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Reforma administrativa: a estratégia de desconstrução da segurança pública

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A PEC 32 demoniza os servidores públicos, mas não alcança o Legislativo e o Judiciário, esvaziando totalmente a narrativa de combate aos privilégios.

Elaborada pela equipe econômica do Poder Executivo Federal sob assinatura do Ministro da Economia Paulo Guedes, a Proposta de Emenda à Constituição nº 32 de 2020, também chamada de “PEC da Reforma Administrativa”, foi encaminhada em 03 de setembro de 2020 pelo Presidente da República Jair Bolsonaro ao Congresso Nacional. Tramitando inicialmente na Câmara dos Deputados e, a despeito de ter recebido diversas críticas de parlamentares, especialistas e estudiosos do tema, a proposição foi aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça e segue seu rito especial conforme regimento interno da casa[3].

A Proposta pretende alterar disposições sobre servidores, empregados públicos e organização administrativa, sob o pretexto de conferir maior eficiência, eficácia e efetividade à atuação do Estado. No entanto, quando e se aprovada, é provável que provoque, na verdade, um efeito de desconstrução da Administração e todo o seu corpo de servidores, eleitos como alvos das medidas[4]. Desta forma, dentre os maiores prejudicados pelas alterações destrutivas, estão os profissionais da Segurança Pública e, por arrastamento, o próprio funcionamento do serviço público essencial por eles prestado.

Marcada pelo recorrente estratagema do “bode na sala”, que nas palavras de Ivo Reis é a criação de um problema para a apresentação da sua solução[5], a manobra lançada na PEC/32 diverge da versada na referida parábola por dois motivos, sobretudo no que tange aos seus efeitos:  1) a complexidade estrutural do serviço público brasileiro – por óbvio – não é a mesma de uma pequena residência, isto é, os resultados indesejados dos dispositivos anacrônicos da proposta são perenes e não podem ser facilmente debelados como quem tange um bode do cômodo de uma casa; 2) os danos irreversíveis ao único patrimônio verdadeiramente do povo (os serviços públicos essenciais) são exponencialmente maiores do que os prejuízos causados a quem convive transitoriamente com um animal em sua sala.

Assim, como na alegoria do bode, o cerne da estratégia do Governo Federal é fomentar uma narrativa de “ameaça” ao país, demonizando os servidores públicos e os apontando como “maior e única” causa de ineficiência do Estado (colocação do bode na sala), e, em seguida, anunciar que resolveu esse “enorme problema” por meio da reforma  administrativa (retirada do bode); artifício em total descompasso com as reais necessidades dos cidadãos brasileiros, que carecem de seriedade no planejamento das políticas públicas e de  continuidade na prestação dos serviços públicos básicos realizada por seus servidores.      

Vale acrescentar que o Executivo Federal, durante toda sua gestão, vem seguido um só padrão de atuação, ou seja, conduzido pelo Ministério da Economia, tem lançado e defendido reiterados diplomas normativos extremamente danosas ao funcionalismo público. Para demonstrar isso, optamos por descrever brevemente aqui as seguintes inserções no ordenamento jurídico: a PEC da reforma da previdência” nº 06/2019 (Emenda Constitucional nº 103, de 12 de novembro de 2019) abriu caminho em sede constitucional para que os Governos Estaduais aumentassem as alíquotas de contribuição, idade mínima de aposentaria e ainda acabassem com o direito à paridade; a Lei Complementar nº 173, de 27 de maio de 2020, dentre outras vedações, proibiu, até 31 de dezembro de 2021, qualquer reajuste salarial, vedando ainda a contagem do tempo em que vigorar a calamidade como de período aquisitivo para a concessão de anuênios, triênios, quinquênios, licenças-prêmio e todos os direitos remuneratórios equivalentes; já a “PEC emergencial” nº 186/2019 (Emenda Constitucional nº 109, de 15 de março de 2021)[6], uma das mais prejudiciais aos profissionais da segurança, implementou hipóteses constitucionais com sérios empecilhos (vedações) às readequações salariais e até mesmo às reestruturações de carreiras dos integrantes das corporações policiais.

Curiosamente, as alterações normativas acima referidas, assim como as veiculadas pela PEC/32, de forma desproporcional, pouco alcançam o Judiciário e o Legislativo, mas recaem sobremaneira em desfavor dos servidores do Poder Executivo, e mais ainda sobre os profissionais da Segurança Pública, aumentando o desequilíbrio das medidas e a temeridade de seus efeitos. Tais alterações, decerto, retiram ou deveriam retirar de cena qualquer argumento de combate a privilégios nas carreiras públicas, conforme tenta induzir o Governo e seus apoiadores.   

Esse modelo de atuação do Executivo Federal, ao que tudo indica tão somente enviesado por uma concepção fiscal e da iniciativa privada, também desconsidera recortes metodológicos imprescindíveis ao bom planejamento das políticas públicas de Estado, dentre os quais, as particularidades dos servidores dos três níveis da federação (União, Estados e Municípios) e dos três poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário). Nesse mesmo prisma Lopes e Cardoso Jr. alertam que é importante diferenciar as características do funcionalismo municipal, estadual e federal, bem como diferenciar as suas características em cada um dos três poderes; a complexidade do tema desaconselha tratamentos uniformes, generalizantes ou aparentemente rápidos e fáceis sobre o assunto[7].

Visto isso, e a fim de especificar o objeto do presente estudo, nos debruçaremos sobre as alterações e efeitos destrutivos da PEC/32, especialmente no que diz respeito aos servidores públicos e aos serviços essenciais de Segurança Pública, estabelecendo como paradigmas os pontos mais desarrazoados do texto original. Prosseguiremos com argumentos sólidos acerca da intempestividade e vícios da proposta, apresentaremos uma síntese e, em conclusão, chamaremos os parlamentares à responsabilidade.

Nesse sentido, cabe esclarecer que esta Emenda pretende inserir novas disposições na Constituição Federal, nos arts. 37, II-B, “a”, “b” e “c”, 39-A, IV, § 1º, 37, XIII, “b”, e prevê, como regra de transição em seu art. 2º, II, uma série de alterações que impactam diretamente em todos os órgãos e profissionais da Segurança Pública elencados no art. 144 da CF: polícia federal, polícia rodoviária federal, polícia ferroviária federal, polícias civis, polícias militares, corpos de bombeiros militares, polícias penais, bem como guardas municipais. No intuito de esclarecer, em termos simples, os mecanismos das alterações precitadas, indicaremos de forma sintetizada os dispositivos que as veiculam, acompanhados dos seus respectivos efeitos:


1 Alterações e efeitos destrutivos para os profissionais da Segurança Pública

Alteração 1: A administração pública direta e indireta de quaisquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá ao seguinte: a investidura em cargo típico de Estado depende de aprovação em concurso público, tendo como etapas o cumprimento de período de, no mínimo, dois anos em vínculo de experiência com desempenho satisfatório e classificação final dentro do quantitativo de vagas previsto no edital do concurso público, entre os mais bem avaliados ao final do período do vínculo de experiência - (art. 37, II-B, “a”, “b” e “c”).

Efeito 1: essa alteração inventa a figura do “policial trainee” por meio do “vínculo de experiência como uma etapa do concurso público”. Significa a modificação por completo da forma de provimento dos cargos das carreiras policiais, totalmente incompatível com a vigente sistemática constitucional e infraconstitucional. Trata-se de um corpo estranho introduzido bem no coração das carreiras típicas de Estado, com o condão de desencadear processo inflamatório irreversível à toda estrutura das atividades estatais exclusivas. Impossível remediar tal previsão devendo ser extirpada do texto.

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Com base no texto da PEC/32, durante esse período de experiência, o candidato ao cargo de natureza policial[8], estando ainda na condição de “particular” (sem ser servidor público porque não foi investido no cargo) e concorrendo a uma vaga de “emprego”, poderá e deverá praticar atos que impliquem na mitigação do exercício de direitos fundamentais, uma vez que passará a desempenhar atividades (indelegáveis) da Administração Pública. Nesse sentido, para o entendimento sobre o alcance desta alteração, vejamos, pelo menos, dois cenários fático-jurídicos insustentáveis:

  1. um “particular” (não investido no cargo e ainda candidato à vaga) estará exercendo atos decorrentes do poder de polícia[9], podendo interferir, em nome do interesse público e supremacia do Estado, conforme suas atribuições, nas mais diversas atividades de outros particulares, em áreas como saúde, consumo, construções, profissões, trânsito, meio ambiente etc.;
  2. Da mesma forma, a figura do trainee, importada da inciativa privada, estará inserida no bojo das atividades decorrentes do exercício do poder da polícia.[10] Nesse contexto, analisemos hipóteses relacionadas à aplicação desse “vínculo de experiência” no âmbito da Polícia Judiciária. Pensemos então no Delegado de Polícia, trainee, isto é, não investido no cargo, tendo que decidir sobre a liberdade das pessoas e, ao mesmo tempo, disputando uma vaga na carreira. Ao término dos dois anos como trainee, não se classificando dentro do número de vagas, teriam validade os atos por ele praticados? O Delegado trainee poderia portar arma de fogo e cumprir mandado de busca numa casa, mesmo não estando investido no cargo? Não há, portanto, qualquer conformação de ordem técnica, normativa ou até mesmo lógica da figura do trainee nas carreiras típicas de Estado.

Pelas razões expostas, é imprescindível a supressão dessa previsão versada nas alíneas do inciso II-B do art. 37 da PEC/32, tarefa que deve ser realizada incontinenti pelos Parlamentares.

Alteração 2: A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios instituirão, no âmbito de sua competência, regime jurídico de pessoal, que compreenderá uma divisão em cinco espécies de vínculos[11], dentre eles, o de cargo típico de Estado. Entretanto, os critérios para definição de cargos típicos de Estado serão estabelecidos em lei complementar federal e não na própria Constituição Federal - (art. 39-A, IV, § 1º).

Efeito 2: logo de início, é importante ressaltar que, a despeito de terem sido realizadas diversas tentativas de disciplinar a matéria, a definição das carreiras típicas de Estado encontra-se pendente de regulamentação legal desde o advento da Emenda Constitucional nº 19, de 4 de junho de 1998. Daí já constatamos quão espinhosa é essa temática.

Apesar disso, a PEC/32 aborda as carreiras típicas de forma açodada e disruptiva, inclusive, inserindo um ilógico vínculo de experiência como etapa do concurso para o ingresso nessas carreiras (vide nossas ponderações nos tópicos acima - alteração 1 e efeito 1). Ora, de um lado a proposta do Governo modifica toda sistemática das carreiras típicas de Estado, e de outro não especifica quais são as carreiras enquadradas neste tipo de vínculo no bojo da nova sistemática da Emenda, demais disso, sequer estabelece os parâmetros constitucionais para futura regulamentação.

Os problemas já existentes e o acréscimo de vários outros por meio da PEC/32 resultarão não só numa enorme instabilidade às carreiras típicas de Estado, mas também, e por decorrência dessa insegurança jurídica, em graves riscos à sociedade. Não é à toa que o art. 247 da CF determina expressamente a necessidade de se estabelecer na legislação um tratamento diferenciado às carreiras com essa natureza, a exemplo do direito à estabilidade no cargo: “As leis previstas no inciso III do § 1º do art. 41 e no § 7º do art. 169 estabelecerão critérios e garantias especiais para a perda do cargo pelo servidor público estável que, em decorrência das atribuições de seu cargo efetivo, desenvolva atividades exclusivas de Estado”.

No intuito de asseverar a relevância das carreiras típicas de Estado para o próprio funcionamento da sociedade, que enfrenta sérios riscos face à reforma pretendida pelo Governo Federal, bem como nortear uma provável definição das carreiras que se enquadram nesse tipo de vínculo, observemos o texto do projeto de Lei em tramitação no Congresso Nacional que visa regulamentar o art. 247, da CF[12]: (I) Para efeitos do disposto no art. 247 da Constituição Federal, as atividades consideradas exclusivas de Estado são aquelas essenciais à consecução e à continuidade da implementação de politicas públicas, exercidas por agentes públicos investidos em cargos efetivos, que desempenham atividades indelegáveis e não-terceirizáveis, com independência, imparcialidade, autonomia e ausência de subordinação hierárquica à esfera político partidária. (II) Os agentes públicos, ocupantes de cargos efetivos nas Carreiras exclusivas de Estado, não podem guardar vínculo temporário ou transitório, nem regência celetista, uma vez que integram o núcleo estratégico e desempenham atividades intransferíveis à iniciativa privada ou a agentes que não forem membros das aludidas Carreiras. (III) São Carreiras típicas de Estado aquelas relacionadas às atividades-fim de jurisdição, legislação e ministério público, advocacia pública, defensoria pública, regulação, administração tributária e controles interno e externo, diplomacia, segurança pública, inteligência e defesa, fiscalização do trabalho e gestão estratégica das ações governamentais.

Visto isso, constitui erro crasso da proposta tanto o tratamento de afogadilho a respeito dessa temática, quanto a omissão no sentido de não definir, no próprio texto da Carta Magna, as carreiras da Segurança Pública como exclusivas de Estado, sobre as quais não há qualquer controvérsia de que preenchem todos os requisitos desta qualificação.

Mas, à luz dos debates em torno da PEC/32, espera-se que o Congresso Nacional reverta o erro do Executivo Federal, fixando, expressamente, os cargos e carreiras vinculados aos órgãos do artigo 144, caput e §8º, da CF, como típicos e exclusivos de Estado.

Alteração 3: A administração pública direta e indireta de quaisquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá ao seguinte: é vedada a concessão de adicionais referentes a tempo de serviço a qualquer servidor ou empregado da administração pública direta, independentemente da denominação adotada - (art. 37, XIII, “b”).

Efeito 3: Um dos maiores efeitos danosos da PEC/32 ao serviço essencial de Segurança Pública reside nessa alteração que extingue verbas salariais decorrentes de tempo de todas as carreiras policiais, tais como: anuênios, triênios, quinquênios e sexta-partes.

Os efeitos prejudiciais aos servidores da Segurança Pública, levados a cabo por este dispositivo, serão indubitavelmente irreversíveis. A extinção desses direitos fere de morte a motivação e até mesmo a condição de sustentabilidade das famílias dos policias que ainda recebem este tipo de verba remuneratória.  Em parte dos Estados da Federação os adicionais decorrentes de tempo de serviço são as únicas contrapartidas remuneratórias capazes de minimizar o grave quadro salarial dos policiais, citem-se, como exemplos, os integrantes das polícias civis dos Estados de São Paulo-SP, Rio de Janeiro-RJ, Rio Grande do Norte-RN e Acre-AC.  

É importante informar que referido dispositivo da PEC/32 não adveio acompanhado de justificativa lastreada em estudos de diagnóstico ou impactos, não sendo consideradas, mais uma vez, as especificidades das unidades federativas, órgãos e servidores que os integram. O que se tem é a inserção de dispositivo generalizante, que extingue diretos alusivos aos salários de servidores públicos, desprovido, inclusive, de estimativa quanto aos efeitos perquiridos pela própria reforma. Tal constatação exsurge também na Nota Técnica 69/21, da Consultoria Legislativa do Senado[13], com as seguintes explicações: “No caso de Estados, Distrito Federal e Municípios, é possível que alguns ainda prevejam o pagamento de tais parcelas. No entanto, é desconhecida a quantidade de entes nessa situação, seja porque alguns deles podem já tê-las suprimido em suas próprias reformas administrativas (por vezes influenciados pela extinção promovida pela própria União), seja porque jamais as instituíram. Também não foram localizadas informações agregadas sobre as despesas relacionadas a essas parcelas, o que tornaria frágil qualquer estimativa a respeito dos efeitos desse dispositivo”.

Ressalte-se ainda que aqui, mais uma vez, a reforma administrativa mira nos servidores públicos do Poder Executivo, notadamente, aqueles que prestam os serviços essenciais à população, e que ainda percebem a menor média salarial em comparação com os demais poderes, grupo no qual estão inseridos os profissionais da Segurança Pública. Por outro lado, a proposta deixa intactos os verdadeiros privilégios remuneratórios percebidos dentre as maiores remunerações do serviço público brasileiro, que são, dos membros do Poder Judiciário e do Poder Legislativo. Levantamento estatístico realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea, no documento intitulado Atlas do Estado Brasileiro, revela a distribuição das remunerações entre os poderes, estando o Executivo muito aquém do Legislativo e principalmente do Judiciário:

Fonte: RAIS/MTE. Elaboração e cálculos: Atlas do Estado Brasileiro - IPEA. Valores corrigidos para janeiro de 2019, pelo INPC/IBGE.<https://www.ipea.gov.br/atlasestado/indicadores>

Portanto, o dispositivo em comento contido na alínea “b” do inciso XXIII do art. 37 carece de ser suprimido do texto da Emenda, assim como os demais que extinguem direitos remuneratórios dos atuais servidores segurança pública.

Alteração 4: No que tange à uma análise profícua da real extinção de diretos constitucionais sob a forma de regra de transição pretendida pela PEC/32 no inciso II do seu art. 2º, resta indispensável transcrever o dispositivo em sua literalidade:

Art. 2º Ao servidor público investido em cargo efetivo até a data de entrada em vigor do regime jurídico de que trata o art. 39-A da Constituição é garantido regime jurídico específico, assegurados:

I - a estabilidade, após três anos de efetivo exercício e aprovação em estágio probatório;

II - a não aplicação do disposto no art. 37, caput, inciso XXIII, alíneas “a” a “j”[14], da Constituição na hipótese de haver lei específica vigente em 1º de setembro de 2020 que tenha concedido os benefícios ali referidos, exceto se houver alteração ou revogação da referida lei;

III - os demais direitos previstos na Constituição.

§ 1º A avaliação de desempenho do servidor por comissão instituída para essa finalidade é obrigatória e constitui condição para a aquisição da estabilidade.

§ 2º O servidor a que se refere o caput, após adquirir a estabilidade, só perderá o cargo nas hipóteses previstas no art. 41, § 1º, incisos I a III, e no art. 169, § 4º, da Constituição.

Efeito 4: por meio deste dispositivo no mínimo confuso, emerge, talvez, a maior das falácias propagadas pelo Equipe do Governo Federal, qual seja, a afirmação de que os direitos dos atuais servidores serão preservados pela PEC/32. Vejamos referida afirmação fixada no item 1.3 do documento elaborado e divulgado pelo Governo Federal por meio do Ministério da Economia, intitulado “Nova administração pública - perguntas frequentes”: “1.3. O que vai acontecer com os servidores atuais? Os servidores atuais terão seus direitos assegurados, como estabilidade, atribuições e manutenção dos vencimentos.”[15]

Necessário desfazer tal quimera por meio de uma investigação detida desta alteração, tomando como balizas a extinção dos direitos à estabilidade e às verbas remuneratórias.

Já no primeiro olhar, percebe-se do texto da proposta uma redação tergiversante, ou seja, cheia de rodeios, evasivas ou subterfúgios.

Inicialmente, o dispositivo (inciso I do art. 2º) tenta vender, como um dos grandes pilares da reforma, que garante o direito à estabilidade para os servidores investidos em cargo efetivo até a data de entrada em vigor da PEC/32, desde que preencham os requisitos dos três anos de efetivo exercício e aprovação em estágio probatório. Vale ressaltar que essa garantia já está prevista na Constituição Federal, inclusive, expressamente, desde 1998, no caput do seu artigo 41[16]. Deste modo, o inciso I do art. 2º apenas diz aquilo que já está dito na Constituição.

A bem da verdade, o cerne da questão a respeito da (não) garantia da estabilidade dos atuais servidores reside no cotejo entre novos dispositivos da proposta. Da combinação entre o § 2º do art. 2º com a nova redação dada ao inciso I do § 1º do art. 41, emerge a nova hipótese constitucional do servidor público estável ocupante de cargo típico de Estado perder o cargo em razão de decisão proferida por órgão judicial colegiado.

Prosseguindo a análise, no inciso II do art. 2º, o texto pretende induzir compreensão no sentido de que a extinção de direitos versada no art. 37, caput, inciso XXIII, alíneas “a” a “j”, cuja grande maioria dos direitos tolhidos são de ordem remuneratória (como as verbas decorrentes de tempo de serviço analisadas acima), não alcançaria os servidores que já integram o serviço público. Todavia, na sequência, a literalidade do dispositivo traz 2 (duas) ressalvas: 1) na hipótese de haver lei específica vigente em 1º de setembro de 2020 que tenha concedido os benefícios ali referidos; 2) exceto se houver alteração ou revogação da referida lei. Portanto, por meio dessas duas ressalvas, a primeira que fixa prazo para existência dos benefícios e a segunda que prevê a eliminação normativa dos direitos, não se tem a efetiva aplicação dessa (falsa) garantia, qual seja, de que os atuais servidores estariam de fora das novas vedações previstas nas alíneas do inciso XXIII do caput do art. 37.

Em outras palavras, o próprio texto da PEC/32 apresenta duas exceções pelas quais os atuais servidores podem ser atingidos pelas novas regras que extinguem direitos.

Demais disso, perceba-se que estamos a tratar de uma regra de transição “com hierarquia constitucional”, que autoriza, principalmente por meio dessa segunda ressalva, que uma norma infraconstitucional superveniente extinga por alteração ou revogação os direitos de quem já é servidor público, de modo que tais direitos também já estão sendo vedados por meio de alteração na própria Carta Magna. Por conseguinte, não haveremos de evocar, no futuro, a partir da entrada em vigor da PEC/32, a inconstitucionalidade de norma que venha a extinguir os mesmos direitos já vedados pela presente Emenda, sobretudo aqueles que estão contidos nas alíneas de "a" a "j" do inciso XXIII do art. 37 da CF, os quais os atuais servidores fazem jus.

Desta feita, restam sensivelmente esvaziadas as teses de inconstitucionalidade das normas extintivas dos referidos direitos respaldadas no art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal, que dispõe sobre o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada, bem como as lastreadas no art. 37, XV, da CF, que prevê a irredutibilidade do subsídio e dos vencimentos dos ocupantes de cargos e empregos públicos. Com esse novo cenário – a partir da possível promulgação da Emenda pelas mesas das duas casas legislativas e entrada em vigor do novo regime jurídico – teremos de nos socorrer ao raro controle de constitucionalidade exercido pelo Poder Judiciário sobre o poder constituinte derivado reformador em sede de Emenda Constitucional já vigente.

Logo, por intermédio da regra de transição, que tem como vetores as ressalvas acima expostas, resta cristalina a possibilidade da extinção de direitos, inclusive, concernentes à estabilidade e às remunerações dos atuais servidores, o que decerto não coaduna com a narrativa criada pelo Governo Federal.

Roborando com esse raciocínio, destaque-se que a Consultoria Legislativa do Senado chegou à mesma conclusão em estudo consignado na Nota Informativa nº 5.394, de 2020[17] ao analisar o dispositivo em apreço:

Todavia, há ressalva ao final do inciso II do art. 2º que permite que as vedações elencadas nas alíneas do inciso XXIII do caput do art. 37, acrescentadas pela PEC nº 32, de 2020, incidam sobre o regime jurídico do atual servidor público, bastando para tanto que a lei que os preveja seja alterada ou revogada. Nessas hipóteses, havendo a alteração ou revogação, não há que se falar em preservação do direito adquirido do atual servidor público. Os atuais servidores, no entanto, quando adquirirem a estabilidade, poderão perder o cargo nas hipóteses previstas no novo regime, como a decisão judicial proferida por órgão colegiado (art. 41, § 1º, I, proposto).

         Para concluir este tópico, a título de sugestão, caso fosse a real intenção de quem elaborou o texto da proposta dispor, expressamente, que os direitos dos atuais servidores estão de fato e de direito garantidos, dever-se-ia modificar as expressões (ressalvas) previstas no inciso II do art. 2º substituindo-as pela seguinte redação:

II - a não aplicação do disposto no art. 37, caput, inciso XXIII, alíneas “a” a “j”, da Constituição na hipótese de haver lei específica vigente na data de promulgação desta Emenda que tenha concedido os benefícios ali referidos, ainda que ocorra alteração ou revogação da referida lei.

Fazendo isto, o discurso do Executivo Federal e a literalidade da Emenda - pelo menos neste ponto - estariam em consonância no sentido de assegurar os direitos dos atuais servidores, inclusive, dos que hoje integram a Segurança Pública.

Sobre os autores
André Santos Pereira

Delegado de Polícia Civil do Estado de São Paulo, Diretor de Relações Institucionais da Associação dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo – ADPESP e Diretor de Aposentados da Associação Nacional dos Delegados de Polícia Judiciária – ADPJ

Gustavo Mesquita Galvão Bueno

Delegado de Polícia Civil do Estado de São Paulo, Presidente da Associação dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo – ADPESP e Presidente da Associação Nacional dos Delegados de Polícia Judiciária – ADPJ

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PEREIRA, André Santos; BUENO, Gustavo Mesquita Galvão. Reforma administrativa: a estratégia de desconstrução da segurança pública. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6573, 30 jun. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/91540. Acesso em: 28 nov. 2024.

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