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Considerações sobre a disciplina do crime de redução a condição análoga à de escravo no Código Penal brasileiro

Agenda 30/01/2007 às 00:00

Resumo: O estudo pretende apresentar uma pequena análise, a partir de uma visão constitucionalista, do delito de redução a condição análoga à de escravo, conforme disposição do atual Código Penal brasileiro.

Palavras-chave: Direito Penal; Liberdade Pessoal; Redução a condição análoga à de escravo.


Devemos observar no artigo 5º da Constituição Federal, o inciso III: ninguém será submetido a tratamento desumano ou degradante; o inciso XV: é livre a locomoção no território nacional; o inciso XLI: a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais; o inciso XLVII: não haverá penas de trabalhos forçados. Daí que pune o artigo 149 do Código Penal, com pena em abstrato de reclusão de dois a oito anos cumulada com multa e ainda com a pena correspondente à violência, a redução de pessoa a condição análoga à de escravo.

Os bens jurídicos protegidos são, pois, a liberdade pessoal de ir e vir e a dignidade da pessoa humana, em uma única expressão: o status libertatis. Deve-se fazer uma distinção providente entre o tipo penal do artigo 149 e o tipo penal do artigo 148. Bitencourt é bem preciso nesta distinção: na redução a condição análoga à de escravo a liberdade de autolocomoção, a exemplo do que acontece no delito de seqüestro e cárcere privado, também é protegida, mas não só, protege-se, também, a dignidade da pessoa humana, o amor próprio – ao que poderíamos acrescer: honra subjetiva, ou individual.

A ação nuclear é a de reduzir alguém a condição análoga à de escravo, ou seja, a vítima, mediante a supressão de sua liberdade, é posta sob o domínio do agente, o qual, de acordo com sua vontade, poderá daquele indivíduo dispor a seu bel-prazer. Fica claro que a vítima é transformada em coisa, haja vista que perde sua personalidade, e, por conseguinte, sua dignidade humana. Assim, com o dispositivo em epígrafe, busca-se evitar que o indivíduo seja submetido à servidão e ao poder de fato de outrem.

Portanto, o delito se consuma quando a vítima é reduzida, peremptoriamente, a condição análoga à de escravo. O fator tempo é necessário, de modo que a redução deve ser por tempo juridicamente relevante, a fim de que a vítima se torne totalmente submissa ao poder do patrão. Isto porque se trata de um crime de natureza permanente (cuja execução se protrai ao longo do tempo) – ora, se a redução for rápida, instantânea ou momentânea, não haverá a consumação do delito, podendo-se, assim, falar em tentativa. Outro caso de tentativa é aquele em que o empregador já começou a realizar os atos de execução, conduzindo os trabalhadores para sua propriedade, com o fim de que eles lhe servissem por tempo indeterminado, mas, no entanto, acaba sendo preso em flagrante.

Do que foi dito, extrai-se que o elemento subjetivo do delito em epígrafe é o dolo direto (vontade livre e consciente de produzir um resultado) ou o dolo eventual (vontade livre e consciente de assumir o risco de produção do resultado). O dolo eventual é claramente verificado nas hipóteses de tentativa.

Do caput e do § 1º do artigo sob análise, podemos inferir quais os meios de execução do delito. No caso do caput, os meios previstos constituem elementos do tipo básico; enquanto que no § 1º, os meios previstos constituem tipos básicos autônomos. De se observar que todos os meios de execução previstos fazem menção, direta ou indireta, ao trabalhador, de modo que se trata de uma proteção que o legislador resolveu dar ao trabalhador, buscando extinguir o tão comum problema brasileiro do trabalho escravo, em que não são respeitados os direitos dos trabalhadores previstos no artigo 7º da Constituição Federal, além dos outros direitos fundamentais.

Merecem breves comentários os meios de execução da redução a condição análoga à de escravo, previstos pelo artigo 149 em seu caput e § 1º. Vejamos:

Submissão a trabalhos forçados. Aqui entra o inciso XLVII do artigo 5º da Constituição como argumento a fortiori. Ora, se em situação de privação de liberdade pelo cometimento de um crime não haverá trabalho forçado, quem dirá no dia-a-dia, em situações corriqueiras. O trabalho forçado é uma atividade compulsória, em que não há o emprego de vontade por parte do trabalhador, de modo que ele é coagido a praticar tal trabalho.

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Submissão a jornada exaustiva. A submissão a jornada exaustiva, isto é, esgotante, que ultrapassa os limites do ser humano comum, vai de encontro com o inciso XIII, do artigo 7º, da Constituição Federal, o qual prevê que o trabalho normal deverá ter uma duração de no máximo oito horas diárias e quarenta e quatro horas semanais. Há que se lembrar que, caso o trabalhador busque, por livre e espontânea vontade, uma jornada exaustiva, a fim de aumentar a remuneração, por exemplo, desde que acordado com o empregador, não há que se falar em submissão a jornada exaustiva. Ou seja, para que se configure a jornada exaustiva, é preciso que o trabalhador seja coagido, submetido a ela.

Sujeição a condições degradantes de trabalho. Trata-se de sujeitar o trabalhador a condições de trabalho incompatíveis em relação a um ser humano, isto é, mais aproximadas àquelas a que eram submetidos os escravos. É uma afronta declaradamente direta ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.

Restrição da locomoção devido a dívida. É o exemplo do trabalhador que, obrigado a ter residência e domicílio na propriedade de seu patrão, também é obrigado a fazer suas compras de caráter pessoal (alimentação, vestuário, artigos de higiene, dentre outros) em estabelecimento pertencente ao patrão, de modo a fazer com que seja contraída uma dívida para com este, a qual só tende a crescer, e nunca a ser quitada, haja vista que o patrão não tem interesse em que isso ocorra. Prado ensina que "não é necessário que a vítima seja transportada ou transferida de um lugar para outro", nem é exigido que "permaneça enclausurada, que lhe sejam infligidos maus-tratos ou que seja submetida a trabalho sem remuneração", de modo que pode se lhe facultar "a locomoção, ainda que com restrições, ou a correspondência com outras pessoas, não como expressão de liberdade, mas como prerrogativa instituída ao arbítrio do sujeito ativo".

Retenção do trabalhador no local de trabalho. A primeira forma equiparada à redução a condição análoga à de escravo é a de cerceamento de meio de transporte, o que restringe a liberdade que tem o trabalhador de se ausentar do local de trabalho, podendo utilizar meio de transporte apto e que deseje para realizar sua vontade. Segunda forma é a manutenção de vigilância ostensiva, desnecessária, no lugar de trabalho. Por fim, a terceira forma: apossamento de documentos ou de objetos pessoais do trabalhador, de modo a impedir que este deixe o local de trabalho, afetando a sua liberdade de locomoção.

O § 2º estabelece que se o crime de redução a condição análoga à de escravo for cometido, mediante quaisquer dos meios de execução acima comentados (tanto do caput quanto do § 1º), contra criança ou adolescente ou por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem, a pena será aumentada de metade. Trata-se, pois, de causas de aumento da pena, as quais a seguir comentamos brevemente:

Contra criança ou adolescente. Entendemos ser necessário que o delito de redução a condição análoga à de escravo, cometido contra criança o contra adolescente, tem de ser efetuada mediante algum dos meios de execução constantes do caput do artigo 149 ou do § 1º do mesmo. Assim é que estabelecemos que tal dispositivo encontra-se cerceado pela Constituição, artigo 7º, XXXIII, o qual proíbe, expressamente, o trabalho, mesmo como aprendiz, de menores de quatorze anos, prevê que o adolescente entre quatorze e dezesseis anos só poderá trabalhar na condição de aprendiz, e cerceia o tipo de trabalho que pode ser exercido por maiores de dezesseis e menores de dezoito anos. Portanto, no caso dos adolescentes maiores de quatorze anos, entendemos possível a aplicação do dispositivo; contudo, no caso dos menores de quatorze anos, incluindo as crianças, entendemos ser mais acertada a incidência do artigo 239 da Lei nº 8.069/90. Apesar da lacuna existente, uma vez que o dispositivo não se refere ao envio de menores para locais dentro dos limites do território nacional.

Por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem. Apesar de termos afirmado que o cometimento do delito em estudo remete à afronta da honra subjetiva, ou individual, da pessoa humana, não há que se falar em injúria preconceituosa, haja vista que não há a intenção de atribuir qualidade negativa à pessoa. Entendemos que o problema é mais grave, e que a situação prevista no artigo 149, § 2º, II, seria uma forma de racismo, e, portanto, crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão (artigo 5º, XLII, Constituição Federal).

Conforme bem observa Nucci, apesar de o legislador ter mantido o termo alguém, mesmo com a modificação trazida pela Lei nº 10.803/03, deve-se atentar para o fato de que todas as descrições dos meios de execução fazem referência ao empregador ou ao trabalhador, de modo que melhor seria classificar o delito do artigo 149 como próprio. Ora, vale à pena reproduzir o conceito de crime próprio: aquele que só pode ser cometido por uma determinada categoria de pessoas, contra determinadas pessoas. Portanto, só poderá cometer o crime em tela, o empregador, ou preposto seu, contra trabalhador. Mas antes de chegarmos a qualquer conclusão acerca da classificação do delito em estudo em próprio ou comum, de acordo com o sujeito, busquemos espeque no sistema jurídico brasileiro.

A maioria dos autores entende que se trata de crime comum, haja vista que as relações de trabalho, em sentido amplo, englobam relações jurídicas com regime civilista, celetista, consumerista, estatutário ou de acordo com leis especiais (específicas). Na lição de Alice Monteiro De Barros, a aplicação do direito do trabalho não se refere a qualquer relação de trabalho, e sim à específica relação de emprego: "a tutela dos trabalhadores fora da relação de emprego é ineficaz", ao que complementa: "existem relações de trabalho lato sensu que não se confundem com a relação de emprego, considerada relação de trabalho stricto sensu. São elas o trabalho autônomo, o eventual, o avulso, entre outros".

Há, portanto, que se deixar de lado, em um primeiro momento, a confusão que pode ser suscitada entre a relação de trabalho, a qual constitui um gênero, e a relação de emprego, a qual constitui uma espécie e a qual é também chamada de relação de trabalho, em sentido estrito, porém. O problema parece ser terminológico: "o contrato de trabalho vem sendo denominado por alguns autores de contrato de emprego para distinguí-lo de outros contratos de atividade geradores de relações de trabalho".

Estamos de acordo com o entendimento de que se há uma relação de emprego, nada melhor do que denominar o contrato estipulador daquela relação de contrato de emprego, a fim de que sejam sanadas as possíveis confusões terminológicas. Entendendo a questão sob este ponto de vista, podemos conceituar o contrato de emprego como sendo aquele em que "uma pessoa se compromete a trabalhar para outra, sob dependência desta, mediante retribuição".

A distinção é necessária, haja vista que a relação de trabalho pode gerar tanto um contrato de emprego como outros tipos de contrato, como o contrato de prestação de serviços. Retornando à esfera do direito penal, podemos apresentar o nosso entendimento de que o delito de redução a condição análoga à de escravo é crime comum, haja vista que o sujeito passivo só poderá aquele que tem relação de trabalho (lato sensu) estabelecida em um contrato de trabalho (no sentido mais amplo da expressão) com um empregador (no sentido mais amplo do termo, incluindo, pois, aquele sujeito que figura no pólo ativo da relação de trabalho em sentido amplo, isto é, não se restringindo apenas à relação de emprego, como se poderia pensar), haja vista que as relações de trabalho, como ficou dito, não são apenas regidas pela Consolidação das Leis do Trabalho, mas também pelo Código Civil, por estatutos próprios, por leis específicas, dentre outras possibilidades.


REFERÊNCIAS: BARROS, Alice Monteiro de. Curso de direito do trabalho. 1.ed. São Paulo: Editora LTr, 2005; BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte especial, volume 2. 3.ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2003; FIRMO, Aníbal Bruno de Oliveira. Crimes Contra a Pessoa. 5.ed. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1979; CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal: parte especial: dos crimes contra a pessoa a dos crimes contra o sentimento religioso e contra o respeito aos mortos (arts. 121 a 212), volume 2. 5.ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2005; LACERDA, Dorval M. de. O contracto individual de trabalho, volume 1º. 1.ed. São Paulo: Editora Saraiva, 1939; MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal: parte especial (arts. 121 a 234 do CP), volume 2. 13.ed. São Paulo: Editora Atlas, 1998; NORONHA, Edgar Magalhães. Direito penal, volume 2. 13.ed. São Paulo: Editora Saraiva, 1977; NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado. 5.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005; PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, volume 2: parte especial – arts. 121 a 183. 5.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006; SÜSSEKIND, Arnaldo; MARANHÃO, Délio; VIANNA, Segadas; TEIXEIRA, Lima. Instituições de direito do trabalho, volume I. 18.ed. São Paulo: Editora LTr, 1999.

Sobre o autor
Julio Pinheiro Faro Homem de Siqueira

Mestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV). Diretor Secretário-Geral da Academia Brasileira de Direitos Humanos (ABDH). Membro do Comitê de Pesquisa da Faculdade Estácio de Sá, Campus Vitória (FESV). Professor de Introdução ao Estudo do Direito, Direito Financeiro, Direito Tributário e Processo Tributário, no Curso de Direito da FESV. Pesquisador vinculado ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu da FDV. Consultor de Publicações; Advogado e Consultor Jurídico sócio do Escritório Homem de Siqueira & Pinheiro Faro Advogados Associados. Autor de mais de uma centena de trabalhos jurídicos publicados no Brasil, na Alemanha, no Chile, na Bélgica, na Inglaterra, na Romênia, na Itália, na Espanha, no Peru e em Portugal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SIQUEIRA, Julio Pinheiro Faro Homem. Considerações sobre a disciplina do crime de redução a condição análoga à de escravo no Código Penal brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1308, 30 jan. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9443. Acesso em: 23 nov. 2024.

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