Os crimes podem ser dolosos (intencionais) ou culposos (não intencionais). Nos últimos meses vêm sendo noticiados vários fatos (todos com certa semelhança) relacionados com a conduta do pai que esquece o filho dentro do carro, gerando sua morte. Trata-se, em regra, de crime não intencional (culposo), que admite o chamado perdão judicial, ou seja, o juiz analisa o caso, reconhece o crime assim como a culpabilidade do agente, mas em seguida concede o perdão judicial (CP, art. 121, § 5º), julgando extinta a punibilidade.
Essa sentença não é condenatória, sim, declaratória de extinção da punibilidade (Súmula 18 do STJ). Fala-se em sentença autofágica porque ela admite ter havido crime mas ao mesmo tempo extingue a punibilidade do Estado. Para fins penais é como se o agente nunca tivesse sido processado. Em outras palavras: essa sentença não vale para antecedentes criminais, reincidência etc.
O fundamento principal para a concessão do perdão judicial, nesses casos, é o seguinte: o pai, com sua conduta, já sofreu o suficiente diante da sua própria negligência. Ele experimenta uma espécie de "pena natural", isto é, uma pena (um castigo) derivada de fato por ele mesmo praticado. Nessas situações, a pena estatal se torna totalmente desnecessária. Incide aqui o princípio da (des)necessidade da pena, que é defendido, dentre outros, pelo Professor Roxin.
Mesmo depois de reconhecida a culpabilidade do agente (que podia se motivar de acordo com a norma e se comportar de forma diferente, conforme o Direito), ainda assim, há situações em que a sanção do Estado perde completamente sua finalidade, tornando-se desnecessária seja para fins de repressão, seja para fins de prevenção (art. 59 do CP). Quando o fato, pelas suas conseqüências, atinge o agente de forma grave, a pena se torna desnecessária; cabe ao juiz, nessa situação, deixar de aplicá-la. Qualquer sanção estatal seria pura expressão de desumanidade e de desproporcionalidade.
Problema jurídico-penal: do ponto de vista técnico-penal a dificuldade consiste em saber se esse ato (pai que negligentemente esqueceu o filho dentro do carro, causando sua morte) constitui um homicídio culposo comissivo ou um homicídio culposo comissivo por omissão (crime omissivo impróprio).
Por força do art. 13, § 2º, do CP, o dever jurídico de agir (nos crimes omissivos impróprios) incumbe a quem, (...) com seu comportamento anterior, criou o risco de ocorrência do resultado. No caso do pai que esqueceu o filho de tenra idade dentro do carro, gerando sua morte, é preciso distinguir o seguinte:
(a) se a criança, em razão da negligência do pai, já foi encontrada morta, a ele deve ser atribuído um homicídio culposo (homicídio culposo comissivo, ou seja, por ação);
(b) se a criança foi encontrada pelo pai em estado de alto risco (desacordada, quase falecida, desnutrida), mas ainda com vida, e o pai, diante dessa situação de perigo nada fez (omitiu-se), responde por homicídio culposo por omissão (crime omissivo impróprio ou comissivo por omissão, decorrente de comportamento anterior do próprio agente, que gerou a situação de risco e, depois, podia agir para evitar o resultado e não agiu). Claro que, seja numa ou noutra hipótese, cabe perdão judicial (o homicídio culposo admite o perdão judicial quando a infração atinge o próprio agente de forma grave – CP, art. 121, § 5º).
Problema processual: considerando-se que o juiz somente pode conceder o perdão judicial na sentença que encerra o conflito, é pratica corrente (é da praxis) que mister se faz instaurar o devido processo criminal, colher provas e somente no final é que o perdão judicial terá incidência. Isso significa, na vida real, que o agente sofre uma dupla punição: a primeira decorrente do seu próprio ato (perda de um filho, por exemplo); a segunda consiste na obrigatoriedade de responder a um processo criminal que, por si só, já constitui um sério constrangimento.
Aqui reside mais um ponto em que o processo penal está totalmente defasado em relação ao Direito penal. Se o Direito processual penal é instrumental, ou seja, se ele serve (primordialmente) para a aplicação do Direito penal, não há dúvida que o Parlamento brasileiro deve atualizar o CPP nesse ponto para permitir, já no limiar da ação penal, que o juiz, de plano, reconheça o perdão judicial.
Haveria, pelo menos, dois caminhos que poderiam ser seguidos: ou se muda a lei para permitir a realização de uma simplificada e rápida instrução probatória (cabendo ao juiz decidir tudo imediatamente já no momento do juízo de admissibilidade da ação), ou, o que é melhor, altera-se a legislação vigente para instituir uma espécie de plea bargaining: mediante acordo, numa só audiência, com as presenças obrigatórias do Ministério Público e do Defensor, prontamente tudo poderia ser encerrado com a sentença judicial, evitando-se as cerimônias degradantes do processo criminal, despesas judiciais inúteis, emperramento da Justiça criminal etc.
A palavra está com o legislador brasileiro, que tanta preocupação tem demonstrado com a violência no nosso país. De qualquer modo, não se pode prosseguir concebendo que o perdão judicial, em casos induvidosos, continue sendo concedido na forma atual. É excessivo e desproporcional compelir o agente, que já foi punido pelo próprio fato, a se submeter a um longo, penoso, degradante e desnecessário processo criminal.