No final do ano de 2006, a Assembléia Legislativa do Estado do Mato Grosso do Sul aprovou lei concedendo pensão a ex-governadores. Recentemente, o Procurador-Geral da República, Antonio Fernando Souza, enviou ao Supremo Tribunal Federal parecer favorável ao pedido de declaração de inconstitucionalidade, formulado pelo Partido Democrático Trabalhista, de dispositivo da Constituição do Estado do Ceará que confere a ex-governadores e ex-vice-governadores, que tenham exercido cargo de governador em caráter permanente e por período igual ou superior a seis meses, subsídio mensal e vitalício, a título de representação, igual ao percebido pelo governador do Estado.
No Distrito Federal, a Lei distrital 2.723, de 11 de junho de 2001, que também estabelecia que «o Governador do Distrito Federal, terminado seu mandato, tem direito a utilizar os serviços de quatro servidores para atividades de segurança e apoio pessoal, bem como um veículo oficial de serviço, com motorista, durante o período de dois mandatos subseqüentes ao seu», restou questionada pelo Procurador-Geral de Justiça do MPDFT por inconstitucionalidade com a Lei Orgânica do Distrito Federal e com a Constituição Federal. Na lei mencionada permitia-se a utilização de servidores públicos para fins estritamente particulares, uma vez que, autorizava expressamente a atuação de servidores em atividades estranhas ao serviço público, além de autorizar o uso indevido de veículo oficial, com motorista, para atividades de natureza privada. Em 23 de agosto de 2005 o TJDFT declarou a inconstitucionalidade da norma. O Distrito Federal apresentou recurso sob o principal argumento utilizado em alguns votos divergentes, no sentido de que no âmbito federal existe a Lei 7.474, de 8 de maio de 1986 (com nova redação dada pela Lei 8.889, de 21 de junho de 1994), que concede o mesmo benefício a ex-presidentes da República. A bem da verdade, a Lei 7.474, de 1986, não foi recepcionada pela Constituição de 1988 e, o que fez a Lei 8.889, de 1994, foi, unicamente, de forma disfarçada, repristinar os efeitos dela.
Tanto os benefícios de pensão, como os então existentes no Distrito Federal, e o que ainda existe para os ex-presidentes da república, encontram-se em flagrante descompasso com os princípios republicano e da moralidade administrativa, da impessoalidade, da razoabilidade, do interesse público, da eficiência, expressos na Constituição Federal, na medida em que permitem o dispêndio de recursos públicos para finalidades privadas, configurando privilégio inadmissível e flagrantemente incompatível com as normas constitucionais pátrias.
A concessão de privilégios como esses a ex-governadores já foi, inclusive, julgada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, quando suspendeu emenda à Constituição estadual que instituía subsídio mensal e vitalício a ex-governadores do estado do Amapá, ressaltando a inexistência de parâmetro no âmbito federal a ser seguido pelos estados-membros, além da imposição de despesas que gravavam as finanças do Estado.
Nos casos de cessão de servidores públicos e concessão de veículos oficiais a ex-governantes, com maior razão há que entenderem-se inconstitucionais as normas pertinentes, dada a natureza dos privilégios conferidos. A designação de servidores públicos para atuarem em atividades estranhas ao serviço público, na esfera particular de pessoas sem qualquer vínculo com o ente federativo, ganha contornos de maior gravidade, na medida em que viola frontalmente o princípio da moralidade administrativa, a que devem obediência todos os entes da federação.
A atuação do servidor público pressupõe que seja perante um órgão público ou entidade a este vinculada, nas dependências deste e sob a subordinação e supervisão de outro servidor público hierarquicamente superior. De igual forma, a utilização de recursos materiais da repartição para fins particulares é expressamente proibida. É o que se depreende da leitura de dispositivos da Lei 8.112, de 11 de dezembro de 1990, aplicável no âmbito do Distrito Federal, a partir de 1º de janeiro de 1992, por força da Lei distrital 197, de 4 de dezembro de 1991 (art. 5º), que elenca as vedações impostas aos servidores públicos, entre as quais: ausentar-se do serviço durante o expediente, sem prévia autorização do chefe imediato; retirar, sem prévia anuência da autoridade competente, qualquer documento ou objeto da repartição; utilizar pessoal ou recursos materiais da repartição em serviços ou atividades particulares; cometer a outro servidor atribuições estranhas ao cargo que ocupa, exceto em situações de emergência e transitórias; e exercer quaisquer atividades que sejam incompatíveis com o exercício do cargo ou função e com o horário de trabalho (art. 117 e incs. I, II, XVI, XVII e XVIII).
Normas como a Lei distrital 2.723, de 2001, não observam a natureza da função dos servidores públicos e a destinação obrigatória dos recursos materiais das repartições estatais. Dessa forma, mediante lei, comete-se o descalabro de se legitimar ato que enseja sanção administrativa a servidores públicos (Lei 8.112, de 1990, arts. 129, 130 e 132).
O mais absurdo e inaceitável, porém, é verificar que leis desse jaez instituem privilégio a particulares, mediante permissão para a utilização do trabalho de servidores públicos e de recursos materiais da administração, o que configura ato de improbidade administrativa previsto na Lei 8.429, de 2 de junho de 1992, segundo a qual, constitui ato de improbidade administrativa importando enriquecimento ilícito auferir qualquer tipo de vantagem patrimonial indevida em razão do exercício de cargo, mandato, função, emprego ou atividade nas entidades públicas, e notadamente, utilizar, em obra ou serviço particular, veículos, máquinas, equipamentos ou material de qualquer natureza, de propriedade ou à disposição de qualquer entidade pública, bem como o trabalho de servidores públicos, empregados ou terceiros contratados por essas entidades (art. 9º, inc. IV).
A criação de uma equipe particular de trabalho e de segurança, composta por servidores públicos ocupantes de cargos públicos, destinada a auxiliar ex-governantes em suas atividades de natureza privada, demonstra de forma inequívoca a burla aos princípios constitucionais, privilegiando-se pessoas que não mais possuem qualquer vínculo com o serviço público.
É necessário compreender o sentido do regime republicano. O cidadão que se julga capaz de conduzir os destinos da entidade federativa e é eleito, se dispõe a tal tarefa pelo elevado espírito republico. Dessa forma, a perpetuação de direitos que dizem respeito ao exercício do cargo constitui verdadeiro contra-senso. Ao deixar o cargo, as prerrogativas de que dispunha já não são mais necessárias. É da essência de República que tal cidadão volte a ser um cidadão comum. Não serve o argumento de que, em razão de ter exercido o mandato está exposto a riscos maiores que os demais concidadãos que não exercem cargos políticos.
Dessa forma, espera-se que o Procurador-Geral da República adote medidas para questionar a validade da Lei 8.889, de 1994, que, de forma velada, repristina os efeitos da Lei 7.474, de 1986, não recepcionada pela Constituição republicana de 1988.