4. Conflito Aparente entre o Princípio da Dialeticidade Recursal e o Princípio do Duplo Grau de Jurisdição.
Surgiu no meio acadêmico alguma dúvida sobre a constitucionalidade da aplicação do princípio da dialeticidade e seu aparente conflito com a garantia do duplo grau de jurisdição.
Não resta dúvida que o princípio do duplo grau de jurisdição possui previsão constitucional implícita, figurando como garantia fundamental, encontrando embasamento interpretativo nos artigos 5º, inciso LV e 102, incisos II e II da Constituição Federal. Portanto, precisa ser respeitado pelas normas infraconstitucionais.
Como visto, o princípio da dialeticidade recursal, a par de decorrer de uma sistemática lógica da processualística, ligada ao interesse de agir (recorrer) da parte, possui previsão em normas infraconstitucionais, tais como o CPC e regimentos internos dos tribunais, com aplicabilidade analógica às lides criminais, conforme o artigo 3º do CPP.
Aparentemente a exigência do legislador infraconstitucional da exposição fundamentada de fato e de direito nas razões de recurso, pode aparentemente parecer violar o duplo grau de jurisdição, o que tornaria o pressuposto de admissibilidade recursal da dialeticidade inconstitucional.
É assente que não há direito ou princípio constitucional absoluto. Assim também o é em relação ao duplo grau de jurisdição, que pode ser regulamentado com o propósito de ser corretamente aplicado.
Não se pode alargar a garantia do duplo grau de jurisdição a ponto de violar outros direitos fundamentais, como o contraditório, ampla defesa e prestação jurisdicional célere.
Na verdade, o princípio da dialeticidade, antes que violar ou afastar o duplo grau de jurisdição, o reafirma, pois permite, com seu regramento, a possibilidade concreta do exercício da atividade recursal (submissão do caso à reexame por outra instância), respeitando o contraditório e a ampla defesa, harmonizando, portanto, o sistema processual aos ditames constitucionais.
O princípio da dialeticidade figura como um mecanismo racionalizador para o exercício efetivo do duplo grau de jurisdição, afastando, mediante um filtro normativo concretizado pelo julgador, as situações teratológicas de pedidos revisionais desprovidos de qualquer interesse recursal.
Nesse sentido, Jorge Augusto da Conceição Moreira:
O recurso é composto por dois elementos: volitivo (referente à vontade da parte em recorrer) e o descritivo (consubstanciado nos fundamentos e pedido constante do recurso). O princípio da dialeticidade diz respeito ao segundo elemento, exigindo do recorrente a exposição da fundamentação recursal (causa de pedir: error in iudicando e error in procedendo) e do pedido (que poderá ser anulação, reforma, esclarecimento ou integração).
(MOREIRA, Jorge Augusto da Conceição. Conflito aparente entre o princípio do duplo grau de jurisdição e o princípio da dialeticidade recursal no Código de Processo Civil de 2015. Disponível em: https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito processual civil/conflito aparente entre o princípio do duplo grau de jurisdição e o princípio da dialeticidade recursal no Código de Processo civil de 2015/ Acesso em 16.02.2022).
Ainda, Fernanda Ribeiro Uchôa Teixeira Sales:
Verifica-se, portanto, que os princípios constitucionais e infraconstitucionais funcionam de forma harmônica e não estanques, portanto, não são absolutos. O princípio da dialeticidade não tem como função precípua limitar o duplo grau de jurisdição, somente o faz quando o recurso é desfundamentado ou mero repetidor de petição anterior, causando prejuízos à parte contrária para o exercício da ampla defesa e contraditório, bem como inviabiliza o correto julgamento pelo Tribunal.
(SALES, Fernanda Ribeiro Uchôa Teixeira, Questões e reflexões sobre a constitucionalidade do princípio da dialeticidade frente ao princípio do duplo grau de jurisdição. Disponível em: https://uerjlabuta.com/2021/11/16/questoes-e-reflexoes-sobre-a-constitucionalidade-do-principio-da-dialeticidade-frente-ao-principio-do-duplo-grau-de-jurisdicao/Acesso em 16.02.2022).
No processo penal mais adequada se torna a previsão da dialeticidade recursal, visto ser imperativo constitucional o respeito ao contraditório, ampla defesa, lealdade e boa-fé processual e a paridade de armas, possibilitando a parte ex adversa conhecer e argumentar contrariamente aos fundamentos apresentados no recurso, não podendo ser ele vago e genérico.
Portanto, não há conflito entre o duplo grau de jurisdição e o princípio da dialeticidade recursal, que convivem harmonicamente sob o manto da constitucionalidade material.
Considerações Finais
O processo penal é essencialmente dialético, devendo os argumentos apresentados pelas partes serem expostos com clareza e concretude, possibilitando o exercício silogístico do magistrado ao prolatar sua decisão.
Na fase recursal, igualmente é necessário que o recorrente exponha e delimite sua insurgência, possibilitando a parte contrária exercer seu direito ao contraditório e ampla defesa, primados constitucionais.
A moderna doutrina processual penal adota o princípio da dialeticidade recursal como pressuposto de conhecimento para as impugnações de decisões proferidas, com pedido de reexame a superior instância. A jurisprudência também albergou citado princípio.
Nesse cenário, o princípio da dialeticidade recursal penal se configura em instituto jurídico importante e fundamental na sistemática processual, que exigirá da doutrina e jurisprudência profundo estudo de temas relevantes oriundos de sua aplicabilidade prática, sempre observando que a finalidade é a harmonia entre um direito criminal mais célere e racional com o respeito aos predicamentos dos direitos humanos básicos do cidadão.
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