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Pandemias e órfãos da covid

Agenda 31/01/2022 às 13:45

Não se sabe quando a pandemia covid-19 vai acabar. As vacinações das crianças já começaram nos estados, mas até agora, nenhuma notícia acerca de aprovação de projeto de lei que fornecesse auxílio para os órfãos da Covid.

L'Orphelin, August Friedrich Schenck, 1885.

Tudo o que você foi, tudo o que você viu,

Perdido em algum lugar em seus sonhos (Iron Maiden - Hell On Earth)


No livro Medo Líquido, Bauman[1] menciona que "a humanidade tem agora todas as armas para cometer o suicídio coletivo, seja por vontade própria ou falha - para aniquilar a si mesma, levando o resto do planeta à perdição".

Graças à degradação ambiental, pandemias serão cada vez mais comuns. Segundo a ONU, sem ações, o mundo continuará experimentando surtos de doenças zoonóticas, que são aquelas transmitidas de animais para humanos[2].

A Covid-19, segundo as evidências científicas mais aceitas até o momento, teria se originado da contaminação por morcegos, contudo, outras zoonoses também possuem contaminação a partir de animais, como é o caso do ebola e aids.

Segundo relatório confeccionado pela ONU, existem tendências que levam ao aumento dessas doenças zoonóticas e dentre elas se encontram o crescimento de agricultura insustentável, forte demanda por proteína animal, queimadas de florestas para criação de gado, que fazem com que os animais, ao fugirem dos incêndios, invadam espaços frequentados por humanos, levando consigo todo o tipo de patógenos existentes no meio em que viviam.

Não obstante, o aquecimento global, exploração da vida selvagem e extração de recursos naturais também são problemas a serem resolvidos.

A ciência está mandando um aviso claro de que se continuarmos explorando a vida selvagem e destruindo os ecossistemas, como viemos fazendo por anos, podemos esperar um fluxo constante de doenças transmitidas de animais para seres humanos nas próximas décadas.

Bauman, sobre isso, vai dizer:

Ocupada em resolver sucessivos problemas, particularmente acarretados pelo último ou penúltimo esforço de solução, a civilização moderna não tem tempo nem estímulo interno para refletir sobre a escuridão no fim do túnel. Está sujeita a desastres que regularmente pegam de surpresa as pessoas envolvidas, concreta ou potencialmente, na luta para solucionar problemas. A forma como enfrenta esses desastres segue a regra de trancar o estábulo depois que o cavalo fugiu e provavelmente já está muito longe para ser alcançado. E o espírito inquieto da modernização garante a existência de um número sempre crescente, já que automultiplicador, de portas a serem trancadas[3].

Na data de 08 de outubro de 2021, salta aos olhos levantamento obtido pela Arpen - Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais, entidade que representa os Cartórios de Registro Civil do Brasil, de que pelo menos 12.211 crianças com até 6 anos de idade perderam o pai ou mãe para COVID-19[4].

Entretanto, o número pode ser maior porque nem todos os estados aderiram ao sistema de inclusão de CPF´s dos pais nas certidões de nascimento dos recém-nascidos.

Reportagem da BBC aponta que estudo contabilizou mortes de 21 países, indicando que globalmente, de 1 março de 2020 até 30 de abril de 2021, cerca de 1.134.000 experimentaram a perda de pelo menos um cuidador, sejam eles pais ou avós[5].

A matéria indica como crianças que perdem seus cuidadores sofrem problemas mentais, emocionais, pobreza familiar e violência sexual, tendo em vista que essas experiências hostis elevam riscos de suicídio, gravidez na adolescência, doenças crônicas e sexualmente transmissíveis, como HIV.

A Unicef também publicou em seu site declaração de sua diretora executiva, Henrietta Fore, de 19 de julho de 2021, argumentando que as mortes por COVID-19 ultrapassam 4 milhões e aumentam as preocupações acerca do bem-estar das crianças, sobretudo as que foram deixadas sem um ou ambos os pais, que acabam sendo acolhidas por instituições que as isolam de suas famílias e comunidades, as deixando vulneráveis a todos tipos de abuso[6].

Diversos estudiosos afirmam que a pandemia Covid-19 não será a última pandemia do século XXI e a situação vivenciada serviu para demonstrar que a proteção social de um país é questão de justiça, segurança e redução de desigualdades.

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A pandemia expôs as falhas do governo em lidar com políticas públicas voltadas para grupos vulneráveis, atendimento de emergência para famílias de baixa renda, que vivem em comunidades afastadas, sejam eles pretos, pardos ou indígenas, bem como inexistência de apoio financeiro que pudesse garantir o sustento de famílias afetadas com a perda de seus empregos ou fechamento de seus comércios.

Ao longo dos séculos, as pandemias fizeram com que sistemas de saúde mundiais fossem repensados, assim como melhores práticas de higiene e saneamento básico que ainda, inexistem em comunidades pobres, que não fazem parte de uma rede inclusiva de políticas públicas.

Matéria publicada pela National Catholic Reporter[7] indica que no Brasil, mais de 130 mil crianças ficaram órfãs durante a pandemia, tendo em vista a perda de parentes ou cuidadores, tais como avós. Reportagem atesta que o país é o segundo com maior quantidade de órfãos, perdendo apenas para o México, com 141.000.

Forçoso reconhecer que o Brasil oferece uma rede precária de acolhimento dessas crianças, com abrigos custeados pelos Estados e Munícipios, no entanto, enviar essas crianças já traumatizadas pela perda de pais/mães e/ou responsáveis para abrigos não pode ser considerado nada saudável para o psicológico de qualquer criança.

Os procedimentos de adoção no país são extremamente burocráticos e por vezes custoso, o que leva aos possíveis interessados em adoção a procurarem outros países.

Inconteste que uma rede de apoio e o financiamento dessas crianças que perderam seus familiares é de extrema importância, assim como políticas públicas que sejam voltadas para as crianças que foram encaminhadas para abrigos.

Os abrigos se incumbem de serem responsáveis por essas crianças até os 18 anos, contudo, não há garantias de que aos 18 anos essas crianças poderão se sustentar sozinhas, sem o apoio financeiro do Estado, principalmente quando não há acompanhamento psicológico que trate traumas de infância, assim como uma maior segurança dentro dessas instituições, de forma a evitar abusos sexuais e/ou psicológicos por parte de quem deveria zelar por essas crianças.

A esmagadora maioria dos órfãos da Covid são provenientes de famílias pobres e que sem assistência alguma do governo, estarão expostas à criminalidade e a todo tipo de abuso e violência.

Existe o Projeto de Lei 1305/21 que determina que o Fundo Nacional de Assistência Social (FNAS) destinará pensão individual e mensal no valor de um salário-mínimo a crianças e adolescentes que tenham ficado órfãos de pai e mãe em razão da Covid-19. O benefício seria pago até que atinjam a idade de 18 anos completos.

Mas ainda, em início de 2022, não se mencionou nenhum tipo de aprovação do projeto assistencial sequer voltado para essas crianças e famílias afetadas, o que torna o futuro do país sombrio, tendo em vista que são essas crianças afetadas, que se tornarão, amanhã, os adultos de hoje.


  1. BAUMAN, Zygmunt. Medo Líquido. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006, p.96.
  2. Sem ações, mundo continuará experimentando surtos de doenças zoonóticas. Portal ONU, 6/07/2020, Seção Saúde. Disponível em: <https://news.un.org/pt/story/2020/07/1719191> Acesso em 01 de novembro de 2021.
  3. BAUMAN, Zygmunt. Medo Líquido. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006, p.101.
  4. Órfãos da Covid: pelo menos 12.211 crianças perderam o pai ou a mãe para Covid. Globoplay. 08/10/2021, Seção Jornal Hoje. Disponível em: <https://globoplay.globo.com/v/9930964/> Acesso em 14 de outubro de 2021.
  5. FOX, Maggie. Study estimates 1.5 million children lost parents or grandparents to Covid-19. Portal CNN, 20/07/21, Seção Health. Disponível em: <https://edition.cnn.com/2021/07/20/health/covid-orphans-lancet/index.html> Acesso em 14 de outubro de 2021.
  6. Statement by UNICEF Executive Director Henrietta Fore on children deprived of parental care due to COVID-19. Portal Unicef, Nova Iorque, 17/07/2021, Seção Statement. Disponível em: <https://www.unicef.org/press-releases/statement-unicef-executive-director-henrietta-fore-children-deprived-parental-care> Acesso em 14 de outubro de 2021.
  7. LIMA, Eduardo de Campos. As Brazil struggles to care for COVID-19 orphans, church agencies try to help. National Catholic Reporter. 15/09/2021. Disponível em: < https://www.ncronline.org/news/coronavirus/brazil-struggles-care-covid-19-orphans-church-agencies-try-help> Acesso em 01 de novembro de 2021.
Sobre a autora
Ana Carolina Rosalino Garcia

Advogada graduada em Direito pela Universidade Paulista (2008). Membro da Ordem dos Advogados do Brasil, Secção São Paulo desde 2009. Pós-graduada em Direito Civil e Processo Civil pela Escola Paulista de Direito (EPD). Possui MBA em Administração de Empresas com Ênfase em Gestão pela Fundação Getúlio Vargas - FGV / EAESP - Escola de Administração de Empresas de São Paulo. Pós-graduada em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GARCIA, Ana Carolina Rosalino. Pandemias e órfãos da covid. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6788, 31 jan. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/96176. Acesso em: 23 nov. 2024.

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