Sumário:1 - Introdução. 2 – Do afastamento da licitação. 3 - Da dispensa de licitação nos casos de comprometimento da Segurança Nacional. 4 - O Decreto nº 2.295/1997. 5 - Considerações finais - da abrangência da expressão "comprometer a segurança nacional"
1 - Introdução
Historicamente, a introdução da licitação na Administração Pública Brasileira ocorreu, de forma isolada, pelo Decreto nº 2.926, de 14 de maio de 1862 – "Regulamento para as arrematações dos serviços a cargo do Ministério da Agricultura, Commercio e Obras Públicas". Tal prática somente passou a valer como regra geral para a Administração Federal, a partir de 28 de janeiro de 1922, com a expedição do Decreto nº 4.536, que organizou o "Código de Contabilidade da União".1
Posteriormente, foi expedido o Decreto-Lei nº 2.300, de 21 de novembro de 1986, considerado um marco na área de Licitações e Contratos, por ser o primeiro estatuto "que se dedicou a tratar da matéria de forma global, reunindo em seus noventa artigos, normas gerais e especiais, as primeiras cogentes para toda a Administração Pública brasileira, e as segundas incidentes sobre a Administração federal". 2
Com o advento da Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB), promulgada em 05 de outubro de 1988, Administração Pública brasileira passou a ser objeto de capitulo específico, onde a licitação pública ascendeu ao patamar de preceito constitucional:
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
......................
XXI - ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.
Como conseqüência, foi sancionada a Lei 8.666, de 21 de junho de 1993, que "Regulamenta o art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, institui normas para licitações e contratos da Administração Pública e dá outras providências".
Observa-se, assim, ao longo dos últimos 145 anos, que a Licitação passou a de regra isolada a preceito constitucional, fato esse que tem estimulado a edição de inúmeros livros e a crescente realização de seminários, simpósios e cursos sobre a matéria.
Contudo, apesar da vasta bibliografia existente, verifica-se que poucos são os artigos e livros voltados para determinados segmentos da Administração Pública, in casu, as Forças Armadas, tanto no que se refere à Licitação propriamente dita, como nos casos onde a mesma afigura-se inexigível ou seria dispensável.
Destarte, a fim de contribuir para a diminuição do déficit acadêmico-doutrinário acima mencionado, o presente artigo abordará o Decreto nº 2.295, de 4 de agosto de 1997, que "regulamenta o disposto no art. 24, inc. IX, da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, e dispõe sobre a dispensa de licitação nos casos que possam comprometer a segurança nacional".
2 – Do afastamento da licitação
Contudo, antes de iniciar a análise do Decreto nº 2.295/1997, necessário se faz abordar, ainda que de forma sucinta, os institutos da inexigibilidade e da dispensa de licitação, previstos, respectivamente, nos art. 25 e 24 da Lei 8.666/1993. 3
Com efeito, a inexigibilidade decorre de situações onde a realização de uma licitação formal seria impossível, em face da inviabilidade de competição entre os licitantes. Uma vez inviável a competição, quer em face da singularidade do objeto ou pela exclusividade do fornecedor, a licitação será inexigível. Por esse motivo, afirma-se que, as hipóteses de inexigibilidade de licitação, previstas no art. 25 da Lei 8.666/1993, são exemplificativas. Outras podem ocorrer, sempre que verificada a inviabilidade de competição.
Nesse sentido, afirma MARÇAL JUSTEN FILHO: 4
É inexigível a licitação quando a disputa for inviável. Havendo viabilidade de disputa é obrigatória a licitação, excetuados os casos de dispensa imposta por lei. Sob esse ângulo, a inexigibilidade deriva da natureza das coisas, enquanto que a dispensa é produto da vontade legislativa. Esse é o motivo pelo qual as hipóteses de inexigibilidade indicadas em lei são meramente exemplificativas, enquanto as de dispensa são exaustivas.
A dispensa de licitação, a seu turno, decorre de situações previamente identificadas pelo legislador, onde a licitação, teoricamente, poderia ser realizada, mas o administrador pode optar pela contratação direta.
Fato é que existem determinadas situações nas quais é perfeitamente possível prever que a licitação será prejudicial ao interesse público, uma vez que os custos necessários à realização do certame serão superiores aos benefícios dele esperados. Tais situações, quando perfeitamente identificadas e delimitadas pelo legislador, ingressam no ordenamento jurídico como hipóteses de dispensa de licitação. Contudo, por se tratarem de situações decorrentes da vontade do legislador e não "da própria natureza das coisas", como nos casos de inexigibilidade, a relação de hipóteses de dispensa de licitação, prevista nos incisos do art. 24 da Lei nº 8.666/1993, é taxativa. 5
Vale destacar que, ao longo dos anos, houve um sensível aumento das hipóteses de dispensa de licitação. No Decreto-Lei nº 200/1967, existiam 9 casos de dispensa de licitação; no Decreto-Lei nº 2.300/1986 estas passaram a ser em número de 13; na Lei nº 8.666/1993, inicialmente, foram identificadas 15 e, atualmente, perfazem um total de 28.
3 - Da dispensa de licitação nos casos de comprometimento da Segurança Nacional
Trata-se de hipótese contida no art. 24, IX, da Lei nº 8.666/1993:
Art. 24 É dispensável a licitação:
IX - quando houver possibilidade de comprometimento da segurança nacional, nos casos estabelecidos em decreto do Presidente da República, ouvido o Conselho de Defesa Nacional;
Impende destacar que o referido dispositivo, inicialmente, deu margem a diversas dúvidas no tocante a sua aplicação, pois permitia o entendimento de que, em todos os casos – inclusive os de menor complexidade ou de "baixo valor" 6 –, o assunto teria que ser levado ao Conselho de Defesa Nacional (CDN), interpretação essa que, data maxima venia, inviabilizaria boa parte das aquisições realizadas pelo Governo Federal.
O CDN possui competências específicas, as quais encontram-se descritas no § 1º do art. 91 da CRFB, cuja abrangência e importância acabariam por inibir sua convocação, pelo Presidente da República, para julgar, por exemplo, aquisições de "baixo valor", ainda que a mesmas pudessem ser enquadradas no referido artigo.
Art. 91. O Conselho de Defesa Nacional é órgão de consulta do Presidente da República nos assuntos relacionados com a soberania nacional e a defesa do Estado democrático, e dele participam como membros natos:
I - o Vice-Presidente da República;
II - o Presidente da Câmara dos Deputados;
III - o Presidente do Senado Federal;
IV - o Ministro da Justiça;
V - o Ministro de Estado da Defesa;
VI - o Ministro das Relações Exteriores;
VII - o Ministro do Planejamento.
VIII - os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica.
§ 1º - Compete ao Conselho de Defesa Nacional:
I - opinar nas hipóteses de declaração de guerra e de celebração da paz, nos termos desta Constituição;
II - opinar sobre a decretação do estado de defesa, do estado de sítio e da intervenção federal;
III - propor os critérios e condições de utilização de áreas indispensáveis à segurança do território nacional e opinar sobre seu efetivo uso, especialmente na faixa de fronteira e nas relacionadas com a preservação e a exploração dos recursos naturais de qualquer tipo;
IV - estudar, propor e acompanhar o desenvolvimento de iniciativas necessárias a garantir a independência nacional e a defesa do Estado democrático.
4 - O Decreto nº 2.295/1997
A dúvida em questão foi esclarecida quando da expedição do Decreto nº 2.295, de 4 de agosto de 1997, que regulamentou o referido artigo, e foi expedido após ter sido ouvido o CDN:
DECRETO Nº 2.295, DE 4 DE AGOSTO DE 1997.
Regulamenta o disposto no art. 24, inciso IX, da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, e dispõe sobre a dispensa de licitação nos casos que possam comprometer a segurança nacional.
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso da atribuição que lhe confere o art. 84, inciso IV, da Constituição, e tendo em vista o disposto no art. 24, inciso IX, da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, ouvido o Conselho de Defesa Nacional,
DECRETA:
De acordo com o referido Decreto, as aquisições de bens e serviços que venham a comprometer na segurança nacional podem ser encaixadas em duas situações distintas, as quais implicam na adoção de procedimentos diferenciados no tocante ao seu processamento.
A primeira delas refere-se às aquisições enquadradas art. 1º do referido Decreto. Note-se que este artigo apresenta situações previamente identificadas como passíveis de colocar em risco a segurança nacional:
Art. 1º Ficam dispensadas de licitação as compras e contratações de obras ou serviços quando a revelação de sua localização, necessidade, característica do seu objeto, especificação ou quantidade coloque em risco objetivos da segurança nacional, e forem relativas à:
I - aquisição de recursos bélicos navais, terrestres e aeroespaciais;
II - contratação de serviços técnicos especializados na área de projetos, pesquisas e desenvolvimento científico e tecnológico;
III - aquisição de equipamentos e contratação de serviços técnicos especializados para a área de inteligência.
Parágrafo único. As dispensas de licitação serão necessariamente justificadas, notadamente quanto ao preço e à escolha do fornecedor ou executante, cabendo sua ratificação ao titular da pasta ou órgão que tenha prerrogativa de Ministro de Estado.
Nesta primeira hipótese, onde um "balizamento" foi previamente fornecido pelo Chefe do Executivo 7, após ter sido devidamente instruído nos termos do parágrafo único do referido artigo 8, o processo deve ser encaminhado ao titular da pasta ou órgão que tenha prerrogativa de Ministro de Estado, para ratificação.
A segunda hipótese, tratada pelo art. 2º, revela-se mais complexa, uma vez que as situações que ensejariam a dispensa não foram previamente definidas pelo Chefe do Executivo. Assim, caberá ao órgão contratante identificar se o caso concreto a ele apresentado, mesmo não estando enquadrado entre as situações descritas no art. 1º, poderá comprometer a segurança nacional.
Art. 2º Outros casos que possam comprometer a segurança nacional, não previstos no art. 1º deste Decreto, serão submetidos à apreciação do Conselho de Defesa Nacional, para o fim de dispensa de licitação.
Destarte, para que a dispensa seja realizada, o caso concreto deverá ser submetido à apreciação do Conselho de Defesa Nacional, órgão de consulta do Presidente da República.
Em outras palavras, de acordo com a regulamentação estabelecida pelo Decreto nº 2.295/1997, somente seriam encaminhados ao Conselho de Defesa Nacional os casos passíveis de enquadramento no art. 2º. As aquisições enquadradas no art. 1º (cujo "balizamento" foi fornecido pelo Presidente da República, ouvido o CDN), podem ser ratificados pelo titular da pasta ou órgão com a prerrogativa de Ministro de Estado.
No mesmo sentido, assevera JACOBY Fernandes: 9
O Decreto nº 2.295/97 enumera restritivamente as possibilidades de contratação direta, ficando os casos não elencados, que porventura venham a surgir, submetidos à apreciação do Conselho de Defesa Nacional. São eles:
1. aquisição de recursos bélicos navais, terrestres e aeroespaciais;
2. contratação de serviços técnicos especializados na área de projetos, pesquisas e desenvolvimento científico e tecnológico;
3.aquisição de equipamentos e contratação de serviços técnicos especializados para área de inteligência.
Há que se observar, ainda, que, além da justificativa quanto à escolha do preço e fornecedor, o diploma legal, in fine, exige também a ratificação da justificativa pelo titular da pasta ou órgão que tenha prerrogativa de Ministro de Estado.
5 - Considerações finais - da abrangência da expressão "comprometer a segurança nacional"
Por último, mas não menos importante, faz-se necessário abordar a abrangência da expressão "comprometer a segurança nacional". Isto porque tal expressão, empregada genérica ou irrestritamente, poderia ensejar a quebra da regra geral, que consiste na realização do certame.
Fato é que nem todas as compras de materiais bélicos ou serviços, mesmo as elencadas no inciso I do art. 1º do Decreto 2.295/1997, estariam abrangidos pelo espírito do art. 24, IX da Lei 8.666/1993. Somente seriam enquadradas aquelas cujas características técnicas ou operacionais militares não podem ser do conhecimento público, como por exemplo, códigos relativos a sistemas de armas ou características capazes de distingui-las dos seus similares utilizados pelas possíveis ameaças à segurança (interna ou externa).
O Decreto em tela não seria aplicável, por exemplo, para a aquisição de meios – navios, aeronaves ou carros de combate – cujas especificações táticas e, até mesmo, quantidades existentes nos diversos países, podem ser facilmente encontradas em revistas especializadas, de caráter ostensivo, tais como, "Segurança & Defesa" ou "Tecnologia & Defesa", as quais podem obtidas mediante assinatura, ou adquiridas em livrarias ou bancas de jornais.
Nesses casos, prima facie, impõe-se a realização do certame licitatório, ressalvada a hipótese onde a competição seja inviável, situação que implicaria na elaboração de um processo de inexigibilidade de licitação, já abordado no item 2 do presente artigo.
Notas:
1. PEREIRA JUNIOR, Jessé Torres. Comentários à lei das licitações e contratações da administração pública. 5ª Ed.. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, pag. 1
2. PEREIRA JUNIOR, Jessé Torres. Op. cit., pág 2
3. As hipóteses de dispensa de licitação previstas, no art. 17 da Lei 8.666/1993, não serão abordadas no presente trabalho.
4. JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 8ª Edição. São Paulo: Dialética, 2000, pág. 233.
5. Segundo JACOBY Fernandes - Contratação Direta sem Licitação. 6ª Ed. Belo Horizonte: Forum, 2006, pag. 336: "[...]Para que a situação possa implicar em dispensa de licitação, deve o fato concreto enquadrar-se no dispositivo legal, preenchendo todos os requisitos. Não é permitido qualquer exercício de criatividade ao administrador, encontrando-se as hipóteses de licitação dispensável, previstas expressamente em lei, numerus clausus, no jargão jurídico, querendo significar que são apenas aquelas hipóteses que o legislador expressamente indicou que comportam dispensa de licitação."
6. A expressão "baixo valor" é aqui utilizada para ilustrar compras que se encontram no limite mínimo necessário a realização de uma licitação na modalidade Convite, atualmente R$ 8.000,00.
7. Balizamento este que foi inserido no art. 1º após ter ouvido o CDN, conforme descrito no preâmbulo do Decreto nº 2.295/1997.
8. E aprovado pela Assessoria Jurídica do órgão da Administração Pública.
9. FERNANDES, Jorge Ulisses Jacoby. Contratação direta sem licitação:dispensa e inexigibilidade de licitação. 6ª Ed. Belo Horizonte: Forum, 2006, pag. 451.
Referências Bibliográficas
FERNANDES, Jorge Ulisses Jacoby. Contratação direta sem licitação:dispensa e inexigibilidade de licitação: comentários às modalidades de licitação, inclusive o pregão: procedimentos exigidos para a regularidade da contratação direta. 6ª Ed. Belo Horizonte: Forum, 2006
JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 8ª Edição. São Paulo: Dialética, 2000.
PEREIRA JUNIOR, Jessé Torres. Comentários à lei das licitações e contratações da administração pública. 5ª Ed. rev. atual. e ampl., de acordo com as EC de nº 6/95 e 19/98, com a LC nº 101/2000, com as Leis de nº 9.648/98 e 9.854/99, e coma MP nº 2.108/2001 e seus regulamentos. Rio de Janeiro: Renovar, 2002