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Juízo colegiado em primeiro grau de jurisdição e sua compatibilidade com o princípio do juiz natural

Agenda 15/08/2021 às 14:10

Examinam-se polêmicas sobre a Lei 12.694/12, que não prevê critérios precisos para a instauração da turma julgadora para crimes relativos a organizações criminosas e permite a formação de colegiado ad hoc e post factum.

A fim de bem compreender a questão posta em discussão, cumpre, em primeiro lugar, analisar o princípio do juiz natural (ou juiz legal), o qual é bem definido no artigo 8º-1 do pacto de São José da Costa Rica:

“Toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou Tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.”

Esse princípio do direito processual objetiva assegurar que todas as pessoas sejam julgadas por um juiz o qual não tenha interesses na causa. Ademais dele efluem diversas consequências, dentre as quais é possível citar: vedação de tribunais de exceção, isto é, juízos criados posteriormente a um delito, com o intuito de julgá-lo; garantia de imparcialidade, ou melhor, certeza de que o juiz não terá quaisquer relações com o processo o qual terá de julgar; garantia de ciência prévia por parte do réu de qual será o órgão o qual fará seu julgamento (garantia de um juiz competente para o feito), o que impede que, por arbítrios, atribua-se um juiz relacionado com a causa.  Esse último pilar inclusive é considerado basilar para definir esse princípio segundo Renato Brasileiro de Lima, o qual em seu manual de processo penal atribui a seguinte definição à juiz natural: “O princípio do juiz natural deve ser compreendido como o direito que cada cidadão tem de saber, previamente, a autoridade que irá processar e julgá-lo caso venha a praticar uma conduta definida como infração penal pelo ordenamento jurídico.”. (p. 414)

Em segundo lugar, é imperativo discorrer sobre a formação de colegiado em primeiro grau de jurisdição. Isso está disciplinado pela lei 12.694 de 2012, conforme a qual admite-se a formação de colegiados de três juízes de primeiro grau para julgamento de crimes praticados por organizações criminosas, as quais são definidas, de acordo com a artigo 1º, § 1º da lei 12.850 de 2013 como:

“...a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional.”

Com isso buscou a lei 12.694 de 2012 resguardar melhor segurança dos juízes competentes para julgar crimes relativos a organizações criminosas, as quais podem constituir-se em ameaça à integridade física de magistrados, já tendo, inclusive, ocorrido assassinato dessas autoridades ao terem de lidar com semelhantes grupos. Diante desse escopo, foi criada a referida lei, a qual em seu artigo 1º caput diz: “Em processos ou procedimentos que tenham por objeto crimes praticados por organizações criminosas, o juiz poderá decidir pela formação de colegiado para a prática de qualquer ato processual...”. Ou seja, permitiu-se que o magistrado, em qualquer ato processual, tanto na fase de execução penal, quanto de conhecimento, decida pela formação do colegiado. Contudo, de acordo com Renato Brasileiro em seu Manual de Processo Penal, deve-se levar em consideração a ressalva de, no processo de conhecimento, a formação do colegiado ter de se dar antes do início da instrução, a fim de se evitar que dois dos juízes (de 3 que formam o colegiado) julguem o feito sem participarem da produção da prova, o que violaria o princípio da identidade física do juiz.

Diante disso, ao analisar o dispositivo legal, alguns autores têm identificado uma possível violação ao princípio do juiz natural e à Constituição Federal. Dentre esses, destaca-se Paulo de Souza Queiroz, o qual, em seu artigo Juiz Natural ou Legal defende que “... a lei é criticável, quer porque não prevê critérios precisos para a instauração da turma julgadora, quer porque permite a formação de colegiado ad hoc e post factum, quer porque eventuais riscos à vida do juiz devem ser debelados pelos meios legais.”.

Nesse sentido, é proposto que o princípio do juiz natural é violado, uma vez que não se teria um colegiado de juízes previamente definido para o processo do referido fato típico e dois dos três magistrados competentes seriam, posteriormente ao cometimento do crime, definidos para a finalidade específica de julgar o caso (colegiado ad hoc e post factum), o que não se coadunaria com a existência prévia de juiz competente, faceta do princípio do juiz legal. Além disso, é criticado o fato de não se ter definido o critério preciso para a instauração da turma julgadora, algo que iria de encontro ao princípio da legalidade, já que a lei não definira claramente quando será o delito de competência do colegiado e quando não o será, violando mais uma vez a necessidade de haver previamente juiz competente. Por fim, é colocado que os riscos à vida do juiz devem ser combatidos pelos meios legais disponíveis.

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Entretanto, fato é que os meios legais disponíveis defendidos pelo autor não têm sido suficientes para assegurar a segurança dos magistrados, os quais lidam com semelhantes crimes, exemplo disso foi o assassinato de quatro juízes: Leopoldino Marques do Amaral, Antônio José Machado Dias, Alexandre Martins de Castro Filho e Patrícia Acioli, o que constituiu um dos eventos que impulsionaram a criação da referida lei. Ademais, a instauração de colegiado não é discricionária, devendo ser feita somente quando o juiz indicar “motivos e as circunstâncias que acarretam risco à sua integridade física em decisão fundamentada, da qual será dado conhecimento ao órgão correicional.”. Além do que a escolha dos juízes que comporão o colegiado não é arbitrária, porquanto, conforme o artigo 1º, parágrafo 2º: “O colegiado será formado pelo juiz do processo e por 2 (dois) outros juízes escolhidos por sorteio eletrônico dentre aqueles de competência criminal em exercício no primeiro grau de jurisdição.”.

Por fim, caso se coloque que ainda assim há violações ao princípio do juiz natural ou ao da legalidade, fato é que não existem princípios absolutos no ordenamento jurídico e não se pode pretender valorar certos princípios — valores abstratos — de modo tão altivo a ponto de ignorar questões fáticas como o risco existente para a integridade física e para a própria vida de indivíduos encarregados de julgar crimes praticados por organizações criminosas.


Bibliografia:

. BRASILEIRO, Renato. Manual de Processo Penal. 8ª Edição. Salvador- Bahia: Editora JusPodivm, 2020;

. BRASIL. LEI Nº 12.850, DE 2 DE AGOSTO DE 2013. Define organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal, os meios de obtenção da prova, infrações penais correlatas e o procedimento criminal; altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal); revoga a Lei nº 9.034, de 3 de maio de 1995; e dá outras providências. Brasília, DF. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12850.htm >. Acesso em: 29 de setembro de 2020;

. QUEIROZ, Paulo. juiz natural ou legal. 30 de agosto de 2019. Disponível em: < https://www.pauloqueiroz.net/juiz-natural-ou-legal/ >. Acesso em: 30 de setembro de 2020;

. Convenção Americana de Direitos Humanos (pacto de san josé da costa rica). 22 de novembro de 1969. Disponível em: <http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/instrumentos/sanjose.htm >. Acesso em: 29 de setembro de 2020.

Sobre o autor
Felipe de Castro Santos

Graduando de direito na Universidade de Brasília (UnB) Instagram: castrosantosfelipe0809 email: castro.felipesantos@gmail.com

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Felipe Castro. Juízo colegiado em primeiro grau de jurisdição e sua compatibilidade com o princípio do juiz natural. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6619, 15 ago. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/91968. Acesso em: 21 nov. 2024.

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