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Elaborando a denúncia criminal

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Agenda 24/11/2006 às 00:00

7- PRINCÍPIOS DE REGÊNCIA E PRINCÍPIOS INFORMATIVOS

Alguns princípios foram legalmente estabelecidos para reger a ação penal, manifestando-se na denúncia. Outros devem ser observados na confecção da denúncia, ainda que sua omissão não conduza necessariamente à nulidade.

No primeiro caso, temos variações conforme a classificação da ação quanto à legitimidade. Assim, a ação penal pública tem como princípios da oficialidade, a indisponibilidade, a obrigatoriedade e a indivisibilidade. Já a ação pena privada está sujeita aos princípios da oportunidade ou conveniência, da disponibilidade e da indivisibilidade.

O princípio da intranscendência a meu juízo é na verdade, como já referido alhures, um princípio de direito material, ligando a sanção ao agente exclusivamente. Somente por reflexo a ação é por ele atingida, mas ela não é logicamente incompatível com a substituição processual, a qual é ausente por opção legislativa.

O princípio da oficialidade na verdade já foi versado, e se caracteriza exatamente pela titularidade da ação penal em um órgão oficial, como regra, ou seja, o Ministério Público.

A natureza do direito penal, eminentemente público, é infensa, por natureza, à disponibilidade. Ninguém pode dispor daquilo que não lhe pertence, e o jus puniendi é direito do Estado, de toda a sociedade, daí surgindo o princípio da indisponibilidade (artigo 42 do CPP). Tal regra tem recebido temperamentos, citando-se o a transação penal na Lei dos Juizados Especiais. Mas uma vez ajuizada a ação, não há espaço para desistência ou abandono.

A indivisibilidade também é decorrência do caráter público do jus puniendi que não se compraz com privilégios ou quebra da igualdade. A ação privada, tomando em linha de conta o interesse individual, abre espaço para a disponibilidade e conveniência, de forma que o querelante é quem decide, livremente ou não, se ingressa com a ação, e, o fazendo, se abranger, sendo mais de um crime, todos ou apenas alguns. Pode ele, ainda, perdoar o agente ou abandonar a causa, dando ensanchas à perempção.

A questão da indivisibilidade pode gerar problemas. É que a ausência de um dos agentes na queixa pode significar renúncia tácita do direito de queixa, a qual se estende aos demais acusados e implica extinção da punibilidade. Por esta ótica, a aplicação do artigo 48 do CPP não legitimaria o aditamento para inclusão de co-réu. Ocorre, porém, que a ausência tanto pode ser deliberada como pode resultar de equívoco. Desta forma, se a ausência de um dos co-réus evidenciar renúncia ao direito de queixa, o correto é pedir a extinção da punibilidade em relação a todos. Ao revés, se resultar de mero lapso, o caminho é o aditamento para inclusão do acuado faltante.

Há princípios outros que norteiam a elaboração da denúncia e cuja observância a tornam uma peça mais consentânea a sua finalidade. Trataremos de alguns.

7.1) Princípio da Objetividade

A denúncia é uma peça de acusação direta voltada ao conteúdo penalmente relevante, Por isso, deve ir diretamente à exposição deste conteúdo. Esta em voga o comportamento do agente e exclusivamente no espectro do penalmente relevante.

Fatos irrelevantes ou ilustrativos nada acrescem a este conteúdo e sua inserção no conteúdo da denúncia deve ser evitada. Se o agente, por exemplo, era amigo íntimo ou inimigo capital da vítima, mas não se valeu de sua amizade para facilitar a execução da tentativa de homicídio, ou se a inimizade não revela anterior premeditação, tal fato é irrelevante. Também não importa saber o que a vítima e o réu fizeram antes ou depois da execução do delito, a não ser que estes fatos possam caracterizar delito autônomo ou alterar a configuração jurídica.

Por outras palavras, a denúncia não é instrumento para que se conte estórias sobre o delito, mas para expor de forma direta o comportamento típico do agente e eventualmente o comportamento da vítima ou de terceiros ou outras circunstâncias somente se relevantes. O núcleo da denúncia é o comportamento do acusado e seus efeitos típicos diretos.

Assim por exemplo, se o delito deixou viúva e cinco filhos sem sustento, embora tal fato seja evidentemente relevante para a dosimetria da pena, não pertence ele ao conteúdo da denúncia.

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Mas qual o motivo desta limitação? Corre-se o risco de ter de provar fatos que em nada mudam a capitulação do delito ou sua conformação fática quando se insere elementos que não dizem respeito diretamente ao que cumpre apurar no processo penal: o comportamento do agente.

É preciso não olvidar que a denúncia, assim como a exordial cível, tem enorme repercussão na condução do processo e, principalmente, na delimitação do seu objeto, a lide do processo civil e (porque não?), do processo penal. [21]

As decisões tomadas em sua elaboração repercutirão durante todo o processo, e os erros, salvo aditamento (enquanto possível), emendatio libelli e mutatio libelli, não podem ser corrigidos.

Daí porque se deva ir diretamente ao conteúdo relevante para a formulação da acusação, que é o comportamento típico e suas circunstâncias essenciais, sem rebuscos e sem utilizações de expressões condicionais. A denúncia não pode ser condicional.

7.2) Princípio da Concisão

Ligado ao princípio da objetividade está o da concisão. Além de ser objetiva e ir direto ao conteúdo penalmente relevante, a denúncia deve ser concisa, vale dizer, deve buscar referir-se ao fato em apuração de forma direta e simples, sem estender-se em demasia em explicações, até porque não é uma peça de convencimento.

Isto não impede que tenhamos denúncias extensas. É possível, como já vi na prática, denúncias com centenas de fatos. O que se está dizendo é que, na menção a cada um deles, a abordagem deve ser simples, direta, objetiva, e clara, afastando-se delongas. Devem ser evitadas a linguagem prolixa, as palavras inúteis ou excessivas ou frases truncadas ou que possam dar margem a mais de um sentido.

7.3) Princípio da Precisão

Uma das grandes conquistas do Estado de Direito foi, pela consagração da ampla defesa e do contraditório dentro do devido processo legal, retirar do direito penal a nefasta função de subsidiar a tirania e o despotismo que lhe foi conferida por séculos, quando figurou como mecanismo de legitimação formal das mais réprobas atrocidades.

Mas é pressuposto funcional de um sistema acusatório permeado pelos modernos valores constitucionais que a acusação seja exercida de forma que o acusado tenha plena ciência de todos os fatos que lhe são imputados. Ele não pode defender-se regularmente se não sabe do que está sendo acusado.

Por isso, a denúncia deve imputar fatos certos, e definir de forma precisa, na medida do possível, a conduta de cada agente. Deve mencionar todas as circunstâncias relevantes conhecidas, narrando o modus operandi e as conseqüências diretas da infração.

Especial realce merecem as situações onde se apresenta o concurso de agentes, pois, por vezes, não é possível precisar de forma exata a ação de cada um dos envolvidos. É pensar-se, por exemplo, em um roubo com vários agentes que se utilizam de artifícios para esconder a identidade. Os crimes societários, tributários e contra o sistema financeiro, por exemplo, também se prestam a corriqueiramente criar situações onde a exata discriminação da ação de cada um dos envolvidos gera um quadro de nebulosidade insolúvel. Certamente estas circunstâncias não podem ser óbice intransponível para o oferecimento da peça acusatória, o que seria chancelar a alicantina do próprio agente que busca ocultar sua ação cometendo o delito em concurso. De fato, "o crime de autoria coletiva não obriga a denúncia a permenorizar o envolvimento do réu, bastando a narrativa genérica do delito, sem que tolha o exercício de defesa." [22]

O que não se pode admitir, porém, é a denúncia vaga, genérica (quando possível determinar condutas), que não imputa fatos certos e determinados. Neste sentido é a doutrina de Ada Pellegrini Grinover, Antônio Scarance Fernandes e Antônio Magalhães Gomes Filho, in verbis:

"Em hipóteses de co-autoria, a peça acusatória deve historiar a participação de cada um dos acusados, a fim de que possam individualmente responder à imputação. É o que deflui do sistema penal brasileiro que, por imposições de ordem constitucional, não admite a responsabilidade objetiva e acolhe o princípio da personalidade. Não se exige a descrição pormenorizada, mas a suficiente para que o acusado possa exercer com plenitude sua defesa." [23]

A respeito, é de grafar mudança jurisprudencial operada no âmbito do STF no julgamento do HC 86.879, relatado pelo Ministro Gilmar Ferreira Mendes, onde se lê:

"Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional (Lei no 7.492, de 1986). Crime societário. Alegada inépcia da denúncia, por ausência de indicação da conduta individualizada dos acusados. Mudança de orientação jurisprudencial, que, no caso de crimes societários, entendia ser apta a denúncia que não individualizasse as condutas de cada indiciado, bastando a indicação de que os acusados fossem de algum modo responsáveis pela condução da sociedade comercial sob a qual foram supostamente praticados os delitos. (...) Necessidade de individualização das respectivas condutas dos indiciados. Observância dos princípios do devido processo legal (CF, art. 5º, LIV), da ampla defesa, contraditório (CF, art. 5º, LV) e da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III)."

Este posicionamento diverge daquele que vinha sendo consagrado pela doutrina e jurisprudência e que pode ser visto, ad exemplum, na ementa do HC 31.294, julgado pela sexta turma do STJ, tendo por relator o Ministro Amilton Carvalhido. Veja-se:

"A denúncia, à luz do disposto no artigo 41 do Código de Processo Penal, deve conter a descrição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias e, por conseqüência, no caso de concurso de agentes, a definição da conduta de cada autor ou partícipe. É firme o entendimento doutrinário e jurisprudencial no sentido de que, em faltando à Acusação Pública, no ensejo do oferecimento da denúncia, elementos bastantes ao rigoroso atendimento do seu estatuto formal (Código de Processo Penal, artigo 41), principalmente nos casos de crime coletivo ou societário, é válida a imputação genérica do fato-crime, sem a particularização das condutas dos agentes, co-autores e partícipes, admitindo, como admite, a lei processual penal que as omissões da acusatória inicial possam ser supridas a todo tempo antes da sentença final (Código de Processo Penal, artigo 569)." [24]

Especificamente em relação a delito societário, tem-se que "é dispensável a descrição minuciosa e individualizada da conduta de cada acusado, bastando, para tanto, que ela narre a conduta delituosa de forma a possibilitar o exercício da ampla defesa." [25]

A denúncia tisnada pela pecha de imprecisão, da qual decorra potencial prejuízo ao direito de defesa, é írrita, e não poderá ser recebida pelo juiz. Não é por outro motivo que o STJ, através de sua quinta turma, no HC 59.312, relatado pelo Ministro Gilson Dipp, em caso de delito de curandeirismo, firmou que:

"Se a inicial acusatória imputou à paciente a prática do delito de curandeirismo de forma genérica, deixando de detalhar qual a conduta por ela realizada que se adeqüa ao tipo penal atribuído, não explicitando quais os "trabalhos de curandeirismo" foram praticados pela ré, resta configurado o constrangimento ilegal. Não se constata o atendimento dos requisitos do art. 41 do CPP, pois os fatos delituosos não se encontram devidamente expostos, com suas circunstâncias, de modo a permitir o exercício da ampla defesa. A despeito de não se exigir a descrição pormenorizada da conduta do agente, isso não significa que o órgão acusatório possa deixar de estabelecer qualquer vínculo entre o denunciado e a empreitada criminosa a ele atribuída." [26]

Assim, o equilíbrio na peça portal do procedimento criminal reside em dizer tudo o que é preciso para imputar uma conduta delituosa, somente o necessário para descrever esta, e nada menos do que o indispensável para o exercício do direito de defesa.

7.4) Princípio da não Limitação da Acusação

É certamente equivocada a disseminada idéia de que o órgão público de acusação tem por missão invariável a busca da condenação a qualquer custo. Qualquer agente público deve ter em mira, como escopo fundamental, a correta aplicação da lei. A persecução penal não tem escopo diverso.

No tocante à denúncia, urge, porém, não olvidar que se busca apenas o início da ação penal. Seu conteúdo é uma projeção da almejada condenação, que poderá advir ou não, podendo o próprio órgão da acusação postular a absolvição se o caderno probatório não fornecer o esperado lastro de convicção. Desta natureza e função da denúncia deflui a vigência do "in dubio pro societate".

Em termos de elaboração da denúncia, isso se traduz no princípio da não limitação da acusação, cuja feição prática se materializa na inconveniência de o órgão da acusação limitar ex ante o espectro da acusação. Na prática, tem-se que o que interessa para o órgão da acusação é o fato e aquilo que razoavelmente se pode dele extrair em termos de capitulação. A matéria eventualmente alegável em defesa, como v.g. privilegiadoras, atenuantes, minorantes ou circunstâncias que possam eventualmente atenuar a culpabilidade, não devem constar na denúncia. Sua inserção poderia coarctar prematuramente a acusação, sendo necessário, eventualmente, posterior aditamento. Por outro lado, ao órgão da acusação interessa exatamente esta ótica, ou seja, a formulação de uma imputação de fato delituoso. A perspectiva da presença de uma justificativa para ele ou de uma causa de exclusão ou atenuação da culpabilidade é da defesa.

Mas note-se, e isto é importante, não parte o órgão da acusação do pressuposto que tenha de ser buscada a versão dos fatos mais gravosa ao acusado, como se houvesse um compromisso em condená-lo da forma mais severa possível. Não é ele inimigo do réu e seu compromisso é com a lei e com a sociedade. O problema é eminentemente técnico. Diante dos fatos é possível, normalmente, se produzir versões das mais favoráveis ao acusado até as mais gravosas. Como a denúncia é uma proposta acerca do conjunto de fatos que deverão ser apurados e de sua conformação e características, ela deve abarcar todo o conteúdo possível que deles se pode extrair. Não deve ela subtrair aspectos relevantes da apuração judicial. Então, o que se nota é que o compromisso do órgão acusatório é com a apuração da verdade real, e não com a condenação mais gravosa ao réu. Esta última poderá ou não ocorrer. E é esta busca da verdade real que motiva a atuação voltada a abarcar de forma mais abrangente possível os fatos na peça inicial.

Desta necessidade não se pode inferir, todavia, possa o Ministério Público, e isso vale, como de resto tudo quanto dito até agora, também para o querelante, formar um juízo da acusação absolutamente ao seu alvedrio e destoante daquilo que dos fatos razoavelmente se pode extrair. Este aspecto foi bem realçado no julgamento do HC 72.506, onde o STF, na voz no Ministro Celso de Mello concluiu:

"A inépcia da denúncia caracteriza situação configuradora de desrespeito estatal ao postulado do devido processo legal. É que a imputação penal contida na peça acusatória não pode ser o resultado da vontade pessoal e arbitrária do órgão acusador. Este, para validamente formular a denúncia, deve ter por suporte necessário uma base empírica idônea, a fim de que a acusação penal não se converta em expressão ilegítima da vontade arbitrária do Estado" [27]

Como já dito, há um espectro onde validamente pode transitar a acusação, desde uma visão mais branda ao acusado até aquele lhe é mais gravosa. O que deve ser buscado é a formulação de uma denúncia que busque permitir a apuração mais ampla possível dos fatos dentro de um critério de razoabilidade e lógica, que indicará o que é validamente extraível dos fatos.

Sobre o autor
Marcelo Colombelli Mezzomo

Ex-Juiz de Direito no Rio Grande do Sul. Professor.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MEZZOMO, Marcelo Colombelli. Elaborando a denúncia criminal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1241, 24 nov. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9196. Acesso em: 11 mai. 2024.

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