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Da possibilidade de usucapião por condômino de área comum em condomínio especial

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Agenda 08/02/2022 às 22:25

Se houver afetação de alguma área comum ao uso exclusivo de certo condômino, sem oposição dos demais, é possível declarar, com o tempo, a usucapião?

RESUMO: O estudo trata acerca de questão peculiar e problemática no direito imobiliário moderno, sobre se é ou não possível, em nosso ordenamento jurídico atual, a usucapião por condômino de área comum em condomínio especial. Desta forma, analisaram-se, para solução do problema, os institutos fundamentais da usucapião, em seus aspectos mais profundos, como sua natureza jurídica, seus fundamentos e seu conceito, e do condomínio especial, também tratando de sua natureza jurídica e seus fundamentos, com enfoque no estudo da área comum. Embasou-se a solução da questão na doutrina dos civilistas mais renomados do direito pátrio, na inquirição de obras monográficas sobre o tema e na jurisprudência dos tribunais superiores. Concluiu-se pela impossibilidade teórica da usucapião em áreas comuns por diversos motivos, aceitando-se, porém, conforme constatado tanto na teoria quanto na jurisprudência, a aplicação do instituto correlato da supressio, impedindo-se, desta forma, a modificação de situação existente por um longo período de tempo, como medida de proteção ao princípio da boa-fé objetiva, especificamente em relação à legítima confiança e à vedação ao comportamento contraditório.

Palavras-chave: Usucapião. Condomínio especial. Edifício. Área comum. Supressio.


1 INTRODUÇÃO

O direito condominial vem sendo cada vez mais explorado no cotidiano jurídico, tanto pelo aumento de demandas nos tribunais e nos juízos de primeiro grau, quanto no estudo teórico acerca do tema.

A verticalização dos centros urbanos, causada por motivos remotos, como o processo contínuo de urbanização das sociedades modernas, e mais próximos, como a concentração populacional em certas áreas específicas das cidades, acarreta o crescimento do número de condomínios em edificações, que, por sua vez, faz surgir problemas jurídicos advindos das relações condominiais (RIZZARDO, 2014, p. 19).

Nesta esteira, o presente trabalho tem por escopo o estudo teórico e prático-jurisprudencial acerca da possibilidade de aquisição por usucapião de área comum em condomínio especial, considerando a existência de diversos casos práticos, sem que se tenha, ainda, na doutrina pátria, uma discussão pormenorizada da problemática.

Pretende-se, igualmente, que o trabalho sirva para possibilitar embasamento doutrinário, ensejando maior uniformidade de entendimento acerca da questão nos tribunais brasileiros.

Ademais, para uma percuciente análise da questão, inquirir-se-á sobre os institutos fundamentais relacionados ao assunto, isto é, a aquisição por usucapião e o condomínio edilício.

O trabalho, então, fincará suas bases na doutrina especializada, buscando, com o estudo do âmago dos institutos pertinentes, encontrar a solução para um problema intrincado do direito imobiliário.

2 DA USUCAPIÃO E DO CONDOMÍNIO ESPECIAL NO DIREITO BRASILEIRO

Antes de adentrar na resolução da questão concernente à possibilidade de usucapião por condômino de área comum em condomínio especial, na atual realidade normativa brasileira, faz-se necessário ponderar, para uma escorreita conclusão do problema, acerca dos dois institutos pertinentes ao tema, isto é, a usucapião e o condomínio especial.

Optou-se, no presente trabalho, pela utilização da palavra usucapião como substantivo feminino. Tendo em consideração a grande divergência existente entre os gramáticos e os juristas e não sendo pertinente adentrar-se no mérito da questão, por não ser o escopo do presente trabalho, o autor escolheu o modo pelo qual o legislador brasileiro usou a palavra nas legislações mais recentes (vide Código Civil de 2002 e Estatuto das Cidades).

Utilizou-se a expressão condomínio especial, mesmo tratando o novo Código Civil o instituto pelo nome de condomínio edilício, pois aquela denominação está mais de acordo com a realidade do instituto, já que este se afigura em um condomínio de tratamento diferenciado ao comum, com natureza e características diferentes da copropriedade geral. A expressão edilícia não se mostra a mais correta, tendo a palavra como significado algo que é relativo a edil, não traduzindo o verdadeiro conceito do objeto.

Não se faz necessário perquirir apenas acerca da legislação pertinente aos dois institutos retrocitados, devendo-se, para um satisfatório deslinde da pesquisa, aprofundar-se nos objetos estudados, descobrindo suas naturezas jurídicas, fundamentos e sentido. Para tanto, baseou-se o estudo tanto em doutrina atual quanto nas lições dos preclaros juristas mais antigos, cuidando-se também da análise do entendimento dos tribunais superiores.

2.1 Da usucapião no ordenamento jurídico brasileiro contemporâneo

A usucapião é instituto jurídico bastante antigo, conhecido no Direito Romano do período republicano, sendo este modo de aquisição da propriedade disciplinado na Lei das XII Tábuas, conforme salienta Pereira (2010, p. 120). A etimologia da palavra, oriunda do latim, já indica do que se trata o objeto: capio sendo derivado de capere, que quer dizer tomar, e usu, tendo por significado pelo uso (SERPA LOPES, 1996, p. 683).

Desta forma, após longa evolução doutrinária e prática do instituto, vê-se um amadurecimento acerca do conceito nuclear da usucapião: este é um modo de aquisição da propriedade, ou outro direito real, pela posse de um bem, móvel ou imóvel, pelo tempo determinado em lei (SERPA LOPES, 1996, p. 683).

A partir do conceito fulcral da usucapião, despontam os dois requisitos essenciais ao instituto, quais sejam, a posse e o tempo. Para se compreender de forma plena o fenômeno jurídico da usucapião, necessário se faz pontuar a respeito da posse e do efeito do tempo no direito, com breves comentários acerca dessas duas temáticas, atendendo ao enfoque epistemológico deste trabalho.

A posse, conforme disciplinada no artigo 1.196 do Código Civil atual (Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002), é o exercício fático, pleno ou não, de algum poder inerente à propriedade. Nesta senda, só há posse se houver apreensão fática e/ou jurídica do bem pelo possuidor, que pode possuir de forma direta, caso haja ingerência imediata sobre o bem, exercendo o seu poder sobre a própria coisa sem intermediário, ou de modo indireto, com apreensão jurídica sobre a coisa. Salienta-se que a posse capaz de usucapir é aquela exercida de forma mansa (isto é, sem oposição) e contínua pelo tempo designado em lei, com ânimo de dono.

Ademais, o tempo é um elemento essencial ao direito, tendo em consideração que, sem ser necessária uma digressão ontológica ou filosófica e conforme é facilmente perceptível, todos os direitos tem por base existencial a transcorrência do tempo. Precisamente em se tratando dos direitos privados, há uma maior relevância do tempo nas relações jurídicas subjetivas, considerando a necessidade do contínuo fluxo do comércio jurídico e da segurança nas relações privadas.

No que tange à temática do presente trabalho, há que se notar que o tempo, evidentemente aliado às disposições legais, faz extinguir ou criar direitos. É o caso do instituto da prescrição, em relação ao fenecimento de direitos, e da usucapião, que faz surgir ao possuidor a propriedade, ou outro direito real, de uma coisa, de um lado, e, de outro, faz perecer o direito do anterior proprietário.

Aliás, muito se vem discutindo acerca das semelhanças e diferenças dos fenômenos da prescrição e da usucapião, acolhendo alguns doutrinadores o entendimento de tratar-se de institutos assemelhados, utilizando como sinônimo de usucapião a expressão prescrição aquisitiva. Para não se alongar indevidamente sobre o assunto, há que se respeitar o escólio de vários civilistas ilustres, que, mesmo havendo claras semelhanças (como se vê do art. 1.244 do Código Civil, que estende à usucapião as causas que obstam, suspendem ou interrompem a prescrição), tratam os dois institutos de forma diferenciada, sendo de má precisão terminológica o uso do termo prescrição para designação do fenômeno da aquisição da propriedade imóvel pelo uso prolongado. Tal é o posicionamento de Gomes (2004, p. 185), Pereira (2010, p. 122) e Nascimento (1992, p. 15-16), com base no ordenamento jurídico pátrio.

Discute-se ainda acerca do fundamento ético-jurídico da usucapião, tendo em consideração que tal fenômeno acarreta séria consequência: a perda da propriedade (ou outro direito real) de um bem pelo titular do direito que permaneceu inerte diante da posse alheia.

Alguns juristas encontram a fundamentação da usucapião na presunção de abandono do bem pelo titular de um direito real sobre certa coisa, que, em não exercendo qualquer posse sobre o bem, em total inércia, perderia seu direito real em favor do possuidor de longa posse. Considera-se, porém, que essa explicação afigura-se incompleta, já que da não utilização de um bem, especificamente um imóvel, não decorre necessariamente a presunção de abandono, que é conduta subjetivamente exercida. Há que se considerar, aliás, que o não uso também é forma de exercer o domínio, conforme salientam Pereira (2014, p. 200) e Nascimento (1992, p. 12), sendo, na maior parte dos casos, contrário à lógica do comportamento humano tal presunção, conforme lição de Gomes (2004, p. 187).

A par da inércia do titular do direito real, entende-se modernamente que o fundamento maior para o instituto da usucapião, de cunho eminentemente objetivo, é a utilização da coisa conforme sua função social, isto é, reconhece-se o direito de propriedade daquele que, por um longo período de tempo legalmente discriminado, exercer poder sobre o bem, trabalhando a coisa em seu interesse, reintegrando-a ao comércio econômico e jurídico. Ademais, Serpa Lopes (1996, p. 693) e Ruggiero (1999, p. 583) salientam, igualmente, que a razão primitiva do instituto é dar segurança jurídica a relações fáticas prolongadas, punindo o anterior titular do direito real de se imiscuir em situação já consolidada, promovendo a paz social.

A natureza jurídica do instituto, de igual modo, é bastante discutida desde a antiguidade clássica romana, pois sua análise perpassa pelo debate acerca de se tratar ou não a usucapião de prescrição propriamente dita.

De todo modo, o nosso direito, a partir do Código Civil de 1916, considerou a usucapião como instituto diferente da prescrição (BEVILÁQUA, 1958, p. 72), sendo, pois, modo específico de aquisição da propriedade (ou, conforme salientado até aqui, de outro direito real), sendo objeto de estudo do Direito das Coisas. Pode-se, então, resumir a natureza jurídica da usucapião, confundindo-se com seu conceito, como modo de aquisição da propriedade (ou outro direito real), pela posse e pelo decurso de tempo especificado em lei, de coisa suscetível a ser adquirida por esta via.

Ponto bastante relevante acerca da usucapião é saber se tal modo de aquisição é originário ou derivado. Por derivada se conceitua a aquisição advinda de uma relação jurídica entre o anterior titular do direito real e o novo detentor do direito, baseando-se num título, isto é, numa causa (GOMES, 2004, p. 193). Já a aquisição originária, ao contrário do que vimos anteriormente, é a aquisição do direito sem a existência de qualquer relação jurídica com o anterior titular, podendo não existir a figura deste último.

Desta forma, a doutrina pátria, em sua maioria, conclui ser a usucapião modo originário de aquisição, consoante escólio de Gomes (2004, p. 187), Farias e Rosenvald (2010, p. 274) e Scavone Jr. (2014, p. 1129), por não existir relação jurídica entre o usucapiente e o perdedor do direito real, não necessitando para existência de aquisição originária, como propugna Pereira (2014, p. 118), que o bem jamais estivesse sobre o senhorio de outrem.

Há ainda quem, como Ruggiero (1999, p. 528), classifica a usucapião como modo de aquisição intermediário, pois [...] não há uma vontade do precedente titular destinada a transferir o domínio, e nem se pode dizer que a nova propriedade adquirida pelo possuidor seja completamente independente daquela do proprietário precedente [...].

Sendo aquisição originária, tem-se como consequência primordial a completa desvinculação do direito adquirido com qualquer relação jurídica anterior, tanto em relação a antigos ônus reais, obrigações propter rem, dentro outros, quanto a direitos reais de garantia porventura existentes.

2.1.1 Legislação de regência e requisitos da usucapião

No atual ordenamento jurídico brasileiro, a usucapião de coisa imóvel é tratada em diversas leis e até na Constituição Federal de 1988, sendo disciplinada de forma mais detalhada, porém, no Código Civil de 2002, em seus artigos 1.238 a 1.244, constituindo a primeira seção do capítulo II Da Aquisição da Propriedade Imóvel, inserto no título III Da Propriedade, do livro III Do Direito das Coisas, da parte especial do código.

Para não se alongar no mero estudo literal da legislação acerca do tema, serão analisadas as espécies de usucapião de bens imóveis existentes no ordenamento pátrio.

A primeira espécie de usucapião é a denominada extraordinária, disciplinada no art. 1.238 do Código Civil (CC/2002). Este tipo de usucapião, constante do caput do retrocitado artigo, é que apresenta menos requisitos para sua consumação, havendo apenas necessidade de posse ad usucapionem, mansa e sem interrupção (como é salutar a todos os tipos de usucapião) pelo período de 15 (quinze) anos.

O caput do art. 1.238 do CC/2002 dispõe que tal usucapião independe de justo título (isto é, causa jurídica plausível de transferência do bem ao usucapiente) e de boa-fé (sendo este o requisito subjetivo atinente à inexistência de ciência de vício que possa inquinar a posse). Desta forma, mesmo sem título anterior e de má-fé, pode-se usucapir determinada coisa, considerando o grande lapso de tempo que o possuidor exerce a posse sobre o bem. No nosso direito, esta espécie é a que tem o maior requisito temporal.

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Já o parágrafo único do supracitado art. 1.238 reduz o tempo para 10 (dez) anos de posse, em caso de o possuidor ter estabelecido no imóvel a sua moradia habitual, ou nele realizado obras ou serviços de caráter produtivo.

A usucapião dita ordinária é tratada no caput do art. 1.242 do Código Civil, impondo ao possuidor o lapso de 10 (dez) anos de posse, além de justo título e boa-fé, para a aquisição do imóvel. Conforme falado acima, há necessidade de alguma causa ou razão jurídica (não necessariamente um contrato escrito) passível, ao menos em tese, de transferir o domínio do anterior titular ao atual possuidor, mas que, por alguma razão, não tenha sido passível de registro. Outrossim, não pode o usucapiente ter ciência de vício que inquine sua posse, devendo acreditar ser o legítimo dono do bem. Chamada de usucapião tabular, institui, ainda, o parágrafo único do referido artigo que ocorrerá aquisição do bem com 5 (cinco) anos de posse destinada à moradia, ou havendo investimentos no bem, no caso de o possuidor adquirir de forma onerosa, com base no registro constante do respectivo cartório, cancelado posteriormente.

Os próximos dois tipos de usucapião são chamados de constitucionais ou especiais, pois estão expressos na constituição e apresentam requisitos próprios. As usucapiões especiais urbana e rural são disciplinas, respectivamente, nos artigos 183 da Constituição Federal de 1988 (CF/88), 1.240 do CC/02 e 9º do Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257, de 11 de julho de 2001), e nos artigos 191 da CF/88, 1.239 do CC/02 e 1º da Lei nº 6.969, de 10 de dezembro de 1981. Os requisitos são, em cada caso, a posse por 5 (cinco) anos de imóvel rural de até cinquenta hectares, ou imóvel urbano de até duzentos e cinquenta metros quadrados, utilizando o bem de forma produtiva ou para moradia, em não sendo o possuidor proprietário de qualquer outro imóvel rural ou urbano.

Por fim, só haverá usucapião se o bem possuído for passível de aquisição por esta via. Desta forma, excluem-se da aquisição por usucapião os bens públicos, por força do parágrafo único do art. 191 da CF/88.

No âmbito objetivo da usucapião é que se insere, então, o problema ora estudado, indagando-se os teóricos do direito civil acerca da possibilidade de a área comum de condomínio especial ser objeto de aquisição por longa posse. Deixa-se para apreciar o referido ponto em local apropriado, mais adiante no presente trabalho.

2.2 O condomínio especial à luz da legislação pátria

Conforme já explicado nas laudas acima, utilizou-se a expressão condomínio especial como terminologia mais adequada ao instituto que o Código Civil de 2002, em seu Capítulo VII, Título III, Livro III da Parte Especial, chama de condomínio edilício. Antes de se adentrar nos aspectos normativos do tema, faz-se uma breve digressão acerca do instituto, nos moldes do item retro, analisando-se como se caracteriza a relação condominial, sua natureza jurídica, seu conceito e sua fundamentação.

Há condomínio quando duas ou mais pessoas têm a propriedade sobre uma mesmo bem. De plano, afigura-se, nesta consideração, uma aparente contradição, já que a propriedade é conceituada como o poder jurídico sobre determinada coisa de forma exclusiva, impedindo-se a ingerência de qualquer outra pessoa que não daquela titular do domínio (RUGGIERO, 1999, p. 506). Ocorre que, com a evolução da ciência jurídica, percebeu-se que tais conceitos não são excludentes, desenvolvendo-se mecanismos para harmonizar o direito de propriedade e a pluralidade subjetiva.

Desta forma, na brilhante lição de Pereira (2010, p. 151), dá-se a copropriedade [...] quando a mesma coisa pertence a mais de uma pessoa, cabendo a cada uma delas igual direito, idealmente, sobre o todo e cada uma de suas partes. Assim, há, em verdade, o proveito conjunto dos poderes e dos direitos advindos da coisa, sendo que cada um dos titulares exerce um poder jurídico sobre a coisa inteira, sem excluir o poder jurídico dos outros consortes (RIZZARDO, 2014, p. 24).

Sintetizou o ilustre civilista Serpa Lopes (1996, p. 350-351) acerca da natureza do condomínio, explicando que há um estado de indivisão em relação à coisa, recaindo o direito de cada um sobre o conjunto do bem, e não sobre cada parte, pertencendo a titularidade do direito de propriedade a uma pluralidade de sujeitos por cotas qualitativamente iguais, embora não necessariamente quantitativamente iguais. Então, aceitou o direito pátrio a doutrina da substância do direito de propriedade, em cada titular, sobre toda a coisa (MONTEIRO, Washington de Barros, 1971, p. 198-199 apud LOPES, 1990, p. 48).

Foi explicado até aqui a noção do condomínio geral, tratado atualmente no Código Civil pelos artigos 1.314 a 1.330. Passa-se ao estudo do condomínio especial, explicando, primeiramente, no que faticamente consiste. Sendo a propriedade horizontal bastante comum na sociedade contemporânea, são de fácil percepção os elementos que constituem o condomínio edilício: a propriedade exclusiva sobre uma unidade autônoma, consistente em um apartamento, loja, sobreloja, sala, garagem, dentre outros, e a copropriedade indivisível sobre as áreas comuns, isto é, o solo, a estrutura do edifício e outras partes destinadas à básica utilização da coisa.

Imperioso se faz trazer à baila o escólio da lavra de Serpa Lopes (1996, p. 392; grifo do autor), no qual conceitua o instituto do condomínio especial:

Assim, no tocante ao apartamento, apresenta-se a figura típica, clássica da propriedade individual, singular, sobre a qual o titular do direito de domínio, exerce-o em sua plenitude: plena in re potestas. Em relação, porém, àquelas coisas que estão ao serviço da destinação econômica do apartamento, indispensáveis à moradia e à sua utilização, estabelece-se um estado de comunhão, do qual devem participar todos os proprietários singulares de apartamento, tanto ativa como passivamente, isto é, tanto em relação ao direito de utilização em comum, como em relação aos ônus que daí lhes possam decorrer, respondendo pelas despesas que se tornarem necessárias à conservação dessas dependências comuns.

Nesta senda, a peculiaridade do condomínio especial reside na existência simultânea, no edifício, de propriedade particular sobre a unidade autônoma e a copropriedade das demais partes, conforme visto acima. Há, então, um complexo de direitos que formam o instituto (PEREIRA, 2010, p. 160). Ainda na explicação de Pereira (loc. cit.), existe [...] uma simbiose orgânica e indissolúvel da propriedade exclusiva sobre a unidade e a co-propriedade que incide nas partes e coisas comuns, estas não podendo ser alienadas separadamente daquelas, nem divididas [...].

Instituto perceptível, em suas premissas, já no Direito Romano imperial, conforme Pereira (2014, p. 58), vislumbrando alguns sua existência ainda mais remotamente no tempo (RIZZARDO, 2014, p. 31), o condomínio em edificação tem como fundamento para sua existência e grande utilização prática nas grandes e médias cidades modernas a vantagem de uma maior utilização do solo, que, em decorrência da grande concentração populacional nos centros urbanos, torna viável a comercialização dos imóveis e a habitação de grande número de pessoas em pequenas áreas (FRANCO, 2005, p. 15), oferecendo também maior conforto e segurança aos proprietários das unidades (LOPES, 1990, p. 16).

Para não se alongar demais na matéria, faz-se necessário apenas um breve comentário acerca da natureza jurídica do condomínio especial. Não obstante enormes elucubrações acerca da matéria, admite-se, hoje, conforme lições dos mais renomados civilistas pátrios e estrangeiros, que o condomínio especial é um instituto novo e complexo, englobando a copropriedade e a propriedade exclusiva, esta sobre a unidade autônoma e aquela sobre as áreas comuns (GOMES, 2004, p. 253; LOPES, 1990, p. 54; PEREIRA, 2010, p. 161; RUGGIERO, 1999, p. 525; SERPA LOPES, 1996, p. 401)

Em nossa legislação, o instituto é tratado pelo Código Civil, em seus artigos 1.331 a 1.358-A, substituindo o disciplinamento anterior da primeira parte da Lei nº 4.591, de 16 de dezembro de 1964.

Destarte, norma essencial ao condomínio especial é a do art. 1.331 do CC/02. Apesar de seu caput expressar, de forma errônea, o conceito de condomínio em edificações, considerando que a expressão pode haver dá a impressão de existir condomínios especiais sem a existência conjunta da propriedade exclusiva e da propriedade comum, a doutrina e a jurisprudência têm entendido de acordo com as definições insculpidas nos parágrafos supra (PEREIRA, 2010, p. 160).

Ademais, sendo de maior relevância para o presente estudo a análise da propriedade comum existente sobre certas áreas da edificação e considerando que a parte exclusiva não demanda mais observações pertinentes, passa-se ao estudo do que se denomina área comum, sendo esta exatamente o objeto da comunhão existente entre os condôminos.

Para se entender o que é área comum, deve-se ter em mente alguns dispositivos do nosso Código Civil, especialmente os seguintes: art. 1.331, § 2º, que dispõe, exemplificativamente, acerca de certas áreas comuns, como o solo (área comum por excelência), a estrutura do prédio, o telhado etc., determinando que tais partes são de utilização comum entre os condôminos e não podem ser alienadas separadamente ou divididas; art. 1.335, II, que garante o direito do condômino usar das partes comuns, conforme a sua finalidade, sob condição de não excluir a utilização dos outros comunheiros e art. 1.340, que permite a existência, no edifício, de partes comuns de uso exclusivo de algum condômino, incumbindo as despesas com estas áreas àqueles que delas se servem.

Conceituando a área comum, Rizzardo (2014, p. 97) assim expressa sua função e sua essência:

Inexiste propriedade unicamente sobre a unidade, pois esta depende de uma série de outras áreas e de componentes do prédio para viabilizar seu uso ou a fruição. A própria unidade tem sua estrutura montada em solos, muros e paredes que se destinam a todo o prédio.

Alguns elementos se podem extrair das normas descritas e das explicações doutrinárias acima: a área comum é parte da edificação objeto da copropriedade entre os condôminos, existindo para dar funcionalidade à unidade exclusiva, sem a qual o próprio edifício sequer existiria, possibilitando a finalidade econômica do bem, sendo, pois, acessória à unidade privativa (SERPA LOPES, 1994, p. 410), portanto não podendo ser alienada ou dividida separadamente ao elemento autônomo (apartamento, loja, sobreloja etc.).

Finalmente, incidindo a copropriedade dos condôminos sobre as áreas comuns, o legislador pátrio instituiu a chamada fração ideal, que corresponde a um valor decimal sobre a totalidade da área do terreno (RIZZARDO, 2014, p. 72), inserindo-se neste conceito abstrato a comunhão sobre todas as áreas comuns, sendo expressa como uma porcentagem sobre o solo, correspondendo esta fração a cada unidade autônoma.

Ante o exposto, tendo se debruçado acerca dos institutos fundamentais ao estudo do problema, passa-se ao cerne da questão.

3 A PROBLEMÁTICA RELATIVA À USUCAPIÃO EM ÁREA COMUM DE CONDOMÍNIO ESPECIAL

O estudo dos dois institutos anteriormente explanados culmina na presente análise acerca da problemática concernente à possibilidade de aquisição por usucapião de áreas comuns de condomínio especial por condômino, considerando a legislação vigente no País, a doutrina especializada e a jurisprudência dos tribunais superiores.

O escopo do presente trabalho é aferir a possibilidade jurídica de tal fenômeno, cotejando-se as normas pertinentes aos dois institutos, considerando a natureza jurídica, o conceito e o fundamento da usucapião e do condomínio especial, tendo ainda por fundamento o posicionamento dos tribunais superiores.

A questão aqui debatida vem, ao longo dos anos, aparecendo de forma mais acentuada nos tribunais brasileiros, conforme se foi aumentando a crise habitacional no País, aumentando-se, nas grandes áreas urbanas, cada vez mais, o número de condomínios em edificações (FRANCO, 2005, p. 15). Averigua-se, também, que existem poucos estudos sistemáticos acerca do assunto ora abordado, como igualmente se observa certa desuniformidade no julgamento de casos práticos pelas cortes superiores.

Desta sorte, dá-se ao presente estudo a função precípua de averiguar a fundo o assunto para uma melhor análise doutrinária do tema, promovendo o aumento da base material para pesquisa sobre o objeto aqui discutido, auxiliando os juristas no encontro de uma solução para o problema e, por conseguinte, ajudando a possibilitar uma maior harmonia das decisões nos tribunais.

3.1 Aspectos teóricos e legislativos acerca do problema

O presente problema já foi assim definido por Farias e Rosenvald (2010, p. 284): [...] questão das mais interessantes. Pode um dos condôminos usucapir contra os demais comproprietários?. Igualmente, Pereira (2014, p. 109) qualifica a questão de problema interessante.

Para não se perder em longas digressões abstratas, parte-se para a exposição de vários pontos que tornam possível a solução do problema.

Primeiramente, insta verificar acerca da inalienabilidade e indivisibilidade estabelecida para as áreas comuns dos condomínios especiais pelo art. 1.331, § 2º, in fine do Código Civil. Conforme visto no tópico pretérito, a própria natureza dos condomínios especiais, e suas partes comuns, impossibilitam que certas áreas do imóvel sejam alienadas ou divididas separadamente da unidade autônoma, já que tais partes é que dão funcionalidade ao próprio edifício. Do contrário, em caso de alienação da parte comum em separado, se teria a total desestruturação orgânica e econômica do edifício, embaraçando sua existência.

Então, vê-se que a inalienabilidade das áreas comuns decorre não só da lei, mas da própria natureza jurídica do instituto. Desta maneira, mostra ser tal característica um obstáculo à usucapião, já que impossibilitaria a aquisição da área comum separadamente à unidade autônoma a ela vinculada, sendo, pois, isoladamente, considerado um bem fora do comércio (FRANCO, 2005, p. 366).

Em relação ao ponto acima, deve-se considerar que não é em todos os casos de inalienabilidade que se obstaculiza a aquisição por usucapião, como salienta o preclaro civilista Beviláqua (1958, p. 74), pois um terceiro não está vinculado às disposições contratuais referentes à inalienabilidade de um bem, tendo em consideração que a aquisição por usucapião é originária, isto é, não tem qualquer vinculação à relação jurídica anterior (SERPA LOPES, 1996, p. 694).

No entanto, conforme ressaltara o civilista Serpa Lopes (loc. cit.), essa possibilidade de aquisição só ocorre em caso de inalienabilidade advinda das relações privadas. No caso da área comum, a inalienabilidade e a indivisibilidade advêm da lei e da própria natureza do instituto do condomínio especial, conforme disciplinado em nosso ordenamento jurídico, além de que o condômino não é considerado terceiro em relação aos outros condôminos e em relação ao condomínio, pois mantém relações jurídicas diretas com estes últimos, mesmo que institucionais.

Neste sentido é o entendimento do renomado civilista Pereira (2014, p. 109-110), que rechaça a possibilidade de usucapião de área comum, argumentando ser a parte comum da essência do edifício, sendo vedada por lei a alienação e, portanto, a usucapião de tais partes, sob pena de se desfigurar e inutilizar o próprio condomínio especial:

Sendo o proprietário de apartamento um comunheiro das partes do edifício não constitutivas da propriedade exclusiva de cada um, por mais que dure a ocupação exclusiva, jamais se converterá em domínio daquele que dela se assenhoreou a parte comum do edifício.

Acresce que a comunhão sobre tais partes do edifício de apartamento é da essência mesma da propriedade horizontal, como se lê no art. 3.º da lei.

[...]

As partes comuns são inalienáveis, porém no sentido que expusemos, a saber que não pode o proprietário de unidade autônoma dissociar dela a sua situação de condômino do terreno e partes comuns.

Da mesma forma, Farias e Rosenvald (2010, p. 284) são claros em discorrer acerca da inviabilidade de usucapião das partes em comunhão, já que da essência do condomínio: A vedação à posse sobre áreas comuns é da essência do instituto, conforme se depreende dos termos do art. 3º da Lei nº 4.591/1964 [correspondente ao art. 1.331 do Código Civil de 2002].

Esclarece Rizzardo (2014, p. 107), de forma arguta, asseverando o impedimento para a aquisição por usucapião de parte comum, que a lei deu destinação específica para tais áreas, tornando-as imprescritíveis, independentemente do período de ocupação do condômino.

Ademais, outro forte argumento levantado pela doutrina especializada, é a existência de composse perpétua enquanto durar o direito real do coproprietário sobre a unidade autônoma de todos os condôminos sobre a área comum, gerando a impraticabilidade de ocorrência de posse exclusiva por um condômino sobre parte comum, impedindo a transcorrência do prazo para aquisição. De magistral precisão é o excerto colacionado por Serpa Lopes (1996, p. 696), retirado de um acórdão de 1943 do Tribunal de Apelação do Rio Grande do Norte, todavia ainda válido em nossos dias: O condomínio exclui usucapião de um condômino contra o outro, pois a posse de um neutraliza a do outro.

Desta forma, há de se considerar que as partes comuns estão em comunhão em relação a todos os condôminos, enquanto perdurar o condomínio especial, considerando que a posse da unidade autônoma está ligada à posse da área comum, esta seguindo o bem principal no sentido de dar funcionalidade à propriedade exclusiva do condômino, isto é, a ocupação e a utilização da unidade autônoma e da área comum em condomínio especial se fazem de forma orgânica, sendo a área comum e a unidade dois aspectos de um mesmo objeto.

Reforçando o acima dito, preleciona Pereira (2014, p. 109): O proprietário do apartamento é condômino por quota ideal do terreno e das partes comuns do edifício.. Da mesma maneira ensina Haim (2010, p. 56; grifo nosso): Condômino que usa de área comum não detém posse exclusiva própria, pois encontra-se em relação de dependência com os demais comunheiros..

A regulamentação das partes comuns pelo Código Civil corrobora esse ponto de vista, como se vê do inciso II do art. 1.335 do Código Civil, já que há expressa proibição ao coproprietário de efetuar qualquer tentativa de excluir os demais condôminos da utilização das partes comuns, tratando estes com a terminologia esclarecedora de compossuidores. São estes permanentes comunheiros das áreas comuns, por disposição legal e pela situação de proprietários das unidades autônomas (FARIAS e ROSELVAND, 2010, p. 284).

Sobre este argumento, corrobora Lopes (1990, p. 130; grifo do autor), em estudo monográfico sobre o condomínio especial, que não perdeu a atualidade:

Como vemos, a lei veda a utilização exclusiva das partes comuns, de modo que o condômino que, v.g., ocupar parte de um corredor para ali instalar uma lavanderia ou um depósito de materiais estará entrando em conflito aberto com a norma proibitiva mencionada.

Como corolário dessa afirmação, incivil seria premiar com o usucapião o condômino que revelou desprezo pelo diploma legal a que devem obediência todos os que vivem no universo do condomínio.

Portanto, há, realmente, em certas situações de utilização da parte comum por somente um condômino, cotejando-se o que fora apresentado até agora, mera tolerância ou permissão pelos demais coproprietários, sendo que estes atos não induzem posse, por força do art. 1.208 do Código Civil, não tendo o condão de gerar a aquisição por usucapião. Este é o entendimento de Farias e Rosenvald (2010, p. 284; grifo do autor):

Já nos condomínios horizontais (edifícios), o uso da coisa comum ainda que de forma exclusiva, não gera a posse ad usucapionem. Presume-se que os atos de ocupação decorrem de mera tolerância dos demais condôminos, gerando somente detenção (art. 1.208 do CC).

Não havendo viabilidade de posse propriamente exclusiva de condômino em área comum, não há que se falar em usucapião. Conforme se viu acima, situação de posse exclusiva em relação à parte comum não há tanto pela determinação legal, impossibilitando a apreensão exclusiva de tal espaço, quanto pela ocorrência de composse e comunhão dos coproprietários das unidades sobre as áreas coletivas, fundamentais para a própria essência jurídica e econômica do condomínio especial.

Continuando, Serpa Lopes (1996, p. 362) também argumenta a impossibilidade de existência de posse exclusiva, além de verificar a impraticabilidade de posse ad usucapionem do condômino em relação às áreas comuns, pois o próprio título do condômino traz em si contrariedade à pretensão.

Conforme se viu no tópico específico acerca da usucapião, só há aquisição por este modo, havendo posse com caráter dominial sobre a coisa, isto é, só haverá usucapião se o possuidor apreender a coisa com ânimo de dono. É somente essa posse ad usucapionem que faz surgir o direito de aquisição pelo tempo. Sem tal característica, não obstante o tempo de apreensão da coisa, não se verificará a usucapião.

Sendo assim, possuindo as áreas comuns o condômino com base em título de propriedade que origina a comunhão sobre tais partes, não pode alegar desconhecer esta condição que o impede, legalmente, de excluir os outros condôminos da posse e utilização das partes comuns (RUGGIERO, 1999, p. 585). Importante trazer referida lição do ilustrado civilista Serpa Lopes (1996, p. 362-363; grifo nosso) em sua íntegra, corroborando com o ponto aqui desenvolvido:

Ora, é bem de ver que o exercício da posse por um condômino é considerado sempre em função do condomínio, ou ainda, é reputado como ciente de que o seu próprio título lhe fala alto contra qualquer situação contrária à da composse por ele exercida de comum com os demais condôminos. Ora, se o usucapião, qualquer que ele seja, ordinário ou extraordinário, pressupõe uma posse capaz de gerá-lo, isto é, uma posse ad usucapionem, na qual se presume ter o possuidor uma relação possessória exclusiva, com presunção de boa-fé, tal situação jamais pode ocorrer em relação ao condômino, desde que o seu próprio título estaria em brado constante contra ele, permanentemente advertindo-o de uma relação possessória inerente a um condomínio, do qual se faz parte subjetivamente, como um dos seus cotitulares.

Lembram alguns (FRANCO, 2005, p. 367), de forma contrária ao entendimento acima, que a mudança de disciplina do Código Civil atual acerca do condomínio especial possibilitou o uso exclusivo de partes comuns a um, ou mais, condômino apenas, nos termos do art. 1.340 do CC/02.

Em verdade, essa disposição legal apenas viabilizou certas privatizações de áreas comuns não indispensáveis ao funcionamento e utilização do edifício (excluindo, deste modo, aquelas constantes do § 2º do art. 1.331 do CC/02), somente se permitindo tal afetação a um condômino mediante aprovação em assembleia geral (PEREIRA, 2010, p. 167), com quórum unânime (FRANCO, 2005, p. 230), ou havendo destinação específica nos assentos de instituição do condomínio (nos termos do § 5º do art. 1.331 do CC/02).

Salienta-se que o supracitado art. 1.340 do CC/02 veio, com efeito, solucionar questão problemática em relação à disciplina da Lei nº 4.591/1964, já que expressamente obriga o condômino possuidor de área comum, sob autorização dos demais, ao pagamento de todas as despesas decorrentes dessa parte comum ocupada, sendo a legislação anterior omissa nesse direcionamento da despesa ao real utilizador.

Mesmo havendo afetação de alguma área comum ao uso somente de certo condômino, permanecem todos os pontos acima discorridos, pois não haverá possibilidade de o condômino agraciado alegar usucapião, já que perseveram as objeções quanto à inexistência de posse com animus domini, havendo tão só posse precária sobre a parte comum, quanto à ocorrência de mera tolerância em relação à utilização pelo coproprietário e quanto à inalienabilidade da coisa separadamente à unidade autônoma (PEREIRA, 2010, p. 167).

Concluindo-se pela impossibilidade teórica de aquisição por usucapião, por condômino, de área comum em condomínio especial, há de se solucionar certas circunstâncias da vida forense, que trazem aspectos peculiares, que urgem serem resguardadas pelo ordenamento jurídico. É o caso de a utilização, por um coproprietário, ao longo de décadas, de parte comum de edifício, sem que haja qualquer intervenção dos demais comunheiros, existindo, em verdade, total inércia dos interessados, ou acatamento expresso por parte destes.

Deve-se considerar, nessas situações extremas, a aplicação de instituto correlato à usucapião: a supressio. Este instituto se origina do emprego do princípio da boa-fé objetiva, tendo aplicação direta em relação aos casos acima descritos, impedindo-se a insurgência dos coproprietários em dissolver situação já consolidada no tempo, muitas vezes por décadas, de condômino que constrói ou se utiliza de área comum com a inércia dos demais (FARIAS e ROSENVALD, 2010, p. 284-285).

Conforme lição de Luiz Rodrigues Wambier (2012 apud FOSENCA e BUGALHO), o instituto faz parte do [...] conjunto de fenômenos que compõem a cláusula da boa-fé objetiva, se expressa na impossibilidade do exercício de direitos ou prerrogativas contratuais em decorrência do transcurso do tempo associado à boa-fé..

Desta maneira, o condômino que possuiu certa área comum por um período de tempo considerável, não pode ser tolhido na sua ocupação pelos outros coproprietários de maneira abrupta após grande inércia destes, sendo prestigiados aqui os deveres conexos à boa-fé objetiva, como a vedação ao comportamento contraditório e a legítima confiança e expectativa do possuidor. Em relação ao tempo, de acordo com lição de Anderson Schreiber (apud FARIAS e ROSENVALD, 2010, p. 284), os lapsos temporais para caracterização da supressio [...] são altamente variáveis, oscilando de acordo com as circunstâncias concretas.. Deve-se, porém, utilizar a razoabilidade e a analogia, considerando-se, para sua configuração, o lapso legal da usucapião extraordinária, isto é, 15 (quinze) anos.

No entanto, a supressio não acarreta na aquisição de propriedade ao ocupante da área comum, preservando, com efeito, apenas uma relação de caráter pessoal entre o condômino possuidor e os demais interessados, sendo evidente que, havendo alienação ou sucessão do direito real sobre a unidade autônoma daquele possuidor a outra pessoa, extinguir-se-á o direito de ocupação da parte comum.

Por fim, deve-se mencionar que alguns autores vislumbram a possibilidade de usucapião de área comum, mas apenas nas seguintes condições: havendo manifesta exclusividade na posse do condômino usucapiente, contra todos os demais coproprietários e com evidente ânimo de exclusividade e sendo a parte comum possuída não essencial ao edifício, de utilidade apenas ao próprio possuidor (excluindo-se, então, os itens descritos no § 2º do art. 1.331 do CC/02). Não se concorda com este posicionamento, já que ainda há óbices para a usucapião, como a inalienabilidade das áreas comuns e a comunhão perpétua destas partes advindas do próprio título condominial. Conforme é evidente, a única espécie de usucapião possível, no presente caso, é a extraordinária, pois prescinde da boa-fé e do justo título, além da impossibilidade de se preencher os requisitos dos tipos especiais de usucapião.

3.2 Da análise jurisprudencial da questão

Como forma de se conhecer o problema em sua forma empírica, prática, deve-se analisar a jurisprudência pátria para se concluir como os mandamentos textuais legislativos são efetivamente aplicados nos casos reais.

Reveste-se o estudo jurisprudencial de grande importância nas análises dos problemas jurídicos modernos, tendo em consideração que o nosso sistema processual cada vez mais caminha para uma maior valorização das súmulas e dos entendimentos dos tribunais superiores, num sistema de precedentes, servindo estes como fundamento essencial às decisões dos juízos de todas as instâncias.

Considerando os poucos exemplos existentes no Supremo Tribunal Federal e no Superior Tribunal de Justiça acerca do assunto, analisar-se-ão julgados dos tribunais superiores de segunda instância dos estados ou regiões do Brasil, com ênfase nas decisões mais atuais, objetivando a investigação coletiva dos julgados em suas linhas fundamentais, dando enfoque aos excertos mais importantes.

O entendimento dos tribunais pátrios, antes do Código Civil de 2002 e na vigência da Lei nº 4.591/1964, era bastante uniforme acerca da problemática, registrando a total impossibilidade de usucapião das áreas comuns em condomínio especial por condômino, conforme ilustram os seguintes exemplos: [...] não sendo exclusiva a posse do condômino, ela não é apta a gerar a propriedade pelo usucapião. (Tribunal de Justiça de São Paulo, RT 449/248 apud LOPES, 1990, p. 128), [...] em relação ao condomínio edilício, não se admite a usucapião das partes comuns, haja vista serem da essência para sua existência como tal [...] (Tribunal de Justiça de São Paulo apud PEREIRA, 2014, p. 110) e, ainda, A ideia dominante, na jurisprudência, é a de repelir-se o usucapião na coisa possuída em comum, por ser a pretensão viciada de precariedade. (Tribunal de Justiça de São Paulo, RT, v. 79, p. 114-115 apud SERPA LOPES, 1996, p. 696).

O posicionamento acima é ainda mantido em larga escala pelos tribunais, sendo o entendimento dominante, também após a vigência do Código Civil de 2002, não obstante haver julgados em sentido contrário.

Como exemplos que ilustram o entendimento pela impossibilidade de usucapião, podemos citar algumas ementas de acórdãos:

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE NÃO FAZER. ESTACIONAMENTO DE VEÍCULO EM ÁREA COMUM DO CONDOMÍNIO. DESRESPEITO A DELIBERAÇÃO TOMADA EM ASSEMBLÉIA CONDOMINIAL. ALEGAÇÃO DE USUCAPIÃO. IMPOSSIBILIDADE. OCUPAÇÃO EXCLUSIVA QUE NÃO INDUZ POSSE. ATO DE MERA TOLERÂNCIA. INTELIGÊNCIA DO ART. 1028, DO CÓDIGO CIVIL. PRECEDENTES. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS MANTIDOS. RECURSO DESPROVIDO. A ocupação exclusiva em área comum do condomínio jamais se converte em domínio eis que se trata de ato de mera tolerância que não induz posse, e, desse modo, não pode ser objeto de usucapião. (BRASIL, 2011; grifo nosso)

Possessória - Interdito proibitório - Uso e gozo exclusivo de área comum destinada a vaga de garagem em condomínio edilício - Impossibilidade - Área comum de condomínio que não pode ser utilizada privativamente, nem vendida separadamente ou dividida - Impossibilidade de ser negado direito aos demais condôminos ao uso de área comum - Ato de tolerância do condomínio e demais condôminos permitindo a utilização da referida área por longa data, que não induz a posse - Inteligência dos artigos 1,199, 1,208, 1.331, § 2o, 1.335 do Código Civil - Multa - Imposição - Descabimento Ausência de prova da efetiva ocorrência de infração - Ônus do qual o réu não se desincumbiu, nos termos do artigo 333, II do Código de Processo Civil - Sucumbência - Reciprocidade - Aplicação do artigo 21, caput do Código de Processo Civil Ação parcialmente procedente - Apelação provida em parte. (BRASIL, 2009; grifo nosso)

POSSESSÓRIA - Ação de manutenção de posse - Pretensão de manutenção da posse de área comum, utilizada por um condômino, por longa data - Condomínio edilício - Ainda que por longa data, o autor se utilizou de área comum, não alienável e, portanto, não adquirível Art. 1.331, § 2º, CC c/c 1.208, CC Ação improcedente - Recurso não provido. (BRASIL, 2008; grifo nosso)

Poder-se-ia colacionar excertos de vários outros julgados, mas, em prol da brevidade do presente trabalho, satisfaz o ponto aqui analisado as ementas acima expostas. Remete-se o leitor ao trabalho monográfico, acerca da problemática aqui estuda, de Haim (2010, p. 43-47), citando outros 6 (seis) acórdãos de tribunais pátrios, no sentido da impossibilidade de usucapião de área comum.

Ademais, necessário citar entendimento jurisprudencial acerca da possibilidade de configuração da supressio em situações excepcionais, conforme analisado no tópico anterior. Decisão basilar desse posicionamento é da lavra do Ministro Relator Ruy Rosado de Aguiar, do Superior Tribunal de Justiça, no Recurso Especial nº 214.680 SP, consolidando a situação de um condômino que há mais de vinte anos ocupava com exclusividade parte comum não essencial do condomínio (BRASIL, 1999).

No mesmo sentido, aplicando-se a supressio: acórdão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro no AI nº 14.680, julgado em 29/02/1999, citado em Franco (2005, p. 222-223); acórdão do STJ em Recurso Especial nº 356821/RJ, relatoria da Min. Nancy Andrighi, após uso exclusivo por 30 (trinta) anos da área comum não essencial ao edifício, e acórdão do Tribunal de Justiça de Goiás (BRASIL, 2007), em situação de posse há mais de 15 (quinze) anos sobre parte não essencial, ocorrendo utilização somente do condômino possuidor.

4 CONCLUSÃO

Tendo se analisado as premissas fundamentais da questão, quais sejam, os institutos da usucapião e do condomínio especial, chega-se a solução da problemática, tendo por base a doutrina especializada e a jurisprudência dos tribunais superiores.

Viu-se que a usucapião é espécie de aquisição originária da propriedade (e de outros direitos reais), tendo como requisitos a posse mansa, contínua, exclusiva e com ânimo de dono, além do tempo disciplinado em lei.

Já o condomínio especial é instituto sui generis, formado pela junção orgânica dos direitos de propriedade exclusiva sobre uma unidade autônoma e a comunhão sobre as áreas comuns do edifício. Estas áreas são partes que dão utilidade e funcionalidade ao edifício, sem as quais o condomínio não pode existir como tal. Ademais, prescreve a lei a inalienabilidade das partes comuns separadamente à unidade autônoma.

Deste modo, com base em obras de ilustres civilistas pátrios, em monografias sobre o tema e na jurisprudência dos tribunais superiores, concluiu-se pela impossibilidade de usucapião, por condômino, de área comum em condomínio especial, já que as partes comuns são inalienáveis de sua unidade autônoma correspondente, conforme preceito legal, além de as áreas comuns serem essenciais para a existência e para a utilização econômica do próprio edifício, dando utilidade às unidades autônomas.

Além disso, há composse permanente de todos os coproprietários sobre as partes comuns, considerando que a utilização da unidade autônoma encerra necessariamente a comunhão das áreas comuns. Por isso, qualquer posse aparentemente exclusiva há de ser tomada como ocupação meramente tolerada ou permitida, não induzindo posse. Por fim, considera-se impraticável o ânimo de domínio que possa ensejar a usucapião, pois o próprio título do possuidor brada contra a exclusividade de sua posse.

Pode-se observar, tanto na doutrina quanto na jurisprudência, em casos excepcionais, em que haja posse contra todos os demais condôminos por um lapso de tempo prolongado (igual ou maior que o prazo de quinze anos da usucapião extraordinária), a aceitação de aplicação de instituto paralelo, atinente ao direito obrigacional e ao princípio da boa-fé objetiva: a supressio.

Ocorrendo a total inércia de todos os interessados, perdurando a situação por longo tempo, é razoável considerar tal condição fática como estável, impedindo-se as investidas contra a posse do condômino ocupante da área comum. Deve-se ressaltar, no entanto, que só haverá aplicação da supressio nos casos de a parte comum ocupada não ser essencial ao edifício. Salienta-se, também, que a consequência jurídica da supressio não guarda identidade com a usucapião, já que não há aquisição da propriedade, não transmitindo a situação de estabilidade fática ao sucessor, a qualquer título, do condômino ocupante, que perderá o direito de ocupar a área.

Por fim, salutar é a lição de Rizzardo (2014, p. 107-108), propugnando pela injuridicidade da aquisição por usucapião de área comum de condomínio especial, posição da qual se corroborou neste trabalho, alertando acerca do posicionamento temerário de se permitir tal fenômeno: Abrir-se-ia uma porta para descaracterizar o próprio condomínio edilício, inviabilizando, inclusive, a sua existência. Não será o fato da ausência de participação no uso que importará em reconhecimento do domínio.

Sobre o autor
Leon Simões de Mello

Advogado, atuante nas áreas de direito societário e direito contratual, graduado em Direito pela Universidade Federal do Ceará, especialista em Direito Imobiliário pela Escola Superior da Advocacia do Ceará, LL.M. Business Law e Gestão na Universidade de Fortaleza e mestrando em Direito pela Universidade Federal do Ceará (em curso).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MELLO, Leon Simões. Da possibilidade de usucapião por condômino de área comum em condomínio especial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6796, 8 fev. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/96138. Acesso em: 22 nov. 2024.

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