Em data de 28 de março de 2007, a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) aprovou parecer ao Projeto de Lei Complementar n.º 19, que pretende acabar com o instituto da prescrição retroativa.
Não subtraindo à tônica de nosso Legislativo, a medida, uma das muitas do "pacote anti-violência", é considerada uma das mágicas soluções para o problema da criminalidade.
No parecer do projeto, o Relator, senador Demostenes Torres (DEM – GO), afirmou que a medida é de cunho puramente técnico. Além disso, segundo o senador, a proposta via colocar um fim no "grande gargalo da impunidade" do ordenamento jurídico brasileiro. O projeto majora em um ano o lapso temporal necessário para a prescrição os crimes cuja pena máxima não seja superior a um ano. Lamentável.
A prescrição retroativa, uma das modalidades da prescrição da pretensão punitiva, encontra assento no art. 110, § 2°, do Código Penal. Ela leva em consideração a penal concretamente aplicada ao acusado. Ademais, seu prazo de verificação se da à luz de dois marcos, a saber: 1 – o recebimento da denúncia ou queixa-crime; 2 – data de publicação da sentença condenatória. Portanto, ao ser fixada a pena em sentença condenatória o juiz deve fazer o seguinte exercício mental: 1 – Levando-se em consideração a pena efetivamente aplicada houve, entre a data do fato e o recebimento da denúncia, transcurso de tempo exigido pelo art. 109 do CP?; 2 – Ou então: entre a data do recebimento da denúncia ou queixa-crime e a publicação da sentença transcorreu aquele prazo? A resposta positiva, em qualquer das hipóteses, implica no reconhecimento da causa extintiva da punibilidade.
Nada obstante tratar-se de instituto de natureza jurídica de direito material [01], parece-me induvidoso afirmar que há uma relação umbilical entre a prescrição e a duração do processo ou, até mesmo, entre a prescrição e a fase pré-processual. Ora, a prescrição retroativa manifesta-se quando o Estado não conseguiu formar em tempo hábil e razoável o título executivo contra o acusado. Sendo assim, há implicação direta sob a órbita processual. Logo, é de se concluir: quanto mais rápido for o julgamento de um processo, menores as chances da prescrição retroativa se verificar. É, portanto, uma relação inversamente proporcional.
Fixada a premissa, não há como negar a relação entre a prescrição retroativa e o direito do acusado ser julgado em um prazo razoável. Nesse passo, andamos na contramão de direção. Suprimir o instituto da prescrição retroativa significa, em outros termos, o reconhecimento (atestado) legal da incapacidade do Estado processar o acusado em um prazo razoável. Outra conclusão não se pode ter haja vista que a prescrição será regulada, doravante, pelo máximo da pena privativa de liberdade. Assim, um crime como o furto simples, prescreverá, no mínimo, em oito anos.
Não é realidade de países europeus a tentativa em dar celeridade aos Processos penais. No Código de Processo Penal paraguaio, por exemplo, encontramos no Livro Segundo, Título I, Capítulo V o "CONTROL DE LA DURACIÓN DEL PROCEDIMENTO":
Artículo 136. DURACION MAXIMA. Toda persona tendrá derecho a una resolución judicial definitiva em un plazo razonable. Por lo tanto, todo procedimiento tendrá una duración máxima de tres años, contados desde el primer acto del procedimiento.
Este plazo sólo se podrá extender por seis meses más cuando exista una sentencia condenatoria, a fin de permitir la tramitación de los recursos.
Artículo 137. EFECTOS. Vencido el plazo previsto en el artículo anterior el juez o tribunal, de oficio o a petición de parte, declarará extinguida la acción penal, conforme a lo previsto por este código.
Além destes, vários outros dipositivos regulam a prescrição [02], inclusive na fase pré-processual (art. 139). Note-se que o Código paraguaio encontra-se em perfeita sintonia com a Convenção Americana de sobre Direitos Humanos.
Só recentemente nossa Constituição Federal consagrou como cláusula pétrea o direito a um julgamento em prazo razoável, no art. 5, LXXVIII, "in verbis": "a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação". (EC nº 45/04).
O Supremo Tribunal Federal assim se manifestou:
"O excesso de prazo, mesmo tratando-se de delito hediondo (ou a este equiparado), não pode ser tolerado, impondo-se, ao poder judiciário, em obséquio aos princípios consagrados na Constituição da República, o imediato relaxamento da prisão cautelar do indiciado ou do réu. Nada pode justificar a permanência de uma pessoa na prisão, sem culpa formada, quando configurado excesso irrazoável no tempo de sua segregação cautelar (RTJ 137/287 - RTJ 157/633 - RTJ 180/262-264 – RTJ 187/933-934), considerada a excepcionalidade de que se reveste, em nosso sistema jurídico, a prisão meramente processual do indiciado ou do réu, mesmo que se trate de crime hediondo ou de delito a este equiparado. [...]. A duração prolongada, abusiva e irrazoável da prisão cautelar de alguém ofende, de modo frontal, o postulado da dignidade da pessoa humana, que representa — considerada a centralidade desse princípio essencial (CF, art. 1º, III) — significativo vetor interpretativo, verdadeiro valor-fonte que conforma e inspira todo o ordenamento constitucional vigente em nosso País e que traduz, de modo expressivo, um dos fundamentos em que se assenta, entre nós, a ordem republicana e democrática consagrada pelo sistema de direito constitucional positivo." [03]
"O excesso de prazo, quando exclusivamente imputável ao aparelho judiciário - não derivando, portanto, de qualquer fato procrastinatório causalmente atribuível ao réu - traduz situação anômala que compromete a efetividade do processo, pois, além de tornar evidente o desprezo estatal pela liberdade do cidadão, frustra um direito básico que assiste a qualquer pessoa: o direito à resolução do litígio, sem dilações indevidas (CF, art. 5º, LXXVIII) e com todas as garantias reconhecidas pelo ordenamento constitucional, inclusive a de não sofrer o arbítrio da coerção estatal representado pela privação cautelar da liberdade por tempo irrazoável ou superior àquele estabelecido em lei." [04]
Sendo assim, não me parece equivocado advertir que a supressão da prescrição retroativa implica, no final das contas, em violação por via oblíqua do texto constitucional. Explico.
A inexistência de um instituto que fiscalize a celeridade do julgamento dos processos ou, dito de outra forma, a inexistência de um instrumento que puna o Estado pela sua incompetência, acabará por gerar dilações indevidas. É de se indagar: qual a celeridade a ser aplicada no julgamento de um processo se não há, ao menos diretamente, uma implicação material derivada da morosidade? Retirar do ordenamento um instituto que, ao contrário da infeliz manifestação do relator do projeto, representa uma conquista e vetor do ordenamento jurídico, significa um retrocesso a passos largos na história do direito penal e do processo penal; representa a criação, no ordenamento jurídico brasileiro, da chamada "pena del banquillo".
A proposta de lei complementar deve, portanto, ser rejeitada por flagrante inconstitucionalidade material.
O projeto de lei é preocupante, representa um incentivo à morosidade da resposta penal. Sabendo da inexistência da prescrição retroativa, o acúmulo de processos será maior que o atual, pois não haverá conseqüência na (de)mora da resposta. O gargalo da impunidade é o "reumatismo" do aparelho estatal; a prescrição, apenas uma das muitas conseqüências. O legislativo optou pela solução mais cômoda e simbólica. Ao invés de munir o aparelho judiciário com os recursos necessários para uma rápida resposta, preferiu uma conhecida solução política, aquela sempre adotada em momentos de histeria punitivista: quem se lembra da desastrada Lei de Crimes Hediondos? O parlamento, diria meu leitor.
Notas
01
Há divergência a cerca da natureza jurídica da prescrição, alguns considerando ser instituto de ordem processual.02
Artículo 141. DEMORA EN LAS MEDIDAS CAUTELARES PERSONALES. RESOLUCION FICTA. Cuando se haya planteado la revisión de una medida cautelar privativa de libertad o se haya apelado la resolución que deniega la libertad y el juez o tribunal no resuelva dentro de los plazos establecidos en este código, el imputado podrá urgir pronto despacho y si dentro de las veinticuatro horas no obtiene resolución se entenderá que se ha concedido la libertad. En este caso, el juez o tribunal que le siga en el orden de turno ordenará la libertad. Una nueva medida cautelar privativa de libertad sólo podrá ser decretada a petición del Ministerio Público del querellante, según el casoArtículo 142. DEMORA DE LA CORTE SUPREMA DE JUSTICIA. RESOLUCION FICTA. Cuando la Corte Suprema de Justicia no resuelva un recurso dentro de los plazos establecidos por este código, se entenderá que ha admitido la solución propuesta por el recurrente, salvo que sea desfavorable para el imputado, caso en el cual se entenderá que el recurso ha sido rechazado. Si existen recursos de varias partes, se admitirá la solución propuesta por el imputado. Cuando el recurso a resolver se refiera a la casación de una sentencia condenatoria, antes de aplicar las reglas precedentes, se integrará una nueva Sala Penal dentro de los tres días de vencido el plazo, la que deberá resolver el recurso en un plazo no superior a los diez días.
Los ministros de la Corte Suprema de Justicia que hayan perdido su competencia por este motivo tendrán responsabilidad por mal desempeño de funciones. El Estado deberá indemnizar al querellante cuando haya perdido su recurso por este motivo, conforme lo previsto en este capítulo.
03
HC 85.988-MC, Rel. Min. Celso De Mello, DJ 10/06/0504
HC 85.237, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 29/04/05.