A recém-finda campanha eleitoral para o cargo de presidente da República se ressentiu da ausência de um debate, sério e fundado, a respeito de uma questão crucial para os destinos da pátria e a construção da identidade nacional: a descriminalização do aborto, suas causas, suas conseqüências e o problema da consciência ética que decorre dessa prática.
As crises que se desenrolam em função de uma proposta de tal magnitude e complexidade são de enorme repercussão e o ambiente de fragilização entre o Estado e o pensamento moral da sociedade brasileira se acentua em razão de alguns parâmetros legais vigentes desde o advento do Código Penal, na década de ’40, como quando a Lei passou a permitir a interrupção assistida da gravidez produto de estupro ou de esforço terapêutico para preservar a vida da gestante. Na esteira desse entendimento legal, altamente restritivo, mas, nem sempre compatível com a vontade do socius e os valores por este reconhecidos, tem-se observado que alguns Juízes, mesmo os que compõem os Tribunais Superiores, aqui ou acolá, vêm conferindo um elastério jurisprudencial algo muito perigoso no sentido de autorizar - para a escandalização de uns e o aplauso de outros - a prática abortiva em caso de feto com diagnóstico de anencefalia cujas chances de sobrevida a longo termo são consideradas biologicamente nulas.
Desse modo e diante do mar de indagações que a respeito do assunto são esgrimidas permanentemente nos múltiplos foros de discussão de uma sociedade heterogênea e aberta como a que supomos nos encontrar, não pareceu fazer muito sentido o especioso silêncio dos postulantes a mais alta Magistratura do país.
Como dito, a campanha referida ofuscou esse debate e isso se explica por uma razão pragmática que consiste, justamente, em não ultrajar a tradição cristã da sociedade brasileira, haja vista os registros estatísticos disponíveis que dão pelo percentual de mais ou menos 90% de rejeição declarada à prática do aborto, antes como agora, bem como os documentos oficiais da Igreja que recriminam, expressamente, toda forma de violação à integridade da vida humana (Encíclica Evangelium Vitae/1995, do Papa João Paulo II).
Portanto, pareceu de todo conveniente, aos estrategistas, abandonar o tema para não prejudicar as projeções eleitorais construídas midiaticamente por marketeiros pagos a preço de ouro, hábeis em manipular as massas com apelos puramente estéticos e/ou assistencialistas, diverso do que recomenda o Salvador: "sim, sim; não, não!". E de induzir ao fundamentalismo de outros tantos que, nada obstante esclarecidos, se deixam vencer por sentimentos descolados da razão e mesmo dos critérios com os quais referem assentimento e dos valores nos quais dizem acreditar.
Sobre a matéria, é oportuno lembrar que ao sancionar a Lei nº 11.105/05 (Biossegurança), o atual presidente da República, ora reeleito, teve o cuidado de vetar vários dispositivos; mas teve, também e principalmente, a preocupação de manter a incolumidade do disposto no seu art. 5º, norma que permite a "destruição de embriões humanos". Em poucas palavras: licença para matar! Aliás, a diferença entre o que os nazistas fizeram no Holocausto e o que os cientistas andam fazendo com a vida hoje em dia, sobretudo no descarte dos embriões excedentes na criogenia bem como na fertilização ''in vitro'', resolve-se como uma questão meramente topográfica: aqueles matavam nascidos; estes, matam nascituros. Não há muita diferença quando nascituros e nascidos possuem uma só e únida dignidade e são, por isso, igualmente, seres humanos, embora só os nascidos sejam dotados de personalidade que se traduz, entretanto, em mera categoria jurídica, não empírica, que guarda o íntimo sentido da proteção constitucional da vida: a dignidade humana!
Além disso, o atual Governo apresentou ao Congresso Nacional, em 27 de setembro de 2005, um projeto de lei, que está tramitando na Câmara dos Deputados sob a denominação de Substitutivo do PL nº 1.135/91. O texto define o aborto como um direito da mulher, ao mesmo tempo em que extingue todos os artigos do Código Penal brasileiro que o definem como conduta típica, ou seja, como delinqüência. Contrariamente, o direito à vida é um direito natural, seu substrato. Esse direito é assegurado, incondicionalmente, pela Constituição Federal (Art. 5º) e o Brasil também é signatário de pactos internacionais como o de São José da Costa Rica, o qual garante a vida desde o seu início, ou seja, no momento da concepção, de acordo com o parâmetro científico assentado por Karl Ernest von Baer, pai da embriologia moderna, que em 1827 descreveu que o desenvolvimento humano inicia-se na fertilização, quando um espermatozóide se une a um ovócito para formar uma única célula: o zigoto (De ova mamalium et hominis generis). Esse achado científico exclui um avelhantado sofisma que reclama dos cristãos não interferirem, ante motivação de fé, no Estado laico, o qual, no entanto, não deve ser tomado como símbolo e fonte de autoridade absoluta. Realmente, aqui tampouco se cogita de dogma da doutrina cristã, pois tudo o quanto Cristo ensinou foi amar: amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo. O que não parece razoável é o Estado laico, invertendo as polaridades de sua própria objeção institucional, arvorar-se à inconseqüência de agir como se Deus fosse, intentando alterar, em vão, a ordem natural das coisas para acomodar conveniências culturais e condicionalidades subjetivas.
Então, se é certo, cientificamente, que há vida humana intra-uterina desde a concepção, embora ainda sem personalidade que é uma mera categoria jurídica, menos certo não é que se deve amá-la incondicionalmente. Todo cristão realiza esse amor e todo o pretexto em contrário, como o de livrar mulheres pobres de ainda maior pobreza bem como das garras deletérias dos "fazedores de anjos" ou o de estancar o crescimento demográfico para reduzir as desigualdades entre as classes sociais, parece uma atitude autoritária, além de não corresponder à realização de um tal sentimento. Afinal, o inferno anda cheio das melhores intenções e Nero é o precursor dessa linha de ação prosélita e cruel. Pois, não é também com a morte que se vai proclamar a vida plena das gestantes pobres, mas felicitando-as com oportunidades que lhes confiram respeito e igual dignidade. É fácil resolver problemas crônicos mediante as comodidades do cutelo. Isso é atávico e o mesmo discurso que intenta resistir às vilezas da tirania do passado recente entre nós, retorna, ciclotimicamente, mediante a fórmula assassina de eliminar os problemas humanos sem considerar a essência da própria humanidade. Situação que fica agravada diante da monumental omissão no enfrentamento aberto e dialógico do assunto em plena campanha para a presidência da República.
Sobre isto, deve-se reconhecer, claramente, que a coerência interior reclama para o cidadão-eleitor a seguinte equação lógica: quem é favorável ao aborto e à sua crescente descriminalização ou legalização, assim como ao descarte de embriões utilizados em experiências com células-tronco, em criogenia e na fertilização "in vitro", deve ter votado pela reeleição do atual presidente da República; por outro lado, quem já não é favorável a isso tudo, só encontrou no candidato de oposição a alternativa possível para responder a esses valores insubstituíveis de promoção da vida.
Assim sendo, ante o resultado expressivo que reconduziu o eleito a um novo mandato presidencial, cai por terra um outro mito: o de que o Brasil é uma Nação majoritariamente cristã. A menos que o seu povo tenha sido subvertido pela dissimulação ou por inúmeras outras formas de cativeiro moral e material, caso em que a eleição presidencial deixaria de ser um evento político dotado de legitimidade sequer formal, o paganismo embotado de nossa sociedade, afinal, veio à tona no rastro de uma moral dupla que se dissemina em um sincretismo pendular entre a retórica e a ação.
Boas-vindas ao Papa Bento XVI!