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O Estado pode exercer direitos fundamentais em face dos particulares?

Agenda 18/03/2022 às 18:10

A concepção clássica de direitos fundamentais consubstancia garantia das pessoas contra o Estado. E o contrário?

De início, cumpre registrar que as pessoas jurídicas podem sofrer dano moral. Tal entendimento encontra-se consolidado no âmbito no Superior Tribunal de Justiça, por meio da Súmula 227. Em relação a esses entes, a sistemática dos danos morais, entretanto, sofre temperamentos. Isso porque aqueles são desprovidos de honra subjetiva, de modo que, para a ocorrência do dano, é necessária a ofensa à honra objetiva, ou seja, a sua imagem ou ao seu bom nome comercial, o que se convenciona chamar de descrédito mercadológico.  

No âmbito dos entes estatais, a situação ganha contornos distintos. Cumpre destacar que as pessoas jurídicas de direito público, em razão do exercício de suas atividades precípuas, não sofrem descrédito mercadológico. Ademais, a concepção clássica de direitos fundamentais consubstancia garantia das pessoas contra o Estado, e não o contrário.

Ao longo dos anos, surgiram muitas lides envolvendo a temática. Perante o Poder Judiciário, comumente, a Fazenda Pública aduz que a súmula 227 supra não exclui as pessoas de direito público do seu âmbito de incidência. Alerta, ainda, que a moralidade é via de mão dupla: não é dever apenas do Estado, mas para com o estado. Em outras palavras, na relação com o Estado, os administrados têm o dever de moralidade, de modo que, ao infringirem esse dever, atingem a honra objetiva do ente público, configurando dano moral.

A despeito dos argumentos registrados favoráveis à Fazenda, o Superior Tribunal de Justiça adota linha distinta. No Recurso Especial 1.258.389 (2014), originário da Paraíba, a Corte abordou a questão, esclarecendo que os únicos direitos fundamentais reconhecidos às pessoas jurídicas de direito público são aqueles de caráter processual ou relacionados à proteção constitucional de suas prerrogativas, direitos esses oponíveis ao próprio Estado e não ao particular.

Segundo o STJ, portanto, não se admite que os entes estatais exerçam direitos fundamentais de caráter material em face de particulares. Isso constituiria uma subversão da própria essência desses direitos, que, majoritariamente, consistem em instrumentos de proteção do indivíduo contra o abuso estatal.

Em 24/11/2020, porém, a questão recebeu novos olhares: no julgamento do Recurso Especial 1.722.423, oriundo do Rio de Janeiro, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu a possibilidade de ente estatal obter indenização por dano moral. Ressalte-se: isso não significa que a Corte tenha superado o seu tradicional entendimento acerca da matéria, registrado em parágrafos anteriores. Ficou evidente, no acórdão, que o caso concreto trazia particularidades que o diferenciavam dos julgados em que foi sedimentada a tese do descabimento de reparação por dano moral em face do Poder Público.

Na ocasião, segundo esclareceu o Tribunal, os casos que havia analisado até então envolviam situações em que o ente estatal era objeto de críticas contundentes ou mesmo de notícias inverídicas, o que colocava em xeque, pois, o exercício da liberdade de pensamento por particulares, protegido pelo artigo 5º, inciso IV, da Constituição Federal. Entre os precedentes, houve, outrossim, um caso em que ficou configurada a utilização indevida do logotipo de uma autarquia (do Ibama), caracterizando uso indevido de bem imaterial do Estado.  

Conforme entendimento externado pelo STJ, nas situações supramencionadas, caso fosse reconhecida a possibilidade de os entes públicos pleitearem a reparação por danos morais em face de particular, restaria caracterizada a subversão da teoria geral dos direitos fundamentais.

Em verdade, no julgamento do Recurso Especial 1.722.423 ficou evidenciado um esquema fraudulento milionário de desvio de benefícios previdenciários, no âmbito do INSS, o que fez, inclusive, com que diversos contribuintes deixassem de receber seus benefícios. De acordo com a Corte, por ter havido enorme prejuízo a terceiros, a gravidade dos atos perpetrados pelos criminosos foi capaz de prejudicar a credibilidade institucional da autarquia previdenciária.

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Tais circunstâncias autorizaram que se afastasse o entendimento jurisprudencial dominante, a fim de que se reconhecesse a possibilidade de o poder público, no caso concreto, pleiteasse a reparação pelo dano moral sofrido. Ademais, a 2ª Turma do STJ, na ocasião, deixou registrado que o fato de o Estado não sofrer descrédito mercadológico não afasta, por si, a sua pretensão reparatória. Esclareceu que o direito das pessoas jurídicas à reparação por dano moral não se configura apenas nas situações de prejuízos comerciais, mas também nas hipóteses de ofensa à honra objetiva. Nesse contexto, até as entidades sem fins lucrativos podem ser atingidas, como no caso de agressão perpetrada por agentes públicos contra a credibilidade institucional do ente.

No caso em questão, o acórdão lavrado pelo Tribunal inferior havia se limitado a aduzir a impossibilidade de reparação por dano moral em favor da autarquia previdenciária (INSS); o Superior Tribunal de Justiça, reconhecendo de forma expressa a possibilidade da reparação, determinou o retorno dos autos à origem, a fim de que a questão fosse apreciada novamente, agora, levando-se em consideração a possiblidade de fixação de indenização por dano moral em favor da entidade autárquica lesada.

Desse modo, atualmente, na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, há dois entendimentos distintos (a saber, a regra geral e a exceção) acerca da possiblidade de ente público pleitear indenização por dano moral.

   Pela regra geral, não se revela viável essa reparação, por consubstanciar subversão da natureza intrínseca dos direitos fundamentais. O entendimento em tela é aplicável aos casos que envolvem, por exemplo, críticas ao Estado, notícias inverídicas sobre entes públicos e, até mesmo, uso indevido da propriedade imaterial de entidades da Administração.

Por outro lado, em tom de exceção, há possibilidade de reparação, quando a gravidade da situação concreta justificar o afastamento do entendimento jurisprudencial consolidado. É o caso do Recurso Especial 1.722.423, situação em que cumpre reconhecer o flagrante prejuízo à honra objetiva e à credibilidade institucional da pessoa jurídico de direito público lesada.


Referências:

Súmula nº 227 do STJ: A pessoa jurídica pode sofrer dano moral.

Recurso Especial nº 1.258.389/PB, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, v.u., j. 17/12/2013.

BRASIL, Constituição da República Federativa do. Disponível em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em: 17 fev. 2022.

Recurso Especial nº 1.722.423/RJ, Rel. Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, v.u., j. 24/11/2020.

Sobre o autor
Jammil Holanda Freitas

Jammil Holanda Freitas, advogado, formado pela Universidade Federal do Ceará. Possui pós-graduação em Direito e Processo Constitucional.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FREITAS, Jammil Holanda. O Estado pode exercer direitos fundamentais em face dos particulares?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6834, 18 mar. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/96889. Acesso em: 22 dez. 2024.

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