legislação ordinária federal, provocando, assim, a perda da validade de qualquer restrição à plena autonomia das coligações partidárias no plano federal, estadual, distrital e municipal. (...) 5. Além de o referido princípio conter, em si mesmo, elementos que o caracterizam como uma garantia fundamental oponível até mesmo à atividade do legislador constituinte derivado, nos termos dos arts. 5º, § 2º, e 60, § 4º, IV, a burla ao que contido no art. 16 ainda afronta os direitos individuais da segurança jurídica (CF, art. 5º, caput) e do devido processo legal (CF, art. 5º, LIV). 6. A modificação no texto do art. 16 pela EC 4/93 em nada alterou seu conteúdo principiológico fundamental. Tratou-se de mero aperfeiçoamento técnico levado a efeito para facilitar a regulamentação do processo eleitoral. 7. Pedido que se julga procedente para dar interpretação conforme no sentido de que a inovação trazida no art. 1º da EC 52/06 somente seja aplicada após decorrido um ano da data de sua vigência. [17] (sem grifo no original)
A decisão reproduzida, que trata da legislação eleitoral, observou com muita precisão que a segurança jurídica é um dos direitos individuais, não permitindo que a legislação seja alterada sem observar os seus reflexos e que ouse o Poder Constituinte Reformador conferir status constitucional à matéria destinada à regulamentação da lei ordinária, valendo também para o caso da matéria disciplinada por Lei Complementar.
A existência de um número grande de emendas constitucionais se deve ao fato de que regras que deveriam estar inseridas em leis ordinárias, em leis complementares, estão incorporadas ao texto constitucional, determinando um número excessivo de mudanças. Então, mais uma razão em prol do reconhecimento da inconstitucionalidade da EC n.º 20/98.
3.5 - Da Possibilidade de Declaração de Inconstitucionalidade de Emenda Constitucional
A jurisprudência do STF é firme em assentir que é plenamente possível o reconhecimento de inconstitucionalidade de Emenda Constitucional.
O exemplo clássico desta situação é o que ocorreu relacionado à Emenda Constitucional n.º 3, de 17/03/1993, que em seu artigo 2º, autorizou a União a instituir o IPMF e incidiu em vício de inconstitucionalidade, senão veja-se a ementa da decisão:
Uma Emenda Constitucional, emanada, portanto, de constituinte derivado, incidindo em violação à Constituição originária, pode ser declarada inconstitucional, pelo Supremo Tribunal Federal, cuja função precípua é de guarda da Constituição. A Emenda Constitucional n. 3, de 17/03/1993, que, no art. 2º, autorizou a União a instituir o IPMF, incidiu em vício de inconstitucionalidade, ao dispor, no parágrafo 2º desse dispositivo, que, quanto a tal tributo, não se aplica o art. 150, III, b e VI, da Constituição, porque, desse modo, violou os seguintes princípios e normas imutáveis (somente eles, não outros): o princípio da anterioridade, que é garantia individual do contribuinte (art. 5º, § 2º, art. 60, § 4º, inciso IV e art. 150, III, b da Constituição). (ADI 939, Rel. Min. Sydney Sanches, DJ 18/03/94)
Corroborando a tese: "O Supremo Tribunal Federal já assentou o entendimento de que é admissível a Ação Direta de Inconstitucionalidade de Emenda Constitucional, quando se alega, na inicial, que esta contraria princípios imutáveis ou as chamadas cláusulas pétreas da Constituição originária (art. 60, § 4º, da CF)". [18]
Situação semelhante ocorreu no Julgamento da Ação Declaratória de Inconstitucionalidade n.º 1102-2/DF, onde se tratou de caso análogo, em que também foi julgada inconstitucional a exigência do recolhimento de 20% (vinte por cento) sobre os pagamentos feitos aos autônomos e empresários, uma vez que esses valores não se enquadravam no conceito de folha de salários previsto no artigo 195, I, da Constituição.
José Antonio FRANCISCO, em artigo intitulado "Da possível inconstitucionalidade da Emenda Constitucional que criou a CIP", brinda-nos com a seguinte reflexão: "... na instituição de tributos, devem ser respeitadas as garantias individuais contidas no Sistema Tributário Nacional, sob pena de inconstitucionalidade. Tal restrição aplica-se também às emendas constitucionais, pois o poder constituinte derivado é restrito às determinações e limites estabelecidos pelo poder constituinte original". (sem grifo no original)
No contexto das contribuições cobrados dos agentes políticos e dos entes federativos sobre os subsídios pagos àqueles, patente é a inconstitucionalidade da Emenda Constitucional n.º 20/98, ao atropelar as previsões contidas no art. 195, §4º, e 154, I, da CF, que exigem lei complementar para a criação de novo segurado/contribuinte da Seguridade Social. Tendo a Emenda Constitucional n.º 20/98, extravasado os limites do Poder Reformador, afigura-se a mesma inconstitucional.
3.6 – Ausência de Constitucionalização Superveniente
O discurso oficial parte da premissa de que a Emenda Constitucional n.º 20/98, ao alargar a regra matriz de incidência do art. 195 da Constituição Federal, teve o condão de constitucionalizar o conteúdo trazido pela Lei n.º 10.887/2004, outrora abarcado pela Lei n.º 9.506/97. Defende-se que não mais se necessitaria de Lei Complementar, exigência do art. 195, §4º, c/c 154, I, CF, em função de a fonte de custeio da Seguridade Social relativa à tributação dos subsídios dos agentes políticos estar enquadrada na base de cálculo "demais rendimentos do trabalho", bem como na possibilidade de eleger como sujeitos passivos o empregado e as entidades equiparadas à empresa. Assim, caberia a lei ordinária regulamentar a tributação, porque o fato tributável, a base de cálculo, já estariam previstas no art. 195 da Constituição.
Em síntese, defende-se uma Constitucionalização Superveniente, ou seja, do tratamento, via emenda constitucional, de um assunto antes reservado à Lei Complementar.
Não se trata, todavia, de Constitucionalização Superveniente, porque, como demonstrado, a Emenda Constitucional n.º 20/98 não teve o condão de enquadrar os agentes políticos e os entes federativos como contribuintes da Previdência Social, com base de cálculo nos subsídios daqueles, nem de dispensar a confecção de Lei Complementar para a criação de novo segurado, restando inconstitucional a Lei n.º 10.887/2004. Portanto, não se pode dizer que a EC n.º 20/98 promoveu constitucionalização superveniente, até porque, como já demonstrado, a ordem constitucional fundada em 1988 elegeu a Lei Complementar como instrumento criador de novas fontes de custeio da Seguridade Social.