Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br
Artigo Selo Verificado Destaque dos editores

O Estado na obra de Kant

Exibindo página 2 de 2
Agenda 11/03/2007 às 00:00

Conclusão

A teoria de Kant foi desenvolvida de forma sistemática ao longo de uma série de trabalhos interconectados.

Kant estabelece fundamentos racionais para a moral e para o direito. Seu imperativo categórico, "age só segundo máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal", fundado na razão, é formulado de forma a qualificar como imoral todo ato que constitua uma lesão à liberdade alheia.

Considerando a possibilidade de que um indivíduo possa agir contrariamente à própria razão, de forma a causar lesão a outro a fim de trazer benefícios para si, Kant reconhece a necessidade do estabelecimento de uma doutrina do direito que incida externamente sobre os indivíduos, de forma a conformar as ações destes a um imperativo categórico. É, portanto, justa, conforme o direito, toda ação que possa coexistir com a liberdade de todos de acordo com uma lei universal.

Na hipótese de um estado de natureza, de juridicidade precária, visto existirem direitos, mas não ser possível a sua execução, os homens viveriam em uma condição de guerras constantes. Assim, seria necessária a superação desta condição através do estabelecimento de um contrato originário que fundasse um sistema de direito público com capacidade de uso da coerção. Este sistema se faz presente no Estado.

Para que o direito do Estado seja justo, ou seja, para que cumpra a sua função de garantir as liberdades individuais, a constituição deste deve ser republicana. Na constituição republicana se encontram presentes os princípios de separação de poderes e de soberania do povo, que deve dar a si as suas próprias leis a fim de ser livre.

A teoria política de Kant, juntamente com as idéias de outros pensadores liberais, foi decisiva para a superação da forma de governo absolutista dominante na Europa até o fim do século XVIII e para a instauração de um novo modelo de Estado, o Estado constitucional liberal.

O modelo liberal, caracterizado pela afirmação dos direitos naturais dos indivíduos e dos valores da liberdade, individualidade, igualdade de direitos, livre pensamento e tolerância, buscava estabelecer um sistema político que, através da representatividade, soberania popular, submissão do Estado ao Direito, separação de poderes, liberdade política e o direito de participação no governo, atingisse o objetivo de garantir os direitos naturais do indivíduo frente a um poder a ele externo. Assim, os indivíduos estariam livres de ingerências externas na busca de sua auto-realização, busca esta que seria benéfica para todo o corpo social.

Estas idéias impulsionaram uma série de revoluções que, ao longo do século XIX, difundiram o liberalismo político por todo o continente europeu.

Na atualidade, pode-se perceber a consolidação das idéias básicas de Kant, ressalvadas as concessões conservadoras características de seu tempo, nas sociedades ocidentais ou de influência ocidental. Após o fim da guerra fria, o modelo liberal de Estado se consolidou como o único aceitável pelo Ocidente.

No entanto, o estabelecimento de regimes que garantam as liberdades dos indivíduos como formuladas por Kant e, posteriormente, por Rawls, tem se mostrado um problema de grande complexidade. Mesmo nos países pioneiros na implementação de uma constituição liberal, escândalos envolvendo agentes públicos em práticas lesivas aos interesses do povo e que certamente seriam condenadas por Kant, demonstram a dificuldade da implementação do projeto kantiano.

A teoria liberal kantiana tem enfrentado grandes obstáculos ao ser incapaz de atingir plenamente uma grande parcela do globo, que mantêm regimes muito distantes da concepção liberal. Kant acreditava que todos fossem capazes de discernir o ato justo do ato injusto através do uso da razão, ocorrendo, somente, a adoção, por alguns, da opção moralmente errada, tomada conscientemente a fim se alcançar objetivos particulares em detrimento dos demais. Desconsiderava a possibilidade de que muitos deixassem, simplesmente, de fazer uso de suas capacidades de raciocínio, substituindo-as por convicções passionais que desprezam a razão, de modo a adotar posturas altamente lesivas ao restante da sociedade.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

No entanto, o pensamento de Kant permanece válido ainda hoje no que afirma o valor da liberdade, dos direitos humanos e da paz e a importância de tê-los como meta final, ainda que inatingíveis, ao estabelecer qualquer modelo teórico para o Estado. Somente assim, com a busca incessante de tais objetivos, é que a humanidade poderá progredir.


REFERÊNCIAS

BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant. 3 ed. Brasília: Editora UNB, 1995.

CAVALLAR, Georg. A sistemática da parte jusfilosófica do projeto kantiano "A paz perpétua". In: ROHDEN, Valério (Org.). Kant e a instituição da paz. Porto Alegre: Editora da Universidade, 1997.

CHEVALIER, Jean Jacques. As grandes obras políticas de Maquiavel a nossos dias. 7 ed. Rio de Janeiro: Agir, 1995.

GOMES, Alexandre Travessoni. O fundamento de validade do direito – Kant e Kelsen. 2 ed. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004.

KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. São Paulo: Martin Claret, 2005.

_________. Idea of a universal history. In: Kant’s principles of politics, including his essay on perpetual peace. A contribution to political science. Edinburgh: Clark, 1891. Disponível em: < http://oll.libertyfund.org/Home3/Author.php?recordID=0142>.

_________. La paz perpetua. Buenos Aires: Longseller, 2001.

_________. Perpetual Peace. In: Kant’s principles of politics, including his essay on perpetual peace. A contribution to political science. Edinburgh: Clark, 1891. Disponível em: < http://oll.libertyfund.org/Home3/Author.php?recordID=0142>.

_________. The Metaphysics of morals. New York: Cambridge University Press. 1996.

LOCKE, John. Segundo tratado sobre governo. São Paulo: Martin Claret, 2005.

MATEUCCI, Nicola. Contratualismo. BOBBIO, Norberto; MATEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco (Org.). Dicionário de Política. 12 ed. Brasília: Editora UNB, 1999.

MONTESQUIEU. The spirit of laws. 1777. Disponível em: <http://oll.libertyfund.org/ Home3/Book.php?recordID=0171.01>.

NOUR, Soraya. A paz perpétua de Kant. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

PERRY, Marvin. Civilização ocidental – uma história concisa. São Paulo: Martin Fontes, 2002.

RAWS, John. O direito dos povos. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

ROUSSEAU, Jean Jacques. Extrato e julgamento do projeto de paz perpétua de Abbé de Saint-Pierre. In: ROUSSEAU, Jean Jacques. Rousseau e as relações internacionais. São Paulo: Editora UNB, 2006.

WOLKMER, Antonio Carlos (Org.). Introdução à história do pensamento político. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.


NOTAS

01 KANT. Fundamentação da metafísica dos costumes. p. 13.

02 KANT. Fundamentação da metafísica dos costumes. pp. 14 -15.

03 KANT. Fundamentação da metafísica dos costumes. p. 51.

04 KANT. Metaphysics of morals. p. 18.

05 KANT. Metaphysics of morals. p. 14.

06 KANT. Metaphysics of morals. p.23.

07 "The concept of right, insofar as it is related to an obligation corresponding to it, has to do, first, only with the external and indeedpratical relation of one person to another, insofar as their actions, as deeds, can have (direct or indirect), influence on each other. But, second, it does not signify that the relation of one’s choice to the mere wish (hence also to the mere need) of the other (…), but only a relation to the other’s choice. Third, in this reciprocal relation of choice, no account at all is taken to the matter of choice (…). All that it is in question is the form in the relation of choice, insofar as choice is regarded merely as free" (KANT. Metaphysics of morals. p. 24).

08 "Any action is right if it can coexist with everyone´s freedom in accordance with an universal law, or if on its maxim, the freedom of choice of each can coexist with everyone’s freedom in accordance wiyh a universal law" (KANT. Metaphysics of morals. p. 24).

09 KANT. Metaphysics of morals. p. 25.

10 GOMES. O fundamento de validade do direito – Kant e Kelsen. p. 144.

11 KANT. Metaphysics of morals. p. 30.

12 LOCKE. Segundo tratado sobre governo. pp. 23-27.

13 LOCKE. Segundo tratado sobre governo. p.38.

14 LOCKE. Segundo tratado sobre governo. pp. 76; 92-94.

15 BOBBIO. Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant. p.120.

16 KANT. Idea of a universal history.

17 "A state of Peace among men who live side by side with each other, is not the natural state. The state of Nature is rather a state of War; for although it may not always present the outbreak of hostilities, it is nevertheless continually threatened with them" (KANT. Perpetual Peace).

18 KANT. Metaphysics of morals. p. 90.

19 "It is with them as with the trees in a forest; for just because everyone strives to deprive the other of air and sun, they compel each other to seek them both above, and thus they grow beautiful and straight, whereas those that in freedom and apart from one another shoot out their branches at will, grow stunted and crooked and awry" (KANT. Idea of a universal history).

20 "The sum of the laws which need to be promulgated generally in order to bring about a rightful condition is public right. – Public right is therefore a system of laws for a people, that is, a multitude of human beings, or for a multitude of peoples, which, because they affect one another, need a rightful condition under a will uniting them, a constitution, so that they may enjoy what is laid down as right. (…) the whole of individuals in a rightful condition, in relation to its own members is called a state" (KANT. Metaphysics of morals. p. 89).

21 KANT. Metaphysics of morals. p. 93.

22 NOUR. A paz perpétua de Kant. p. 41.

23 KANT. Metaphysics of morals. p. 95.

24 "A Republican Constitution is one that is founded, firstly, according to the principle of the Liberty of the Members of a Society, as Men; secondly, according to the principle of the Dependence of all its members on a single common Legislation, as Subjects; and, thirdly, according to the law of the Equality of its Members as Citizens" (KANT. Perpetual Peace).

25 KANT. Perpetual Peace.

26 LOCKE. Segundo tratado sobre governo. pp. 98-104.

27 LOCKE. Segundo tratado sobre governo. p. 107.

28 MONTESQUIEU. The spirit of laws. pp.109-114.

29 KANT. Metaphysics of morals. p. 91.

30 KANT. Perpetual Peace.

31 KANT. Metaphysics of morals. p. 97.

32 BOBBIO. Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant. p. 133.

33 RAWLS. Direito dos povos. pp.64-65.

Sobre o autor
Flavio Agusto Trevisan Scorza

bacharel em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina, mestrando em Direito da UFSC em Florianopólis (SC)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SCORZA, Flavio Agusto Trevisan. O Estado na obra de Kant. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1348, 11 mar. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9580. Acesso em: 30 abr. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!