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O problema da classificação dos bens jurídicos sob a ótica do direito civil-constitucional

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RESUMO: O presente artigo trata da análise do problema da classificação tradicional dos bens jurídicos no Direito Civil. Analisa-se a incompatibilidade desta com o ordenamento jurídico brasileiro, sob o enfoque da Constituição Federal de 1988. Além disso, busca-se propor caminhos para uma nova classificação dos bens, fundadas em sua essencialidade frente à pessoa humana, observando os objetivos e princípios constitucionais que orientam o Direito Civil.

PALAVRAS-CHAVE: classificação de bens, Direito Civil-Constitucional, essencialidade.


1. Introdução

                        A Constituição Federal de 1988 trouxe ao Direito Civil uma nova perspectiva no que concerne às diretrizes que devem orientar a interpretação das normas e sua eficácia social. Os princípios elencados em seu texto contribuem para uma visão inovadora da função do ordenamento jurídico como um todo. Houve, através desse processo, uma priorização da pessoa humana em detrimento dos valores essencialmente patrimonialistas, ou seja, a valorização do ser em prejuízo do ter.

                        A implementação desse novo paradigma refletiu-se no sistema do Código Civil de 2002, o qual, diferentemente da codificação anterior, passou a considerar a pessoa como seu centro e fundamento. Assim, os princípios gerais e os institutos do Direito Civil sofreram uma modificação no sentido de promoverem sua despatrimonialização. A positivação desse novo pensamento deu-se com a recodificação e a vigência do Código Civil de 2002.

                        Em sentido contrário ao que era proposto no Código Civil de 1916, regido pelo individualismo e patrimonialismo, o novo Código se pauta pelos princípios da eticidade, socialidade e operabilidade. O primeiro traduz-se na preocupação do legislador com o ser humano em concreto, e não com a pessoa em abstrato. Já o segundo determina a prevalência dos valores coletivos sobre os individuais, preservando, entretanto, o valor fundamental da pessoa humana. A operabilidade, finalmente, reconhece ao intérprete a capacidade de operar o Código de modo a melhor adequá-lo ao caso concreto. Tal princípio caminha alinhadamente ao princípio da eticidade. O art. 5° da LICC revela este espírito ao afirmar: "Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum".

                        Ocorreu, assim, a funcionalização do Direito Civil, que, como define o Professor Paulo Nalin [01], é a oxigenação das bases jurídicas fundamentais com elementos sociológicos, filosóficos, históricos, econômicos e éticos, como meios de análise de direito em atenção à sua função social, objetivando satisfazer as demandas sociais em prol de uma ordem jurídica e social mais justa. Visa-se, portanto, a concretização dos princípios constitucionais, associados ao objetivo fundamental da Constituição, qual seja, a erradicação da pobreza e da marginalização. Conforme o Professor Gustavo Tepedino [02], este quadro configura a "verdadeira cláusula geral de tutela e promoção da pessoa humana". Um exemplo de tal inovação seria a inclusão da função social atribuída ao instituto da propriedade no novo Código Civil [03].

                        A pessoa agora é considerada como valor máximo do ordenamento, delimitando o exercício da autonomia privada, em seus mais variados aspectos, criando novos critérios de legitimidade para a análise de toda a atividade econômica.

                        Apesar de toda a reformulação da civilística, concretizada formalmente com o novo Código, o direito positivo ainda conserva resquícios da visão patrimonialista da doutrina individualista desenvolvida a partir da Revolução Burguesa e do triunfo do liberalismo econômico na sociedade. O presente artigo procura apontar uma destas contradições, representada pela defasada classificação dos bens jurídicos, presente no Livro II do C.C., a qual reproduz literalmente o disposto no Código Civil de 1916.

                        Os bens jurídicos continuam sendo analisados sob uma perspectiva estritamente patrimonialista, a qual leva em consideração o valor do bem somente quanto ao seu aspecto pecuniário, negligenciando a função social que lhe cabe. Segundo a ótica do Direito Civil-Constitucional, esta é uma contradição inaceitável, pois compromete a unidade do sistema jurídico.


2. A classificação tradicional dos bens jurídicos na esfera do Direito Civil

                        Para um melhor esclarecimento acerca da classificação adotada no Código Civil brasileiro, é importante diferenciar "coisa" e "bem".

                        Segundo Teixeira de Freitas [04], coisa tem por definição tudo aquilo que possui existência material, seja suscetível de valoração e, conseqüentemente, possa ser objeto de apropriação. Conclui-se que a noção de coisa conecta-se, a priori, à de substancia.

                        Existem coisas que não são apropriáveis embora sejam úteis, sendo, portanto, denominadas res communes, dentre as quais podemos destacar o ar, a luz, as estrelas, o mar. Assim, as coisas comuns são de todo mundo ao mesmo tempo em que não são de ninguém. Há também as coisas que podem ser apropriadas, porém não pertencem a ninguém, como é o caso dos animais de caça, dos peixes e das coisas abandonadas (res derelictae).

                        Tudo o que tem valor e, por esse motivo, adentra no universo jurídico como objeto de direito, é um bem. Evidencia-se, portanto que a utilidade e a possibilidade de apropriação são o que dão valor às coisas, transformando-as em bens. Francisco Amaral, adentrando no tema, explica:

                        O conceito de bem é histórico e relativo. Histórico, porque a idéia de utilidade tem variado de acordo com as diversas épocas da cultura humana, e relativo porque tal variação se verifica em face das necessidades diversas por que o homem tem passado

[05].

                        O nosso Código adota o conceito de bem como sendo, nas palavras de Clóvis Beviláqua, "valores materiais e imateriais que servem de objeto a uma relação jurídica." [06]

                        Isto posto, verifica-se que o atual Código Civil classifica os bens quanto à sua natureza, à possibilidade de comercialização em relação a outros bens e à pessoa.

                        Quanto à sua natureza, os bens dividem-se em: corpóreos e incorpóreos; móveis e imóveis; consumíveis e inconsumíveis; fungíveis e infungíveis; divisíveis e indivisíveis; singulares e coletivos.

                        Bens corpóreos são aqueles cuja existência é perceptível pelos sentidos, ou seja, os objetos materiais. Os bens incorpóreos possuem existência abstrata ou intelectual, como é o caso dos direitos e dos valores.

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                        Bens consumíveis são os móveis que se destinam à alienação e os que se extinguem com o consumo, ao passo que os bens inconsumíveis são aqueles que, mesmo com a utilização contínua, não se destroem substancialmente.

                        Bens divisíveis são passíveis de fracionamento sem alteração de sua substância, diminuição considerável de valor, ou prejuízo de uso para o fim que se destinam; em contrapartida, os bens indivisíveis são os que implicam em alteração de substância, diminuição de valor e prejuízo de uso. Vale ressaltar que o critério da divisibilidade não corresponde à divisão física, uma vez que, para o mundo jurídico, o que importa é que a divisibilidade não gere desvalorização econômica.

                        Bens singulares são os que, analisados em sua individualidade, distinguem-se de todos os outros, enquanto os bens coletivos, também denominados universais, são constituídos por um conjunto de bens singulares e formam um todo unitário.

                        Bens fungíveis são móveis que podem ser substituídos por outros de mesma espécie, quantidade e qualidade, de modo que os bens infungíveis são aqueles que não suportam tal substituição.

                        E, finalmente, os bens móveis possuem movimento próprio ou são suscetíveis de locomoção por força alheia, sempre sem danificar sua substância ou sua destinação sócio-econômica. Subdividem-se, então, em: genéricos e individuais; fungíveis e não-fungíveis; consumíveis e não-consumíveis; divisíveis e indivisíveis; singulares e coletivos. Bens imóveis, por sua vez, são aqueles que não podem ser removidos sem que ocorra a danificação de sua substância, e subclassificam-se em: imóveis por natureza, imóveis por acessão física e imóveis por disposição legal.

                        No que concerne à pessoa do titular, os bens podem ser públicos e privados. Bens privados são aqueles que pertencem às pessoas privadas, conforme preceitua o art. 98 do Código Civil brasileiro [07]. Bens públicos são os bens pertencentes a pessoas jurídicas de direito público interno, ou seja, a União, os Estados, o Distrito Federal, os Territórios, os Municípios, as autarquias e as demais entidades públicas. Subdividem-se em: de uso comum, de uso especial e dominicais.

                        Quanto à comerciabilidade, os bens classificam-se em comerciáveis e incomerciáveis. Os bens comerciáveis, ou res in commercio, são aqueles que são suscetíveis de alienação, em contrapartida aos bens incomerciáveis (res extra commercium), também conhecidos como indisponíveis, que não são passíveis de alienação ou apropriação. Estes, por sua vez, subdividem-se em: (a) insuscetíveis de apropriação por natureza; (b) legalmente inalienáveis; e (c) inalienáveis por vontade humana.


3. O problema da classificação tradicional dos bens

                        Partindo-se de uma abordagem constitucional do Direito Civil e tendo em vista a sua repersonalização, abre-se espaço para um questionamento a respeito da classificação tradicional dos bens e dos regimes jurídicos aos quais eles se submetem. É necessário analisar se as disposições trazidas pelo Código Civil de 2002 sobre este tema são suficientes para solucionar os problemas que se impõem no âmbito da realidade social, e se efetivamente contribuem para a realização dos princípios ditados pela Constituição e assimilados pelo Direito Civil, como a dignidade humana e a busca pela justiça, os quais são guiados por um espírito coletivista de sociedade.

                        Embora seja consenso que os bens só são assim considerados se detentores de utilidade para os homens, passíveis de apropriação e, conseqüentemente, suscetíveis de valoração, não é coerente com uma visão que priorize a pessoa humana que os bens sejam classificados tão somente em relação ao seu aspecto econômico, sendo ignorada sua função social. O Professor Pietro Perlingieri frisa que:

                        A esfera de influência da função social é destinada a alargar-se, já que a garantia contida no art. 42 da Constituição (italiana) não pode ser circunscrita à propriedade, mas deve interessar toda e qualquer forma de pertinência (appartenenza) da riqueza [08].

                        A concepção extremamente patrimonialista na qual se pauta a classificação dos bens anteriormente apresentada é plausível no contexto do liberalismo econômico, mas se mostra anacrônica quando transportada para a legislação de um Estado que se pretende de Bem Estar Social.

                        3.1. O viés histórico da classificação de bens e seu contexto atual

                        Observando-se a trajetória histórica da construção da classificação dos bens, nota-se que a separação em grupos sempre reproduziu os fatores sociais e econômicos predominantes da época. Assim, já no Direito Romano, os bens se dividiam em res mancipi, que englobavam os bens importantes para a agricultura (principal atividade econômica da época) e os bens rec nec mancipi, que compreendiam todos os restantes.

                        A divisão entre bens móveis e imóveis, por sua vez, desenvolveu-se a partir do Código de Justiniano e perdura até hoje, porém não sem alterações em seu sentido, significado e relevância. No Direito positivo brasileiro, os bens imóveis encontraram na positivação um regime jurídico que lhes proporcionou uma especial proteção, justificada por sua evidente relevância social, motivo pelo qual, entre outras características que o distinguem dos demais, só os imóveis possam ser bens de família e, portanto, impenhoráveis (como regra geral).

                        Também a distinção entre bens públicos e privados foi modificada ao longo dos anos e passa a ser questionável, uma vez que o Estado brasileiro, desaparelhado em função de uma série de privatizações realizadas sob a ótica neoliberal e de mãos atadas em função de diversos contratos celebrados que não atendem ao interesse público, não tem mais condições de realizar integralmente seus deveres. O âmbito público, portanto, não se confunde com o interesse social em toda sua amplitude, e garantir tratamento especial para os bens públicos não significa proteger a totalidade dos bens relevantes para a viabilização do exercício de direitos previstos na Constituição.

                        No entanto, o Direito positivo atual, no concernente ao assunto aqui abordado, não acompanha a imensa complexidade social à qual estamos sujeitos hoje, tampouco traduz o espírito da unidade do sistema jurídico, irradiado pela Constituição Federal. Analisando o tema a partir dos princípios que fundamentam a nova perspectiva de Direito Civil, se faz imperiosa a necessidade de uma classificação dos bens jurídicos que incorpore a tendência da nova codificação, redundando na proteção especial de alguns bens ora desamparados, oferecendo-lhes um regime jurídico diferenciado, de acordo com sua utilidade para a promoção do desenvolvimento social e da pessoa humana em sua plenitude.

                        Neste sentido, Biondo Biondi, conforme cita Francisco Amaral [09], afirma que o critério da classificação está sendo revisto, buscando substituir-se a idéia de importância, pela de interesse social, público ou coletivo, o que sugeriria uma especial disciplina para cada coisa ou categoria.

                        A própria Constituição Federal elege em seu texto alguns bens que devem se submeter a um regime jurídico diferenciado, a partir deste novo critério, como se afere do art. 150, inc. VI, alínea d, por exemplo, que dispõe que é vedado à União instituir impostos sobre livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão, claramente buscando incentivar o desenvolvimento da indústria literária e de informação, devido ao seu fundamental papel social no Estado Democrático de Direito. Destarte, percebe-se que a Carta Magna faz uma ponderação ao tratar dos bens, privilegiando os que possuem maior instrumentalidade para a concretização de seus princípios. Ainda que o faça de maneira assistemática, não se pode ignorar esta opção do constituinte.

                        O legislador optou também em outros momentos pela tutela diferenciada para bens de maior relevância, como é o caso do bem de família e o regime especial destinado à obrigação de prestar alimentos. O que se sugere aqui é que esta tutela diferenciada não se destine apenas a algumas situações pontuais, mas que ela abranja a universalidade das situações nas quais determinado bem jurídico é fundamental para a satisfação das necessidades existenciais elementares de um sujeito.

                        A classificação ora proposta tem como cerne a função social desempenhada pelo bem. A criação de novas categorias, a partir deste aspecto, não implica, entretanto, necessariamente, na extinção das classes hoje utilizadas. Ela seria, antes, uma complementação com o objetivo de sanar esta lacuna relativa à consideração da utilidade dos bens somente sob seu aspecto econômico.

                        3.2. A utilidade como fundamento para a criação de novas categorias

                        Conforme anteriormente mencionado, o civilista Francisco Amaral chama a atenção para o fato de que o conceito de um dos fundamentos determinadores da existência dos bens como tais, qual seja, a utilidade, é uma construção histórica e, portanto, relativa. Desta forma, é natural que, de acordo com a variação do conceito da utilidade do bem, variem também as categorias nas quais eles devam ser incluídos.

                        Do latim utilìtate, o significado do termo "utilidade", de acordo com sua etimologia, se traduz como "faculdade de se servir ou de fazer uso, utilidade, proveito, vantagem". O conceito de utilidade aqui escolhido, a partir das premissas já apresentadas, na busca pela vertente social de sua significação, encontra-se como uma das acepções possíveis no Dicionário da Língua Portuguesa Houaiss, no item 3 referente a este substantivo, que assim o define: "capacidade de um bem ou serviço de satisfazer as necessidades humanas". Por extensão, na mesma fonte, a expressão "utilidade pública" é descrita como: "tudo o que representa necessidade e proveito da coletividade".

                        Adequado neste ponto resgatar o entendimento do professor Luiz Edson Fachin, que afirma:

                        O conceito de necessidade pode (e deve) migrar de uma conformação meramente formal para uma expressão econômica e social. E essa migração pode se encontrar justificada pelo direito fundamental a uma vida digna. Ao Direito, pois, incumbe o socorro a essa legítima ação, em homenagem à pessoa e suas necessidades básicas, que pode estar calcada nos princípios constitucionais que garantem o respeito à vida

[10].

                        Neste contexto, importante salientar também as palavras de Mota Pinto, que determina que só podem ser objeto de relações jurídicas aqueles bens que tenham aptidão para satisfazer interesses ou necessidades humanas. Ademais, afirma que o homem é a medida e o critério do relevo jurídico das coisas; por isso não são coisas, pois para nada servem, uma gota de água, um grão de areia, etc [11].

                        Baseada nestes conceitos, a classificação que se pretende construir deve levar em consideração a capacidade dos bens de atender às necessidades humanas e coletivas. Perlingieri aponta, neste sentido:

                        Em um ordenamento que se caracteriza pela socialidade e que legitima a superação individualista do indiferente jurídico, o próprio regime jurídico – ainda que representado por princípios e não por normas regulamentares – deve concernir às utilidades individuais e sociais. Isso permite considerar juridicamente relevantes não somente os bens patrimoniais, mas também aqueles não-patrimoniais; isto é, aqueles que são protegidos prescindindo da própria relevância econômica

[12].

                        Assim, o critério fundamental de seleção deve ser o da essencialidade do bem frente à pessoa humana. A idéia de bens essenciais, em oposição aos bens supérfluos, remonta, neste contexto, primeiramente, àqueles sem os quais não há sequer sobrevivência física, como alimentos, remédios, e, em sentido mais amplo, àqueles sem os quais não há dignidade humana, como vestimentas, energia elétrica, bem imóvel que se destina à habitação, ao lazer, à aprendizagem, etc.

                        A Declaração Universal dos Direitos Humanos nos oferece elementos para a formulação de um esboço de quais seriam os bens essenciais para a pessoa humana, ao dispor, em seu artigo 25: Todo o homem tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar, a si e a sua família, saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos (...). O documento, portanto, reconhece a importância extraordinária destes bens, elevando-os à condição de garantidores do exercício dos direitos humanos.

                        3.3.Da necessidade de uma tutela diferenciada para determinados bens

                        Cabe aqui ressaltar que a ratio desta nova classificação não se encerra na necessidade de coerência teórica e de unidade do ordenamento, mas se justifica na prática social e jurídica. O legislador, ao não contemplar na codificação de modo apropriado a função social do bem, deixa desprotegidos os sujeitos que dela dependem para o exercício de um direito. Estes referidos bens essenciais devem ser merecedores de tutela diferenciada, que os resguardem e ofereçam ao seu titular uma segurança jurídica maior.

                        Assim, poderia-se, por exemplo, partindo dessa premissa, ressalvar estes bens da possibilidade de penhora. O pequeno rol de bens impenhoráveis apresentados nos incisos do art. 649 do Código de Processo Civil está longe de compreender todos os bens imprescindíveis para a pessoa humana. Não é difícil imaginar aqui um caso concreto no qual a legislação seria conivente com o desrespeito ao homem, como na penhora de uma cadeira de rodas, de muletas, remédios ou quaisquer outros objetos que são fundamentais e, entretanto, não encontram proteção especial no ordenamento.

                        Ainda que a lei 8.009/90, relativa ao bem de família, tenha estendido a garantia prevista no artigo 649 do CPC ao imóvel sobre o qual se assentam as construções, às plantações, às benfeitorias de qualquer natureza e a todos os equipamentos, inclusive os de uso profissional e aos móveis que guarnecem a casa, não se pode garantir que todos os bens essenciais para a família, ou para um determinado indivíduo, ou ainda para uma outra coletividade, estarão também preservados da possibilidade da penhora. Novamente recorrendo a casos hipotéticos, uma visão positivista da lei entenderia como possível a penhora de um carro adaptado às deficiências físicas de uma pessoa, utilizado para locomoção desta, uma vez que a própria lei do bem de família determina que os veículos de transporte poderão ser objeto de penhora, deixando de fazer qualquer ressalva à possibilidade mencionada.

                        Não se trata, no entanto, de falha do Código de Processo Civil ou da Lei do bem de família. É sabido que lei alguma seria capaz de suprir todas as possibilidades emergentes na realidade social. Faz-se necessária a criação de uma nova consciência, que permeie a dogmática e informe a atividade jurisdicional, refletindo-se na legislação positiva e viabilizando a instauração de um regime jurídico diferenciado para os bens essenciais. Ou, como sugere Teresa Negreiros, trata-se de uma mudança de paradigmas. Em seu livro "Teoria do Contrato – novos paradigmas" a autora construiu os alicerces para uma teoria baseada no "paradigma da essencialidade". Segundo ela:

                        Por meio do paradigma da essencialidade – distinguindo-se os interesses existenciais dos interesses apenas patrimoniais e submetendo estes àqueles -, o direito civil e o seu estudioso talvez possam contribuir para a construção de um sistema jurídico voltado para a pessoa e para a satisfação de suas necessidades básicas [13]

.

                        A situação da penhorabilidade é apenas um exemplo das decisões injustas que a classificação puramente econômica dos bens pode acarretar, quando sujeita à discricionariedade dos juízes. Qualquer divisão de bens que ignore a função social destes para cada parte está propensa a produzir resultados inadequados. É inadmissível pensar, por exemplo, que uma mãe, com a guarda dos filhos, poderia, segundo a classificação do Código Civil, no caso da separação judicial e da conseqüente divisão de bens, ser contemplada com a propriedade de bens que, embora de valor equivalente à parte que coube ao seu ex-cônjuge, não correspondam a suas efetivas necessidades, que, em primeiro plano, seriam um bem passível de habitação, seus instrumentos de trabalho, etc. Na verdade, poderíamos citar aqui diversas hipóteses de casos concretos nas quais a seleção dos bens por seu caráter pecuniário produziria injustiças sociais.

                        Desta forma, uma classificação que observe a essencialidade do bem criaria espaço para a atuação do juiz no sentido de, amparado pela lei, buscar soluções mais justas, delimitando, no entanto, sua atuação e evitando sua completa arbitrariedade. A simples instituição destas novas categorias (essencial/supérfluo) não é suficiente para a resolução de todos os problemas neste artigo apontados e não prescinde da atividade hermenêutica dos operadores do Direito, pois a própria essencialidade é relativa e advém do caso concreto.

                        A relativização da possibilidade de determinação dos bens como essenciais não nos impede, entretanto, de estabelecer uma categoria geral de bens que se enquadrem neste segmento. Ela permite, sim, que o magistrado amplie seu alcance, de acordo com as demandas que venham a se apresentar.

                        O presente artigo não pretende de forma alguma esgotar o tema, pelo contrário, objetiva incentivar o início dos debates, ressaltando sempre a importância do assunto abordado no atual quadro jurídico e social, sob a lente do Direito Civil-Constitucional, e não hesitando em afirmar que o caminho aqui proposto tem um alvo bem definido, qual seja, contribuir com a construção de um Direito direcionado para a formação de uma sociedade mais justa e solidária, fundada no homem e realizável na coletividade.

Sobre as autoras
Madalena Alves dos Santos

bacharelanda em Direito pela Universidade Federal do Paraná

Natalia Villas Bôas Zanelatto

bacharelanda em Direito pela Universidade Federal do Paraná

Renata Regina de Oliveira

Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná Especialista em Direito: Ministério Público – Estado Democrático de Direito pela Fundação Escola do Ministério Público do Estado do Paraná Assessora jurídica na 5ª Procuradoria de Justiça Criminal do Ministério Público do Estado do Paraná.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Madalena Alves; ZANELATTO, Natalia Villas Bôas et al. O problema da classificação dos bens jurídicos sob a ótica do direito civil-constitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1410, 12 mai. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9806. Acesso em: 19 dez. 2024.

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