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Trabalho escravo no Brasil: uma condenação oriunda da Corte Interamericana de Direitos Humanos

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Agenda 17/01/2022 às 22:28

Além do trabalho escravo contemporâneo, não eram cumpridos direitos trabalhistas básicos; dois adolescentes desaparecem da fazenda e jamais foram encontrados.

Resumo: O presente ensaio cuida de analisar decisão proferida por uma corte internacional com força condenatória e que trouxe à baila recente decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, instituída pelo Pacto de San José da Costa Rica, e que recentemente condenou o Brasil por permitir dentro do seu território, a exploração de mão de obra escrava, conforme terminologia hodiernamente adotada, que não apenas se refere à propriedade do ser humano, mas alcança a infringência à sua dignidade. Alfim, tecemos ilações no que se reporta à importância da decisão, não apenas no âmbito interno, mas acerca da abrangência nos países firmatários da Convenção.

Palavras-chave: Decisões judiciais. Trabalho escravo. Direitos Humanos. Tratados. Convenções. Internacional. Liberdade. Emancipação.


Introdução

Com base nas decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal do Brasil, nos julgamentos dos Recursos Extraordinários  RE n. 349703 e RE n. 466343 e do Habeas Corpus  HC n. 87585, a Corte brasileira reviu seu posicionamento, em 2008, acerca da prisão do depositário infiel (que até então era legitima), para se adequar ao Pacto de São José da Costa Rica, ao Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos da Organização das Nações Unidas (ONU) e à Declaração Americana dos Direitos da Pessoa Humana (Bogotá, 1948).

As decisões, que foram baseadas nas diretrizes traçadas pelo artigo 5º da Constituição Federal de 1988 (rol dos direitos humanos fundamentais) significaram um marco na conduta do Supremo Tribunal, fez que retificou entendimento anterior e ratificou a jurisprudência nacional no que toca à hierarquia dos Tratados e Convenções Internacionais que versem sobre Direitos Humanos.

Vale salientar que, apesar da expressão direitos humanos fundamentais parece prima facie associar os direitos, como aceito por parte da doutrina brasileira, que os tomam como semelhantes, a maioria dos autores brasileiros faz distinção entre os termos, seguindo a linha de Canotilho (CANOTILHO, 1995), ou seja, afastando-os no plano da positivação. Neste contexto, vale colacionar as elucubrações traçadas por Nathalia Massom:

Nada obstante, majoritariamente a doutrina identifica uma diferença entre os termos, referente ao plano em que os direitos são consagrados: enquanto os direitos humanos são identificáveis tão somente no plano contrafactual (abstrato), desprovidos de qualquer normatividade, os direitos fundamentais são os direitos humanos já submetidos a um procedimento de positivação, detentores, pois, das exigências de cumprimento (sanção), como toda e qualquer outra norma jurídica [citando Canotilho]. Direitos fundamentais e direitos humanos afastam-se, portanto, apenas no que tange ao plano de sua positivação, sendo os primeiros normas exigíveis no âmbito estatal interno, enquanto estes últimos são exigíveis no plano do Direito Internacional[1].

Conquanto acatamos a diferenciação dos termos, no presente artigo, por se cuidar da análise de uma decisão que refoge ao âmbito interno, adotamos as expressões direitos humanos e direitos fundamentais, em sua natureza indissociável, para que a compreensão se torne mais abrangente.

No que tange à consideração acerca dos tratados e convenções, não restam polêmicas no Brasil no que se refere a considerá-los como normas de hierarquia igual à emenda constitucional, nos termos do § 3º, do artigo  da Constituição de 1988, dispositivo acrescentado pela Emenda Constitucional EC n. 45, 2004, que cuidou da Reforma do Poder Judiciário brasileiro: Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.

A EC 45/2004, inseriu o § 3º ao artigo  da CF/88, passando o dispositivo a prever que os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionaisReafirmando, portanto, a jurisprudência do STF. Assim temos que tratados e convenções internacionais que versem sobre direitos humanos, e desde que aprovados por 3/5 dos votos dos membros de cada casa do Congresso Nacional (artigo 60§ 2º da CF/88), e em dois turnos de votação, terão força de emenda constitucional. Já os demais tratados e convenções internacionais têm força de lei ordinária[2].

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Da dicção do comando constitucional acima referido (§ 3º do artigo 5º) temos que os Tratados e Convenções Internacionais que versem sobre Direitos Humanos, uma vez incorporados ao ordenamento jurídico pátrio, devem ser coercitivamente observados, sob pena de afronta ao Texto Magno, dado que hierarquicamente, sobrepõem-se às demais normas infraconstitucionais. Anote-se que demais tratados e convenções (que não versem sobre direitos humanos), não têm a mesma hierarquia, sendo tratados como leis ordinárias e não normas constitucionais.

Neste contexto, assim nos explica e clarifica Pedro Lenza (que mesmo antes da Reforma do Judiciário, já se posicionava no sentido de adotar os tratados e convenções internacionais como normas de caráter constitucional):

A novidade trazida pela Reforma [...], consiste em diferenciar os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos dos tratados e convenções internacionais sobre de outra natureza. Aqueles (sobre direitos humanos), desde que aprovados por 3/5 dos votos de seus membros, em cada Casa do Congresso Nacional e em 2 turnos de votação [...], passam a ter a mesma natureza jurídica das emendas constitucionais. Isso significa que, inexistindo afronta aos limites de poder de reforma, o tratado internacional sobre direitos humanos, desde que observado o quorum diferenciado de aprovação pelo Congresso Nacional (igual ao das ECs), passa a ter paridade normativa com as normas constitucionais[3]

Sobre a temática, vale reforçar com a doutrina assinalada por Rodrigo Pinho, que se posiciona no mesmo sentido:

Desta forma, ante o novo dispositivo constitucional, superando antiga controvérsia doutrinária e jurisprudencial, não resta qualquer dúvida que tratados internacionais que versem sobre direitos fundamentais da pessoa humana, de qualquer natureza, quer individuais, políticos ou sociais, firmados pelo Estado brasileiro, após ratificação por três quintos dos votos dos membros da Câmara dos Deputados e do Senado Federal a mesma maioria qualificada exigida para a alteração do texto constitucional -, estão no mesmo patamar hierárquico de normas constitucionais, prevalecendo sobre a legislação ordinária e possuindo o poder de revogação de normas constitucionais anteriores.[4]

De acordo com o artigo 84, VIII da CF/88, compete privativamente ao Presidente da República, celebrar tratados, convenções e atos internacionais, sujeitos a referendo do Congresso Nacional. O referendum do Congresso tem espeque no artigo 49, I, da CF/88 [...]. Na linha da jurisprudência prevalecente no Supremo Tribunal Federal, os tratados internacionais que não versem sobre matéria concernente aos direitos humanos, estão de acordo com o sistema jurídico brasileiro, hierarquicamente subordinados à autoridade da Constituição da Republica. Em consequência, nenhum valor jurídico terão os tratados internacionais, que, incorporados ao sistema de direito positivo interno, transgredirem, formal ou materialmente, o texto da Carta Política. (STF, ADI 1.480-MC/DF, Rel. Min. Celso de Mello, j. 27-06-2001 e p. 08-08-2001).

Conquanto hodiernamente tenham natureza jurídica de norma constitucional, tratados e convenções internacionais que versem sobre Direitos Humanos, assinados pelo Brasil com outros países e/ou organismos internacionais nem sempre quedaram cumpridos, em parte ou completamente.

No entanto, não é o único país a agir contrariando as Cortes Internacionais de Justiça. Para reforçar a assertiva, citamos o exemplo da sentença proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Fontevecchia y D'Amito vs. Argentina, em 2001 e ratificada pela Corte Suprema de Justiça da Argentina, onde o ex-Presidente Carlos Menem atuou contra a organização de comunicação Editorial Perfil S.A., de propriedade de Jorge Fontevecchia y Héctor D'Amico, por violação a sua intimidade no que diz respeito ao tratamento dado pelo periódico no que tange à divulgação difamatória envolvendo filho havido fora do casamento.

Como ilustração, podemos citar outros exemplos de julgamentos pela Corte Internacional de Direitos Humanos envolvendo países da América Latina e Caribe:

i) Caso Velásquez Rodrigues vs. Honduras, onde a matéria versou sobre a forma violenta e sem ordem judicial de detenção do estudante Velásquez (por supostos crimes políticos) que restou desaparecido;

ii) Caso Bámaca Velásquez vs. Guatemala, onde a Guatemala foi denunciada pelo desaparecimento do Sr. Bámaca Velásquez, após ser torturado e morto pelo exército guatemalteco;

iii) Caso do Tribunal Constitucional vs. Peru, sendo o país julgado pelo fato do ditador Alberto Fujimori, ter dissolvido o Parlamento e o Tribunal de Garantias Constitucionais, bem como vários magistrados da Corte Suprema de Justiça;

iv) Caso Bulacio vs. Argentina, eu resumidamente cuidou das ações patrocinadas pela Polícia Federal da Argentina, em 1991, quando realizou prisão em massa de mais de oitenta pessoas, em Buenos Aires, por ocasião de um show de rock, tendo detido e torturado o jovem Bulacio, então com dezessete anos e acabou morto por não suportar os golpes que recebeu na cabeça dos policiais;

v) Caso Almonacid Arellano e outros vs. Chile, acerca da execução extrajudicial do Sr. Luis Alfredo Almonacid Arellano, comunista acusado e perseguido no Chile pela ditadura de Pinochet; e

vi) Caso Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde vs. Brasil, que versa sobre trabalho escravo e o qual escolhemos para analisar com mais vagar no presente trabalho.


Trabalho escravo: um caso brasileiro

O Brasil desde a época da sua invasão pelos portugueses (que alguns preferem chamar de descobrimento), sempre se valeu da mão de obra escrava. Após quase o extermínio da nação indígena (os verdadeiros donos das terras brasileiras), e para atender ao sistema capitalista mercantil então vigente, sequestrou negros do continente africano para realizarem trabalhos forçados nas suas lavouras (principalmente de cana-de-açúcar) e minas de extração de minérios.

Em 1810, o Brasil assina com a Inglaterra, os Tratados de Aliança e Amizade, de Comércio e Navegação. A Inglaterra pressionava o Brasil para acabar com a escravidão dos negros africanos, tendo em vista interesses puramente econômicos e não humanitários como possa parecer. Neste sentido:

Qual seria o motivo do interesse inglês em defender o fim do tráfico e da escravidão? Certamente não apenas a pressão da opinião pública ou razões puramente humanitárias. Como o próprio Canning mencionava em seus despachos, havia importantes interesses econômicos. A proibição inglesa do tráfico de escravos para sua colônias nas Antilhas, produtoras de açúcar, ocasionou a diminuição da mão de obra e, consequentemente, o encarecimento do açúcar ali produzido. O açúcar do Brasil, beneficiado pela manutenção do tráfico e pelo uso da mão de obra escrava, obteria preços mais baixos no comércio internacional e as colônias inglesas seriam prejudicadas[5].

Com o aumento das pressões, D. Pedro I (logo após o Brasil proclamar sua independência do Reino de Portugal em 1822), assina com a Inglaterra a Convenção de 1826, que em seu artigo 1º ditava um prazo de três anos para a extinção do tráfico de negros. No entanto, o Brasil não cumpre o acordo celebrado, apesar de formalmente ter criado leis nacionais para aparentemente, atender ao que ficou convencionado.

Não abandonando sua cultura escravocrata, o Brasil segue (mesmo que clandestinamente), escravizando trabalhadores em seu território. Sobre a questão, o Supremo Tribunal Federal Brasileiro, em diversos momentos, já se manifestou, como no Inquérito  Inq. n. 3.412, quando o Plenário, por maioria e com base no crime tipificado pelo artigo 149 do Código Penal (proibição de redução do ser humano a condição análoga a de escravo), entendeu não ser necessária coação física da liberdade (direito humano fundamental de livremente ir e vir), nos seguintes termos: A escravidão moderna é mais sutil do que a do século XIX e o cerceamento da liberdade pode decorrer de diversos constrangimentos econômicos e não necessariamente físicos. Ou seja, basta ferir o direito ao trabalho digno, não privação necessária de liberdade, para caracterização do crime.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos, órgão judicial autônomo com sede em San José, Costa Rica, responsável precipuamente pela aplicação e interpretação da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), de 1969 e promulgada no Brasil pelo Decreto n. 678, de 6 de novembro de 1992, julgou o Caso n. 12.066: Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde vs. Brasil. Da decisão condenatória proferida, o Brasil foi notificado em 15 de dezembro de 2016.

Acontece que a Fazenda Brasil Verde, com sede no estado do Pará, mantinha em cativeiro 81 (oitenta e um) trabalhadores em situação análoga a de escravos, o que contraria as disposições contidas no Pacto de San José da Costa Rica, principalmente seu artigo 6.1: Ninguém pode ser submetido à escravidão ou à servidão, e tanto estas como o tráfico de escravos e o tráfico de mulheres são proibidos em todas as formas.

A condenação da Corte seguiu direcionada ao Brasil, uma vez que permitiu a prática de escravidão dentro do seu território e foi festejada como um marco na defesa dos direitos humanos: primeiro caso sobre escravidão e tráfico de pessoas decidido pela Corte Interamericana, de modo que esta teve a oportunidade de desenvolver e atualizar o conteúdo destes conceitos, de acordo com a Convenção Americana e o Direito Internacional.[6]

Nos parágrafos 268 e 270 da sentença exarada pela Corte restou assim consignado:

A partir do resumo de instrumentos internacionais vinculantes e das decisões de tribunais internacionais listadas anteriormente, observa-se que a proibição absoluta e universal da escravidão está consolidada no Direito Internacional [..] não é essencial a existência de um documento formal ou de uma norma jurídica para a caracterização desse fenômeno, como no caso da escravidão chattel ou tradicional[7].

O fato que deu azo à condenação da Corte Interamericana ao Brasil foi agravado pelo fato de que, além da verificação de trabalho escravo (nos moldes atualmente entendidos sem limitação à propriedade da pessoa), não eram cumpridos direitos trabalhistas básicos e dois adolescentes desaparecem da Fazenda e jamais foram encontrados.

Sendo a primeira condenação do Brasil deste jaez, na jurisdição contenciosa da Corte, a tendência é que seja reconhecida com força supranacional, ou seja, com obrigação de observância para todos os países signatários do Pacto de San José da Costa Rica e não produção apenas de efeito encantatório dos direitos humanos, que segundo as definições de David Sánchez Rubio[8], pode ser assim pensado e lido:

A dimensão encantadora se une com o potencial emancipador e o horizonte de esperança que possibilita a existência de condições de autoestima, responsabilidade e autonomia diferenciadas e plurais. A dimensão que desencanta pode aparecer no instante em que os Direitos Humanos se fixam sobre discursos e teorias, instituições e sistemas estruturais que sociocultural e sociomaterialmente não permitem que estes sejam factíveis e nem possíveis devido às assimetrias e hierarquias desiguais sobre as quais se mantêm. Além disso, através de diversos mecanismos de ocultação, pode se construir um imaginário aparentemente emancipador, e, por isso, com um encanto sedutor, falsamente universal.

No que tange ao cumprimento da sentença, o artigo 63 do Pacto de San José da Costa Rica prevê expressamente que a Corte emitirá ordem para que seja interrompido o ato transgressivo, execução da medida necessária para o respeito ao direito humano lesado e/ou finalmente pagamento de uma justa indenização pelo dano material ou moral.

Sobre a autora
Rosana Colen Moreno

Rosana Cólen Moreno. Procuradora do Estado de Alagoas. Membro da Confederação Latino-americana de trabalhadores estatais (CLATE). Especialista em previdência pública pela Damásio Educacional e em direitos humanos pela PUC/RS (em finalização). Autora do livro Manual de Gestão dos Regimes Próprios de Previdência Social: foco na prevenção e combate à corrupção, publicado pela LTr. Coordenadora da Comissão Internacional Avaliadora instituída pelo Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (CLACSO-UNESCO) e denominada “Desigualdades, Exclusão e Crises de Sustentabilidade dos Sistemas Previdenciários da América Latina e Caribe. Educadora, Professora, Instrutora, Palestrante, Consultora. Participante do programa de doutorado em Direito Constitucional pela Universidad de Buenos Aires – UBA. Especialista em Regimes Próprios de Previdência (Damásio Educacional). Autora do livro: Manual de Gestão dos Regimes Próprios de Previdência Social: foco na prevenção e combate à corrupção.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MORENO, Rosana Colen. Trabalho escravo no Brasil: uma condenação oriunda da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6774, 17 jan. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/95950. Acesso em: 22 dez. 2024.

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