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A dogmática jurídica e a indispensável mediação

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Agenda 18/03/2007 às 00:00

4 - A Mediação e a Transdisciplinaridade.

A Mediação é uma forma de autocomposição dos conflitos, com o auxílio de um terceiro imparcial, que nada decide, mas apenas auxilia as partes na busca de uma solução.

Trata-se de um verdadeiro não-poder. O mediador diferentemente do Juiz, não dá sentença; diferentemente do árbitro não decide; diferentemente do conciliador não sugere soluções para o conflito. O mediador fica no meio, não está nem de um lado e nem de outro, não adere a nenhuma das partes. É um terceiro mesmo, uma terceira parte, quebrando o sistema binário do conflito jurídico tradicional. Busca livremente soluções, que podem mesmo não estar delimitadas pelo conflito, que podem ser criadas pelas partes, a partir de suas diferenças. Não é apenas o lado objetivo do conflito que é analisado na mediação, mas também, e, sobretudo, o lado subjetivo. Essa é uma das bases da Mediação: trabalhar a subjetividade do conflito, o lado oculto que todo conflito apresenta, o não verbal, o que se esconde no conteúdo latente do conflito, que, frequentemente, é diferente do conteúdo manifesto do conflito. A Mediação procura ir além das aparências explícitas, investigando os pressupostos implícitos do conflito. Muitas vezes, pode ser o aspecto legal o mais relevante fator a ser analisado, mas nem sempre isso acontece. O sistema de Mediação é aberto a qualquer aspecto que possa estar causando o conflito. O lado emocional e sensorial é extremamente importante na Mediação: "Não é possível abordar um processo de mediação por meio de conceitos empíricos, empregando a linguagem da racionalidade lógica. A mediação é um processo do coração; o conflito precisamos senti-lo ao invés de pensar nele; precisamos, em termos de conflito sê-lo para conhecê-lo... Os conflitos reais, profundos, vitais, encontram-se no coração, no interior das pessoas. Por isto é preciso procurar acordos interiorizados."(Warat, 2001, 35).

Na Mediação é essencial a percepção do conflito como um todo, para que as partes sintam e respeitem suas diferenças. O sistema jurídico positivo procura mais estabelecer a uniformidade, eliminar os desvios, penalizar os culpados, obter a normalidade comportamental. A Mediação trabalha, também, com o potencial transformador dos desvios para integrá-los na formulação de uma nova solução.

A Mediação encara o poder emancipatório, que existe em todo sistema jurídico, como fator mais importante do que o poder normativo. Uma sociedade para ser justa precisa, sem dúvida, de um mínimo de leis, porém precisa da indispensável internalização subjetiva dos valores éticos e morais. Os romanos já haviam percebido, como observou Paulus, "non omne, quod licet, honestum est", ou seja, nem tudo que é lícito é também honesto. O positivismo acabou com essa preocupação secular, separando o direito, da moral e da ética. A Mediação é um dos campos privilegiados para o cultivo da Ética.Num recente estudo patrocinado pela UNESCO, Edgar Morin, afirmou sobre a necessidade da ética:

"A Humanidade deixou de constituir uma noção abstrata: é realidade vital, pois está, doravante, pela primeira vez ameaçada de morte, a Humanidade deixou de constituir uma noção somente ideal, tornou-se uma comunidade de vida; a Humanidade é, daqui em diante, sobretudo uma noção ética: é o que deve ser realizado por todos em cada um" (Morin, 2000, 114).

Além da Ética não há mais como ignorar as implicações ecológicas da atividade humana, não só físicas, mas também mentais e sociais, tratando-se na verdade de três ecologias: a ecologia ambiental, a ecologia mental e a ecologia social. "Mais do que nunca a natureza não pode ser separada da cultura e precisamos aprender a pensar "transversalmente" as interações entre ecossistemas, mecanosfera e Universos de referências sociais e individuais" (Guattari, 1990, 25).

A Mediação rompe com o isolamento das disciplinas que não mais respondem às necessidades do conhecimento. O conhecimento deve ser transdisciplinar, ou seja, vai muito além da junção de disciplinas, buscando o que há de comum em todos os ramos dos saberes, como a Declaração de Veneza da UNESCO, de 1987, bem resumiu:

"Ao mesmo tempo em que recusamos todo e qualquer projeto globalizante, toda espécie de sistema fechado de pensamento, toda espécie de nova utopia, reconhecemos a urgência de uma pesquisa verdadeiramente transdisciplinar em um intercâmbio dinâmico entre as ciências exatas, as ciências humanas, a arte e a tradição. Num certo sentido, esse enfoque transdisciplinar está inscrito em nosso próprio cérebro através da dinâmica entre os seus dois hemisférios. O estudo da natureza e do imaginário, do universo e do homem, poderia nos aproximar melhor do real e nos permitir enfrentar de forma adequada os diferentes desafios de nossa época"

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A Mediação é transdisciplinar, um modo de construir um conhecimento unificado, de fazer pontes entre vários tipos de abordagem. Por isso exige dos mediadores muito mais do que simples especialização como juristas, ou mesmo com psicanalistas, ou sociólogos e afins. Exige a apreensão do fenômeno conflitivo como um todo indissociável.

O conflito não é só um fato objetivo, mas também subjetivo. Hoje se sabe que a mente humana, de acordo com pesquisas da moderna Neurociência, possui seu funcionamento regulado por estímulos nervosos, que não podem ser controlados só pela razão, objetivamente.A ciência evoluiu muito na tecnologia objetiva e pouco no entendimento da subjetividade humana.Os programas de saúde mental deveriam fazer parte do sistema social como um meio de educação dos cidadãos. A Mediação deveria ser uma atividade estimulada porque pode ajudar na implantação de uma sociedade subjetivamente mais saudável.

No Canadá, por exemplo, o Governo paga sessões de Mediação para casais em vias de separação, tentando assim solucionar o problema fora do litígio judicial. Na Argentina, na Espanha, na França e em outros países já existe uma legislação e uma prática de mediação há muitos anos. O Brasil está ainda se iniciando nessa matéria, tardiamente.

É difícil aceitar que após tanto tempo de normativismo os Estados continuem alimentando a pretensão de resolver os problemas sociais, ambientais, econômicos e afins, só pela regulamentação jurídica.

É chegada à hora de desenvolver a Mediação, uma forma mais eficiente de resolver os conflitos, com maior amplitude e maior potencial de produção de felicidade para todos. A Mediação é um novo paradigma para se resolver conflitos considerando que "o conflito é também uma oportunidade de crescimento e desenvolvimento. Superando lógicas binárias, essas práticas se interessam pelas possibilidades criativas que brindam as diferenças, a diversidade e a complexidade" (Schnitman, 1999, 20).

Às vezes, pode ser muito mais difícil mediar um conflito do que obter uma decisão judicial. Mas os resultados serão, certamente, mais duradouros e mais profundos quando as partes resolverem seus conflitos, livremente, através da Mediação. As transformações subjetivas permanecem, enquanto as decisões objetivas, não raro, são ineficazes para corrigir os problemas que tentam resolver. É preciso tentar desenvolver a experiência da Mediação como uma possibilidade de superar a Dogmática Jurídica que não responde, adequadamente, às necessidades do mundo atual.


5 - Relações Possíveis e Necessárias entre Dogmática Jurídica e Mediação.

O Direito Positivo e a Ciência têm sido usados pelo Estado como dois saberes que produzem respostas, para que a sociedade possa funcionar com estabilidade. São conhecimentos regulação, mais do que voltados a emancipar a sociedade (Boaventura, 2000, 245). Basta ver a discussão sobre aborto, bioética, genoma, células troncos, transplantes, ecologia para se constatar como a Ciência está presente em todos os debates. O Direito acompanha tudo, dentro de uma crescente racionalidade e abstração, que, praticamente, só os especialistas conseguem entender. O Direito, como arte do bom e do justo, cedeu terreno às soluções da eficiência social e econômica, sob a égide do Estado.

A Dogmática Jurídica avançou muito, formalmente, e com isso criou uma insatisfação nos cidadãos, principalmente, no campo emocional, no campo dos desejos, no campo da subjetividade. Principalmente a Psicanálise vem tentando resolver a frustração dos desejos reprimidos, dos traumas causados por uma sociedade moderna cada vez mais positivista e tecnológica, e cada vez menos sensitiva e harmoniosa. Por isso mesmo, a Psicanálise vem dialogando, profundamente, com o Direito e, acreditamos, poderá chegar um momento em que será possível psicanalisar o sistema jurídico.

A Mediação, também, é um modo privilegiado para resolver as insatisfações subjetivas. Embora não ignore a Dogmática Jurídica, coloca-a em plano secundário, enquanto busca entender e decifrar todo conteúdo, latente e manifesto, do conflito.

A Dogmática Jurídica exige certezas, pontos de partida inquestionáveis. A Mediação não trabalha com preceitos pré-estabelecidos,nem com uniformidades, nem com simplificações, nem com a hegemonia de um fato ou de outro, mas com a produção das diferenças, com a complexidade, com a totalidade dos fatos. A Mediação é mais parecida com um procedimento artesanal. Cada caso exige um procedimento diferente, uma abordagem específica. Embora existam conceitos comuns a muitos casos, nem sempre, numa situação específica, isso pode ser usado da mesma forma.

Para a Mediação a verdade, a Justiça, a ética, a moral e as virtudes de um modo geral, são primordiais. Para a Dogmática esses valores existem mas são trazidos ao sistema jurídico como informadores das decisões e não como fatores determinantes da solução do conflito. Na Dogmática a norma jurídica é a referência principal e necessária, prevalecendo sobre a justiça ou não da decisão. Na Mediação a norma jurídica é uma referência, mas nem sempre a principal. No entanto quando a Mediação termina numa transação legal, num acordo escrito, deve obedecer, necessariamente, o ordenamento jurídico, pois seria nula, inválida ou ineficaz, conforme o caso.

A Mediação parece ser uma resposta mais completa à problemática dos complexos conflitos atuais da sociedade pós-moderna, da sociedade da informática, da sociedade do espetáculo, da sociedade da nova era, da sociedade das comunicações de massa e outras denominações que se possam dar ao momento em que vivemos, neste começo de século XXI.

A Mediação não é incompatível com o sistema jurídico positivo. Ela é, apenas, um outro modo de abordar os problemas, deixando o poder de decisão para cada um. É um caminho mais criativo e abrangente do que a Dogmática Jurídica. Para a Mediação não há solução única, há várias soluções que precisam ser elaboradas pelos interessados e até podem ser transformadas, de tempos em tempos, em novas soluções, que podem ser revistas e melhoradas.

A Mediação é dinâmica, é um procedimento contínuo, um modo não dogmático de estar no mundo. "A mediação ultrapassa a dimensão de resolução não adversarial de disputas jurídicas. Ela possui incidências que são ecologicamente exitosas, como a estratégia educativa, como a realização política da cidadania, dos direitos humanos e da democracia. Dessa forma produz um devir de subjetividade que indicam uma possibilidade de fuga da alienação. A Mediação deve ser encarada como uma atitude geral diante da vida, como uma visão do mundo." (Warat, 2001, 88, 89)

Na relação mediada todos ganham, pois não há soluções impostas, mas produzidas consensualmente. A Mediação é fundamental para resolver os conflitos que a Dogmática Jurídica não tem solucionado, em virtude das próprias limitações do Direito Positivo


6 - Conclusão

A Mediação vai muito além da Dogmática Jurídica e valoriza a dimensão subjetiva do conflito, sem dogmas, com maior liberdade. Interage com todos os fatores sociais e pessoais, desenvolvendo no seu caminho, a cultura da paz, e não a cultura adversarial. Recolocam a Justiça e a Ética, como virtudes centrais da sociedade humana. Pouco importa se é difícil definir os valores justos e éticos; o que importa é não deixar de lado a preocupação com esses valores. Certezas mudam, e a própria Ciência poder ser encarada como a retificação constante do saber. O que hoje na Ciência é certo, amanhã é retificado. A Ciência e o Direito são mutáveis.

A Mediação procura retirar de cada caso conflitivo o que de mais criativo e transformativo possa existir. A estabilidade social e individual acabará acontecendo, de modo mais espontâneo, como decorrência do procedimento de Mediação. Parece utópico, no entanto, que todos os conflitos possam ser resolvidos pela Mediação. A Dogmática parece ser inevitável e necessária para a sociedade atual, mas sua dosagem deve ser muito menor do que tem sido. Convivemos com um tipo de Direito excessivamente dogmático e pouco mediático.

A Mediação é indispensável no direito atual. Mais Mediação, e menos Dogmatismo Jurídico parece, no momento, a forma de encontrar novos paradigmas de solução de conflitos. A Mediação é indispensável para superar a simplificação da Dogmática Jurídica, embora com ela mantenha, no contexto atual, uma relação possível e necessária, nesse difícil caminho da realização da sempre tão desejada virtude da Justiça.


Bibliografia

COMPARATO, Fábio Konder. Ética. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

FERRAZ Jr., Tércio Sampaio. Função social da dogmática jurídica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980.

GARCIA, Jesus Ignácio Martinez. La imaginación juridica. Madri: Ed. Debate, 1992.

GUATTARI, Felix. As três ecologias. Campinas: Papirus, 1990.

MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. 2.ed. São Paulo: Cortez, 2000.

REALE, Miguel. Teoria tridimensional do direito. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1980.

SANTOS, Boaventura de Souza. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez, 2000.

SCHNITMAN, Dora; STEPHEN, Littlejohn. Novos paradigmas em mediação. Porto Alegre: Artmes, 1999.

WARAT, Luis Alberto. O ofício do mediador. Florianópolis: Habitus, 2001.

WEIL, Pierre et. al. Rumo a nova transdiciplinariedade. 3.ed. São Paulo: Summus, 1993.

Sobre o autor
Ademir Buitoni

advogado e mediador em São Paulo, doutor em Direito Econômico pela USP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BUITONI, Ademir. A dogmática jurídica e a indispensável mediação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1355, 18 mar. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9619. Acesso em: 23 dez. 2024.

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