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O Estado na obra de Kant

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Sumário: Introdução; 1. A filosofia kantiana da moral e do direito; 2. O contrato social e o Estado liberal; 2.1. O estado de natureza e a necessidade do contrato originário; 2.2. A constituição republicana; Conclusão; Referências.


Introdução

O filósofo Immanuel Kant nasceu em 1724 na cidade prussiana de Könisberg, na qual viveu até sua morte, em 1804.

A sua filosofia era característica do idealismo alemão, movimento que tinha Georg W. F. Hegel como outro grande expoente. Kant estabelecia a consciência humana como fator determinante na construção de mundo, ou seja, o mundo é percebido através dos mecanismos mentais a que o submete o observador. Assim, o observador tem um papel ativo ao estabelecer, através da razão, com base nas suas impressões sensoriais, as leis da natureza. Deste modo, o conhecimento da verdadeira natureza das coisas permanece oculto aos homens, capazes apenas de conhecer a realidade revelada aos seus sentidos.

O mundo em que Kant viveu passava por grandes mudanças. Era a chamada Era das Luzes, marcada pela rejeição das idéias e instituições do passado e pela valorização do homem, de sua razão e das ciências.

Presenciou, ainda que sempre da distância de sua cidade, importantes acontecimentos políticos, como a Revolução Americana, de 1776 e a Revolução Francesa, em 1789. Estes acontecimentos foram marcados por uma nova proposta de Estado, a constituição liberal. Neste contexto, Kant se enquadra, na companhia de Rousseau, Voltaire, Montesquieu, David Hume, Thomas Jefferson, dentre tantos outros, no grupo de filósofos que buscavam uma sociedade mais racional e humana e se opunham ao poder absoluto dos governantes, baseado na religião e na tradição, exigindo o estabelecimento de um sistema respeitador das liberdades dos homens.

A filosofia moral e política kantiana busca a afirmação da idéia de liberdade. Encontra-se, essencialmente, dividida em três obras: Fundamentação da metafísica dos costumes (1785), Crítica da razão prática (1788) e Metafísica dos costumes (1798). Nesta última se encontra presente a grande parte das teorias política e do direito formuladas por Kant. Outra obra na qual expões sua visão de Estado é A paz perpétua (1795), na qual busca fundamentar um sistema capaz de encerrar o estado de guerra permanente no qual se encontram os Estados. Outro ensaio relevante é a sua Idéia de uma história universal (1784), que busca demonstrar através da história a evolução do homem para o melhor.

O presente trabalho tem como objetivo realizar uma breve sistematização das teorias política kantianas sob a perspectiva das idéias de liberdade e contrato social. Tal sistematização será realizada de forma linear, iniciando-se pelas idéias básicas de justiça e liberdade, passando, em seguida, para a sua teoria do Estado.

Em um primeiro momento, tendo por base a Fundamentação da metafísica dos costumes e as páginas introdutórias da Metafísica dos costumes, buscar-se-á explicar determinados conceitos básicos da filosofia moral kantiana, como as idéia de imperativo categórico e de liberdade, bem como a concepção de direito do autor. Nestas idéias se centra toda a evolução posterior na formulação da teoria política kantiana.

No segundo capítulo, far-se-á uma análise do jusnaturalismo kantiano e do estabelecimento do contrato social entre os indivíduos, implicando na formação do Estado liberal. A essa análise se seguirá o estudo da concepção kantiana do Estado, momento no qual serão abordados os conceitos de República e separação de poderes. As obras de referência a partir deste momento serão a Metafísica dos costumes, A paz perpétua e a Idéia de uma história universal.


1. A filosofia kantiana da moral e do direito

Antes de abordar diretamente as concepções kantianas de direito e de liberdade, importa realizar uma breve abordagem dos fundamentos da moral kantiana, desenvolvidos, em especial, na sua Fundamentação da metafísica dos costumes, de 1785.

Kant inicialmente separa conhecimento formal de conhecimento material. A filosofia do primeiro é a lógica, abordando a razão e o pensamento em si próprios, não podendo conter parte empírica. O segundo trata dos objetos e das leis a que estão submetidos. Estas leis se dividem em leis da natureza, tratadas pela física, e leis da liberdade, aquelas que tratam das ações livres dos homens, objeto de estudos da ética ou teoria dos costumes. A física e a ética podem contar com elementos empíricos a partir do momento em que a primeira tem como objeto de experiência as leis da natureza e a segunda tem por objeto a vontade do homem quando afetada pela natureza.1

Enquanto é chamada empírica toda filosofia baseada em princípios da experiência, é pura aquela filosofia que tem suas teorias fundamentadas exclusivamente em princípios a priori, não extraídos da experiência, mas sim do uso da razão pura. Quando limitada a determinados objetos do entendimento, a filosofia pura é chamada metafísica, de forma a existir uma metafísica da natureza e uma metafísica dos costumes, tendo esta, portanto, por objeto o estudo das leis da conduta humana diante de uma perspectiva exclusivamente racional.

Assim, a parte empírica da ética chama-se antropologia prática, enquanto a sua parte metafísica é a moral. Para Kant, deve existir uma filosofia moral totalmente desligada do que seja empírico. Esta necessidade se daria em função do próprio caráter da obrigação contida em uma lei moral, sendo que esta obrigação deve ser absoluta e universal, não podendo, portanto, contar com fundamentos empíricos. Seus fundamentos devem ser obtidos a priori, exclusivamente nos conceitos da razão pura.2

Desta forma, a ação moral não pode ser condicionada por quaisquer estímulos externos. A vontade moral não pode ter nenhum fim além do cumprimento do dever. Assim, a máxima do dever moral deve ser dada através do imperativo categórico. Este imperativo categórico apresenta uma ação necessária como um fim em si, impondo um mandamento absoluto, uma obrigação ou dever incondicional. Difere dos imperativos hipotéticos, que ordenam uma ação boa para alcançar outro fim. Kant enuncia o imperativo categórico da seguinte forma: "age só segundo máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal",3 sendo contrária à moral toda ação cuja máxima não se enquadre neste enunciado. Máxima é entendida como um princípio subjetivo para a ação, dado pelo próprio sujeito em seu exercício de livre escolha.4

Kant estabelece, então, uma distinção entre direito e moral. As leis da liberdade, quando dirigidas às ações externas dos indivíduos, sem preocupação com os motivos que o levam a adequar suas ações à lei, são consideradas leis jurídicas. Já as leis da liberdade enquanto leis morais exigem, além da mera adequação das ações externas com o seu preceito, que a lei em si seja o fator que determina a ação, de forma que o motivo da adequação da ação à lei seja puramente o dever de cumprir com o preceito nela contido. Tal distinção se dá no campo da forma, não importando o conteúdo da lei. Enquanto, para o direito, fonte das leis jurídicas, estas leis incidem externamente, para a moral o comando deve ser interno. O preceito moral, em Kant, é dado pelo exercício individual da razão pura, não podendo ser influenciado externamente, enquanto o preceito jurídico é imposto externamente.

Partindo desta distinção, Kant traz um conceito de liberdade determinado pelo direito, referindo-se a liberdade ao uso externo da liberdade de escolha. Já a liberdade, quando determinada pela moralidade, se refere tanto à liberdade externa quanto à liberdade interna de escolha, enquanto determinada pelo uso da razão.5 Desta forma a liberdade moral é exercida internamente, sendo livre o indivíduo para agir em conformidade com as leis que dá a si mesmo pelo uso de sua própria razão. Já a liberdade jurídica, a ser desenvolvida mais adiante, trata da faculdade de agir externamente sem que obstáculos sejam impostos ao exercício das ações.

Tratando especificamente do direito, a filosofia kantiana é marcada pelo idealismo. O termo direito é aplicado por Kant com sentido valorativo, tratando-se daquilo que seja justo – ius. Desta forma, quando formula sua concepção do direito e, posteriormente, do Estado, Kant não se preocupa em explicar os fenômenos como estes ocorrem na realidade. Seu pensamento destina-se a estabelecer teoria pura do direito, baseada em conceitos a priori da razão.

Kant define a doutrina do direito como a soma das leis que podem ser dadas externamente. A distinção de justo e injusto somente é possível através da razão, na qual deverá se basear o direito positivo. Desta forma, qualquer concepção empírica de direito restaria desprovida de fundamentos.6

O direito teria três características essenciais. Primeiramente, deveria dizer respeito somente às relações práticas externas entre as pessoas, na medida em que as ações de um podem influenciar as ações de outro. Segundo, o direito se refere somente às relações entre as vontades dos indivíduos, não sendo considerada jurídica a relação na qual uma vontade encontre um desejo, como em atos de beneficência e crueldade. Por fim, nesta relação entre vontades, não podem ser consideradas as matérias destas, os fins a que se propõem, sendo relevante somente a forma, contanto que a escolha seja livre.7

Livre escolha é aquela realizada de forma independente do estímulo de impulsos sensíveis, conquanto que a sua máxima possa ser compreendida em uma lei universal.

Kant enuncia, então, um princípio universal do direito, afirmando que está conforme com o direito qualquer ação que possa coexistir com a liberdade de todos, de acordo com uma lei universal.8

Tem-se, nesta concepção de direito, uma formulação liberal, na medida em que não lhe caberia influenciar as escolhas dos arbítrios individuais, tendo por função somente estabelecer um sistema que garanta o livre exercício destes arbítrios de acordo com uma lei universal. O direito, para Kant, busca promover o exercício máximo das liberdades individuais, impondo limites à liberdade de um somente a partir do momento em que esta agrida o exercício da liberdade de outro, de forma que a todos seja garantido exercer igualmente suas liberdades. Assim, o fim último do direito e, como será visto a frente, do Estado enquanto instituição produtora de direito é a garantia da liberdade.

Tal concepção admite que, por vezes, o indivíduo possa exercer sua vontade de forma a contrariar uma máxima que estabelece uma lei universal. Neste caso, a razão do indivíduo reconheceria a ilegalidade e imoralidade do ato em função de sua inconformidade com uma lei universal. Estaria, no entanto, abrindo uma exceção para si próprio, a fim de se beneficiar. Em função de tal possibilidade, de que a vontade possa, ainda que a razão reconheça a máxima moral, levar a uma ação contrária a ela, surge a necessidade do direito como sistema que impeça tal ação. Para que o direito possa cumprir com sua função, necessita, portanto, da possibilidade do uso de coerção. Para Kant, o princípio fundador do direito é aquele que traz a possibilidade do uso de uma coerção externa que possa coexistir com a liberdade de cada um de acordo com uma lei universal.9 É o elemento coercitivo, portanto, que possibilita ao direito garantir o máximo e igual exercício das liberdades individuais.

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Em seu sentido interno, liberdade como autonomia da razão, a liberdade traz o próprio fundamento da moral e do direito, por ser, através do seu exercício, que são criados os deveres internos na forma de imperativos categóricos. Dentre tais deveres está a própria criação do direito, fundamentado no imperativo categórico que traz o dever de convivência entre as livres vontades. 10 Este dever moral é que determinará o formação do contrato social, como ver-se-á posteriormente no presente trabalho.

A liberdade, entendida como independência do indivíduo de exercer sua vontade sem sofrer ingerências externas de forma que este exercício possa coexistir com a livre vontade dos outros de acordo com uma lei universal, é, conforme Kant, o único direito natural existente, atribuído a cada um desde o momento de seu nascimento. 11 Todos os outros direitos tidos como naturais, a exemplo da igualdade, derivam do direito de liberdade.

Kant introduz então uma distinção entre o direito natural ou direito privado e o direito civil ou direito público.


2. O contrato social e o Estado liberal

De posse dessa base teórica essencial, pode-se passar ao estudo da teoria kantiana da política e das relações internacionais propriamente dita. Este capítulo tem como objetivo abordar as idéias de Kant sobre a temática da formação do Estado através do contrato social.

A teoria do contrato social foi difundida a partir do início do século XVII, tendo em Thomas Hobbes o grande expoente de sua fase inicial. Trata-se de uma teoria destinada a explicar a origem do poder através de um ato de vontade daqueles a ele subordinados.

A teoria do contrato social supõe a existência de um estado de natureza anterior ao estabelecimento do contrato. Os autores divergem sobre a condição humana neste estado, mas concordam que esta deve ser superada através de da união dos indivíduos por meio do estabelecimento de um contrato, que os obriga juridicamente.

Existem profundas divergências entre os autores sobre o problema do conteúdo do contrato social. Alguns autores, como Hobbes, vêem no contrato o estabelecimento da submissão dos contratantes a um poder externo ao contrato, enquanto outros, a exemplo de Kant, percebem o contrato como uma relação entre iguais.

A seguir, será analisada a condição humana no estado de natureza e a imposição da sua superação rumo a um estado civil, no qual se encontra presente a figura do Estado.

No momento seguinte, será abordada a formulação ideal do Estado kantiano para que este atinja seu objetivo de garantir aos indivíduos o exercício tranqüilo das liberdades a eles conferidas pelo direito natural.

2.1. O estado de natureza e a necessidade do contrato originário

Seguindo a tradição jusnaturalista contratualista, Kant crê na existência de um estado de natureza, que deve ser superado por um contrato social a fim de que seja formado Estado, passando os homens a conviver em um estado civil.

Neste sentido, Kant adota, em relação à passagem do estado de natureza para o estado social, uma formulação semelhante àquela utilizada por John Locke em seu Segundo tratado sobre o governo, de 1690, e que é de suma importância para a fundamentação teórica do Estado liberal.

Conforme Locke, originariamente, os homens viviam em um estado de natureza, sendo totalmente livres em suas ações e iguais em poder. Sua liberdade se encontrava limitada pela lei da natureza, esta contida na razão. Neste estado de natureza, a execução da lei, o poder de coerção, se encontrava nas mãos de todos os homens, de forma que, ao ser prejudicado em seus direitos, cada qual poderia buscar reparação daquele que cometeu a agressão. 12 Dentre os direitos naturais, tem destaque o direito de propriedade, conferido à cada um em função do exercício individual do trabalho, que tira o bem de seu estado original e lhe adiciona valor, excluindo-o do domínio comum. 13

Ainda que conte com uma série de direitos no estado de natureza, para Locke, a fruição destes direitos se torna muito incerta neste estado. Este fenômeno se deve à igualdade de poder com que contam os homens, de forma que, por vezes, podem eles exerce-lo indiscriminadamente, deixando de observar a justiça, e, assim, atentar contra o livre exercício da propriedade por parte de outros. Assim, estabelece-se no estado de natureza uma condição constante de guerra.

Diante desta nociva realidade, a fim de assegurar o exercício de suas liberdades e, principalmente, garantir suas propriedades, os homens abandonam a liberdade e a igualdade do estado de natureza e se unem através do contrato social. Transferem, então, para a sociedade o poder de executar as leis afirmadas pelo direito natural. 14 Assim, o objetivo do contrato social como visto por Locke, é garantir aos indivíduos, através da formação da sociedade civil, os seus direitos naturais, em especial o direito de propriedade, transferindo ao Estado o poder coercitivo de cada um.

Kant segue Locke ao perceber a transição do estado de natureza para o estado civil como forma de possibilitar o exercício dos direitos naturais através da organização da coação sob o domínio estatal. 15

O direito privado, conforme Kant, trata dos direitos naturais dos indivíduos, derivados estes do direito de liberdade, o único direito humano verdadeiramente inato. O direito privado é, para Kant, um direito provisório, sendo uma necessidade do homem e até mesmo seu dever moral passar do estado de natureza para o estado civil, estabelecendo um direito público de caráter permanente. A propriedade é considerada, assim como na visão de Locke, como um direito natural decorrente da liberdade, não dependendo a existência deste direito da sua afirmação pelo Estado, sendo apenas garantido por este quando do estabelecimento do contrato social.

Kant traz como característica essencial do ser humano a sua "sociabilidade anti-social" (unsocial sociability). 16 Isto significa que o homem conta com uma propensão a se sociabilizar com os outros, mas esta propensão vem acompanhada de um antagonismo. Este antagonismo é fruto da inclinação de cada indivíduo a seguir apenas a sua vontade e agir da forma que julgar mais benéfica para si, ainda que esta conflite com a opinião e a vontade dos outros. Assim sendo, podem ocorrer conflitos de interesses que causem a violação por parte de um da liberdade de outros.

No estado de natureza, esta sociabilidade anti-social humana leva a uma condição de constantes guerras, pois, ainda que hostilidades entre homens não tenham irrompido, o risco de que ocorram é imenso. 17 Quando surgem os conflitos, carece o estado de natureza de uma jurisdição competente. Acabam as partes por agir como juízes que julgam em causa própria. Deste modo, no estado de natureza, os indivíduos vivem numa situação de grande insegurança, ficando limitada a sua capacidade de desenvolver por completo seus potenciais através do exercício de sua liberdade.

Consequentemente, a razão impele para o estabelecimento de um sistema de direito público, pelo qual os homens deixariam o estado de natureza, em que cada um age conforme seu próprio julgamento, e unir-se-iam sob um poder coercitivo externo que garanta os direitos de cada um, promovendo a justiça. 18 Assim, a passagem do estado de natureza para uma condição civil regida por um direito público coloca-se como um dever moral, tratando-se a formação do contrato social de uma obrigação imposta pelo imperativo categórico.

É, somente assim, através do estabelecimento da sociedade civil, que os homens poderão desenvolver as suas potencialidades. Nesta nova condição a anti-sociabilidade (unsociableness) humana, controlada por um sistema de coerção legal, pode levar ao pleno desenvolvimento da humanidade. Os homens se comportariam então como árvores em uma floresta, pois como todos lutam por privar o outro de ar e sol, compelem uns aos outros a busca-los cada vez mais acima e, assim, crescem retas e bonitas, enquanto aquelas que livres e esparsas desenvolvem seus ramos aleatoriamente, crescem atrofiadas, tortas e curvadas. 19

O direito público é definido por Kant como um sistema legal de caráter geral estabelecido para um povo ou multiplicidade de povos através de uma vontade unificadora representada em uma constituição a fim de estabelecer a justiça. O Estado é definido como a totalidade de indivíduos sob uma condição civil e legal em relação com os membros desta totalidade. 20

A forma pela qual um povo sai do estado de natureza e forma um Estado é chamada de contrato originário. Por este contrato, cada indivíduo abandona sua liberdade externa selvagem e irrestrita e se torna um membro do Estado. No Estado, pode então gozar plenamente de sua liberdade natural ao condicioná-la a leis criadas pela sua própria vontade. 21

No contratualismo kantiano, inexiste a pressuposição de que a liberdade do estado de natureza se encontra limitada pelo estado civil, mas sim de que é deixada totalmente em favor da aquisição de uma liberdade como autonomia, 22 a autonomia de criar as leis para si próprio.

O contrato originário não necessita de uma origem histórica. Nesse aspecto, Kant diverge dos outros contratualistas, que buscavam justificar o estabelecimento do Estado na formulação de um contrato ocorrida em um dado momento da história. Para Kant, o contrato originário é uma idéia da razão utilizada para justificar a passagem do estado de natureza para o estado civil, não sendo necessária a evidência de sua existência histórica. O estado de natureza é, portanto, apenas uma hipótese lógica, uma suposição de como seria a condição humana em um ambiente desprovido das condições sociais e políticas.

Esta diferença tem uma importante implicação no pensamento kantiano no que se refere à rejeição que nutre este autor pelas revoluções. A historicidade do contrato social era meio utilizado por autores como Locke para deslegitimar aqueles Estados que não tivessem em sua origem um contrato. Deste modo seria legítima a resistência do povo contra o poder estabelecido nestes Estados.

Kant afirma que um povo não deve indagar sobre a origem da autoridade suprema a qual se submete, sendo este tipo de questionamento perigoso ao dar margem para uma atitude de resistência face ao poder soberano. 23 Assim sendo, o povo deve obedecer ao legislador estabelecido independentemente de sua origem, sendo vedada a revolução, ainda que haja injustiça por parte do soberano. Os argumentos de Kant contrários à resistência ao poder soberano serão vistos a frente.

2.2. A constituição republicana

A forma ideal de governo para Kant é a República. Kant, define constituição republicana como sendo aquela fundada no princípio da liberdade dos membros da sociedade, enquanto seres humanos; na dependência dos membros a uma única legislação comum, enquanto súditos; e conforme a igualdade de todos como cidadãos. 24 A liberdade aqui referida é o atributo do indivíduo de só obedecer as leis as quais deu o seu consentimento, enquanto por igualdade têm-se o não reconhecimento, dentro do povo, de nenhum superior capaz de obrigar-se por direito de forma que não possa obrigar a outro.

Kant diz ser o governo republicano o oposto do governo despótico. Tal distinção se dá no âmbito da forma de exercício de poder pelos governantes. A forma republicana é aquela na qual o poder legislativo se encontra separado do poder executivo, enquanto no despotismo os que criam as leis são os mesmos que as executam, de modo a administrar o Estado conforme interesses próprios ao invés de buscar os interesses públicos. 25

Locke, em sua luta contra o absolutismo monárquico, encontrou-se dentre os primeiros autores a reconhecer a necessidade da separação de poderes. Os três poderes de Locke são o legislativo, poder supremo da comunidade, representante da vontade do povo e responsável pela realização da justiça por meio da elaboração de leis gerais; 26 o poder executivo, subordinado à soberania do legislativo e responsável pela execução interna das leis; e o poder federativo, cuja função é representar o Estado internacionalmente e tratar dos assuntos de guerra e paz. 27

Montesquieu foi quem realmente desenvolveu a idéia da tripartição de poderes. Tal realização se deu no livro XI de sua grande obra Do espírito das leis, de 1748. Nesta obra, o autor desenvolve a sua idéia de liberdade. Esta seria a liberdade de se fazer tudo que for permitido pelas leis. Para que esta liberdade se efetive, faz-se necessário um governo que impeça que o uso abusivo de poder por parte de um cidadão atente contra a segurança dos demais. Para cumprir com sua função de garantir aos indivíduos sua liberdade, Montesquieu afirma ser necessário que os três poderes com os quais contam todos os governos, legislativo, executivo e judiciário, se encontrem em mãos distintas. O poder legislativo deveria ser exercido pelos representantes do povo, eleitos por este para a função de criar, derrogar ou modificar as leis do Estado. O poder caberia a um monarca, responsável pela segurança nacional e pelas relações com outros Estados. Por fim, o poder judiciário deveria estar nas mãos de membros do povo reunidos em tribunais provisórios destinados a resolver sobre disputas envolvendo indivíduos e questões criminais. Montesquieu estabelece uma série de regras para o exercício destes poderes de forma a impedir que haja abuso por parte dos detentores de algum deles. 28 Seu sistema de governo ideal é inspirado no sistema monárquico constitucional da Inglaterra de seu tempo, recebendo, portanto, evidente influência da obra de Locke.

Seguindo a teoria tripartite de Montesquieu, Kant afirma que o Estado, como representação da vontade geral unida, é composto por três pessoas, o soberano, a autoridade executiva e a autoridade judiciária. Estes três poderes do governo agiriam como em um silogismo, sendo a premissa maior a lei estabelecida pela vontade do povo (legislativo), a premissa menor o comando para a obediência da lei (executivo) e a conclusão a sentença dada como direito para o caso em questão (judiciário). 29

Para Kant, o legislativo é o poder soberano e deve ser exercido somente pela vontade unida do povo, de modo que cada um decida para todos e que todos em conjunto decidam para cada um. Somente deste modo, seria possível um sistema no qual o legislador não possa prejudicar os sujeitos de suas leis, visto que o próprio legislador estará na posição de sujeito.

Dentre os indivíduos que integram o Estado, são cidadãos, membros e, desta forma, legisladores, aqueles capazes de votar. Para ter tal capacidade, o indivíduo deve ser economicamente independente. Independência econômica significa aqui a propriedade de meios de produção. Desta forma, na concepção kantiana, não podem ser considerados cidadãos os trabalhadores assalariados e as mulheres. Estes são meros associados do Estado, visto dependerem da direção e proteção de outros indivíduos para se manterem, carecendo de direitos políticos. Isto não que dizer que aqueles que não possam gozar da condição de cidadãos estejam submissos ao arbítrio dos demais. A eles devem ser garantidos seus direitos naturais, inclusive a liberdade de, através de seus próprios méritos, sair de sua condição de dependência e ascender à condição de cidadão.

Na sua concepção de cidadania, tem-se um traço do conservadorismo político de Kant, bem como da defesa da condição dominante da burguesia típica do pensamento liberal de seu tempo. Sua aversão à democracia como o governo de todos é evidente quando ele afirma ser esta sempre uma forma de despotismo na qual todos buscariam usar do poder de governo em benefício próprio. 30

Outro traço de conservadorismo político na obra de Kant é a sua aversão a qualquer possibilidade de revolução. Entende ele que, caso o soberano, em sua atribuição de legislador, atente contra as leis naturais, não cabe aos súditos o direito de resistência, mas tão somente o direito de reclamação. A existência na constituição de qualquer previsão de uma autoridade capaz de resistir ao soberano seria um contra-senso, pois a legislação mais alta não poderia admitir um superior a ela sem que o próprio princípio da soberania fosse destruído. Por outro lado, a garantia ao povo de um direito de resistência contra o soberano o colocaria na posição de juiz em causa própria, algo inaceitável no estado civil. 31 Desta forma, só seria possível a modificação de um governo através de sua reforma conduzida pela própria autoridade soberana, devendo esta reforma atingir somente a autoridade executiva. Dessa forma, o povo pode, através de seus representantes, resistir a atos do executivo em caso de arbitrariedade deste, mas esta resistência deve ser sempre negativa, não podendo os representantes do povo impor ao governo determinadas ações sob pena de acumular, assim, despoticamente os poderes executivo e legislativo.

Voltando à concepção de constituição republicana em Kant, temos que esta exige que o poder soberano seja exercido por representantes eleitos pelos cidadãos. Um governo não representativo é um governo despótico por permitir que o legislador atue em causa própria.

É somente por uma constituição republicana, na qual há a representatividade do povo no poder soberano, que se pode garantir a liberdade civil, entendida como a faculdade do indivíduo de obedecer apenas a leis para as quais deu seu consentimento.

Com a sua teoria política Kant dá uma valiosa contribuição para a elaboração de uma concepção liberal de Estado. Por esta visão, a garantia da liberdade individual é o grande objetivo do Estado, sendo preocupação única deste "colocar seus próprios cidadãos em condições, através da garantida da liberdade externa, de perseguir, segundo o seu próprio pensamento, os fins religiosos, éticos, econômicos, eudemonísticos que melhor correspondem aos seus desejos". 32

Ao trazer uma nova concepção teórica de Estado, autores como Locke, Montesquieu e Kant, contribuíram de forma determinante na luta da burguesia contra o absolutismo monárquico. Com estas novas teorias, buscou-se eliminar as justificativas para o exercício poder absoluto, seja esta justificativa a necessidade presente no contratualismo hobbesiano de um monarca de punho forte, capaz de garantir a paz através da restrição da liberdade, seja ela a idéia de derivação divina do poder, como presente na obra de Bossuet. O Estado liberal não conta com objetivo de levar seus súditos a um fim específico, seja este a felicidade, a salvação divina ou o bem-estar econômico. Sua única função é garantir a cada um a liberdade para perseguir os fins que julgar mais apropriados para si, sem sofrer nesta busca qualquer ingerência externa à sua vontade.

Contemporaneamente, destaca-se, dentro da teoria contratualista liberal, o autor norte-americano John Rawls. O presente trabalho não tem como pretensão esmiuçar a importante obra deste autor. No entanto, cabe aqui destacar a influência em sua obra dos textos de Locke e Kant a fim de demonstrar a evolução da concepção contratualista do Estado liberal. O Estado liberal para Rawls, que equivaleria ao republicano de Kant, seria aquele que, além de contar com uma constituição democrática (aqui tratando da "democracia" em sua acepção atual usual), cumpriria com as exigências de igualdade de oportunidades, que se reflete especialmente na educação; de distribuição de renda que permita o exercício por todos de suas liberdades básicas; da sociedade como empregador de última instância, de forma a garantir emprego a todos; de assistência médica básica a todos; e de financiamento público de eleições e ampla disponibilidade de informações sobre questões políticas, de forma a garantir a independência dos representantes em relação a interesses particulares e manter os cidadãos cônscios de suas atividades. 33

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Sobre o autor
Flavio Augusto Trevisan Scorza

bacharel em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina, mestrando em Direito da UFSC em Florianopólis (SC)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SCORZA, Flavio Augusto Trevisan. O Estado na obra de Kant. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1348, 11 mar. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9580. Acesso em: 22 nov. 2024.

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