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Graça ou indulto individual: discussão acerca do seu objeto

Agenda 13/06/2022 às 17:30

A graça é perdão dos efeitos criminais executórios, sem apagar o fato ou efeitos secundários, como reincidência. É mera afetação jornalística dizer que o decreto gracioso a Daniel Silveira é "uma mensagem que o Presidente que enviar ao STF", pois é próprio de qualquer ato público ser discursivo, indicar diálogo, discussão e compreensão.

A graça, ou indulto individual, é a clemência destinada a uma pessoa determinada, não se referindo ao fato criminoso em si (NUCCI, Manual de Direito Penal, 12ª ed., p. 573). Em outras palavras, ela não serve para apagar o fato, mas apenas para perdoar o infrator dos efeitos criminais descritos no decreto gracioso, os quais se limitam aos efeitos executórios. Não alcança, portanto, os efeitos secundários, tais como: reincidência, classificação posterior como circunstância judicial desfavorável, inclusão no rol dos culpados, entre outros.

Os efeitos executórios derivam da condenação processual, enquanto os efeitos secundários (termo do qual não sou adepto) são consequências claras do fato em si. Nenhum instituto jurídico tem o poder de apagar um fato ou a realidade, mas está submetido a eles.

A graça pode ser plena ou parcial. É considerada plena quando alcança todas as sanções aplicadas na condenação (limitada, repita-se, aos efeitos executórios). Já a graça parcial atinge apenas parte das sanções impostas.

Cumpre salientar que a graça não está sujeita à validação judicial nem ao questionamento jurídico, uma vez que se trata de um ato de Estado e não de um ato administrativo. Em outras palavras, ela também não está sujeita à aferição de legalidade pelo Poder Judiciário. Nesse contexto, o Chefe do Executivo Nacional age in persona stati, na pessoa do Estado. Para reforçar esse entendimento, recorremos ao jusfilósofo Santi Romano:

"Bisogna vedere in che cosa la funzione amministrativa si differenzi dalle altre funzioni statuali, quale sia il suo carattere specifico. Essa si può dire che consista nell'attività concreta con cui lo Stato prosegue i propri interessi, in obbedienza o nei limiti del diritto precedentemente o contemporaneamente stabilito."

(Principii di diritto amministrativo, 2ª ed., p. 2)

Romano explica, em sequência, a razão pela qual o Poder Judiciário não pode avaliar um ato de Estado:

"Tale concetto distingue altresì l'amministrazione dalla giurisdizione: per questa l'ordinamento giuridico è fine, non limite. Fini invece dell'amministrazione sono i molteplici interessi statuali, che vengono regolati e protetti, ma non costituiti dal diritto."

(Principii di diritto amministrativo, 2ª ed., p. 3)

Adicionalmente, enquanto a condenação não transitar em julgado, a graça perde seu objeto, qual seja, o perdão dos efeitos executórios da condenação. Isso porque a execução da pena só ocorre após o trânsito em julgado, momento em que, na prática, o magistrado altera o rito, dando início à aplicação das disposições da Lei de Execução Penal. A graça é, portanto, uma das hipóteses de extinção da punibilidade, situação em que o Estado perde a prerrogativa de punir ou decide abster-se de exercê-la.


Características da graça ou indulto individual (segundo São Tomás de Aquino)

São Tomás de Aquino define a pena como poena vero (consistit) in privatione alicuius eorum, quibus utitur voluntas (Th. I. 48.6), complementando: est autem de ratione poenae, quod sit contraria voluntati, et quod sit afflictiva, et quod pro aliqua culpa inferatur (ib. I. II. 46.6 ad 2; vgl. cg. III.141; mal. 1.4.c). Ou seja, a pena consiste na privação de algo utilizado pela vontade. A razão de ser da pena é que ela contrarie a vontade, que seja aflitiva e que seja aplicada em decorrência de uma culpa.

  1. Assim, a primeira característica do indulto individual é liberar o indivíduo da privação de seu livre-arbítrio — ou seja, de sua livre eleição, de seu livre juízo, etc., no que tange a grande parte da vida comum humana no século XXI.

  2. A segunda característica é que ele seja agradável ao apetite sensitivo do homem, uma vez que a vontade humana, por razões óbvias, não se adequa ao suplício ou ao sofrimento como fim.

  3. A terceira característica é a cessação da aflição própria da pena, como a perturbação física e psíquica resultante de circunstâncias antagônicas à vontade.

  4. A quarta característica é a interrupção do raciocínio consequencial da condenação e da execução da pena, ou seja, o processo de aferição de culpa e seus efeitos.

A partir disso, fica evidente que a graça:

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Discursividade e "comunidade de comunicação": Habermas e K. O. Apel

Trazendo o tema à realidade, num claro processo de concreção (como diria Mário Ferreira dos Santos), é evidente que o motivo deste ensaio é a discussão, ainda em curso, sobre o decreto gracioso concedido pelo Presidente da República Jair Bolsonaro ao Deputado Federal Daniel Silveira, condenado por crimes pelo plenário do Supremo Tribunal Federal, além de outras sanções, como a inelegibilidade.

Habermas, cuja isenção política é inquestionável, trata, em sua Teoria Discursiva do Direito, da discursividade inerente ao ato jurídico, tomando como base o conceito de "comunidade de comunicação", desenvolvido por seu professor Karl Otto Apel. Este último eleva tal conceito ao nível de pressuposto lógico-transcendental de qualquer ato público — ou seja, de tudo o que ultrapassa a esfera privada. Trata-se da possibilidade de compreensão entre os participantes de um mesmo ordenamento jurídico ou sociedade, mediante um núcleo discursivo comum que permita o diálogo:

"É, portanto, na intersubjetividade da comunicação linguística — o linguistic turn — que K. O. Apel decifra esse a priori, na medida em que é a dimensão transcendental de qualquer comunidade de comunicação e, portanto, a condição de validade de qualquer compreensão."

(Simone Goyard-Fabre, Os fundamentos da ordem jurídica, p. 300)

Conforme exposto anteriormente, o elemento linguístico/discursivo, tomado como transcendental, é, de certo modo, a experimentação adequada dos fatos (forma a priori) que se opõe à intuição, permitindo a compreensão. Nesse sentido, Habermas estabelece três condições de comunicação, também denominadas exigências de validade "contrafactuais": verdade, sinceridade e justiça. Em outras palavras, esses elementos podem ser transpostos como conhecimento, desenvolvimento pessoal e ética. Assim, essas condições refletem os temas centrais do método socrático e, portanto, da Filosofia. Simone Goyard-Fabre, ao tratar da descoberta de Habermas, explica:

"Kant tem razão contra Hegel: os enunciados éticos e jurídicos, diferentemente dos enunciados científicos, necessitam de uma legitimação, que pode ser assumida, diz J. Habermas, pela via processual da discussão."
(Simone Goyard-Fabre, Os fundamentos da ordem jurídica, p. 305)

A discussão, debate ou disputatio é uma das formas próprias da Filosofia em seu método. Quando juristas e jornalistas se dedicam à análise da constitucionalidade ou não de um decreto presidencial, eles partem do pressuposto da intersubjetividade, a qual prevalece mesmo entre os discursos mais antagônicos. Essa intersubjetividade permite que haja diálogo e compreensão, culminando em um enunciado que pode ou não ser aceito. No Direito moderno, a legitimidade do ato público está parcialmente vinculada à consensualidade em relação aos termos adotados:

"(...) a essência da normatividade já não reside no ordenamento racional da Natureza, nem na razão como marca da natureza humana, nem na postulação de uma ciência dedutiva e causal da realidade social. Pertence à consensualidade das máximas da ação intersubjetiva."
(Simone Goyard-Fabre, Os fundamentos da ordem jurídica, p. 307-308)

Karl Otto Apel, por sua vez, acerta ao identificar essa intersubjetividade como um "fundamento lógico-transcendental", isto é, a possibilidade de comunicação entre os indivíduos e a certeza (ou ao menos o presságio) de que haverá compreensão (comunidade de comunicação). Esse fundamento constitui um dos pilares da aplicabilidade social do Direito, ainda que não se confunda com o direito em si (fato jurídico). Assim, ele é anterior e, ao mesmo tempo, elemento essencial da operação jurídica ("lógico"), além de ser indispensável ("transcendental") para a interação entre indivíduos como seres dialogantes.

Explicando em detalhes: como realista na Filosofia do Direito, reconhecemos o real, incluindo nele a ordem, como o fundamento do Direito. Contudo, é inegável que a aplicação do Direito a um povo específico depende da existência de uma comunidade que "fale a mesma língua", especialmente no que diz respeito à moral e, consequentemente, ao Direito.

Com base nessa análise, fica evidente que é mera afetação jornalística afirmar que o decreto gracioso constitui "uma mensagem que o Presidente da República deseja enviar ao STF". Isso porque é da própria natureza dos atos públicos, com efeitos jurídicos, serem discursivos, ou seja, indicarem diálogo, discussão e compreensão.


Efeitos dos institutos desaprisionadores: o paradigma da mortificação, segundo São João da Cruz

Cada indivíduo possui uma alma, e a mortificação é o processo de purificação de tudo aquilo que a impede de ser cristalina, tal como o Criador a fez. Um dos principais motivos de máculas na alma são os apetites, verdadeiras desordens quando voluntários.

Há, porém, uma distinção essencial: existem apetites naturais, que não maculam a alma, e apetites voluntários, que a maculam. Podemos definir os apetites naturais como aqueles localizados no instinto humano e derivados de uma existência ordenada e comum — por exemplo, a fome legítima ou o prazer proporcionado pela música. Gostar de uma música de forró, por exemplo, não impede ninguém de alcançar Deus. Todavia, há apetites que são voluntários, pois exigem assentimento da vontade e um movimento desiderativo desordenado. Esses, ao contrariarem a ordem natural do homem, situam-se na alma, sede da razão e da vontade, e podem até mesmo contaminar os sentidos.

São João da Cruz ensina que os apetites causam dois efeitos principais na alma:

Esses dois efeitos podem ser entendidos, respectivamente, como males privativos e positivos (A Subida do Monte Carmelo, Livro I, Capítulo VI, 1). Assim, o roubo, a corrupção, o furto e outros crimes maculam a alma e, quando o criminoso é perdoado, ele é liberado do processo de mortificação necessário.

O governante que concede a graça deve estar consciente de que a pena, mesmo quando cumprida em parte, ou os próprios efeitos normais do processo (como a vergonha pública e as medidas restritivas processuais) são instrumentos que podem ter gerado no apenado a mortificação necessária para desenvolver o hábito da prudência e do autocontrole. Por essa razão, a Constituição Federal considera a graça uma medida excepcional, cuja aplicação não foi detalhadamente regulamentada, deixando tal tarefa à jurisprudência.

Por outro lado, um governante que concede graça a um apenado não contrito age de forma irresponsável e fomenta o escândalo. São João da Cruz compara o criminoso ao "cão" que se alimenta das coisas criadas (A Subida do Monte Carmelo, Livro I, Capítulo VI, 3). Essa analogia refere-se ao movimento desordenado que privilegia as coisas criadas acima de Deus, um comportamento característico do criminoso, que é equiparado a um animal irracional, desprovido do conhecimento de Deus. Contudo, Deus, como princípio de toda a Criação, ainda move esse ser em direção ao bem.

São João da Cruz também nos ensina que o tormento depende da força do apetite (A Subida do Monte Carmelo, Livro I, Capítulo VII, 2). Portanto, a pena e seu cumprimento devem ser justos em relação ao crime cometido. Retornamos, assim, ao tema da mortificação necessária: tanto a graça quanto qualquer medida despenalizadora devem adotar esse parâmetro espiritual como uma condição sine qua non.

O caso em análise demonstra um gesto bondoso do Presidente da República em relação ao sofrimento indevido do Deputado Daniel Silveira, submetido ao jugo cruel do Ministro Alexandre de Moraes, que lhe impôs diversas medidas ilegais e desproporcionais.


Considerações finais

Por fim, cumpre salientar que os fundamentos aqui citados — as características da graça, à luz do conceito tomista de pena; a discursividade do ato jurídico, segundo a tradição kantiana; e o paradigma da mortificação necessária — foram selecionados devido à sua proximidade com o caso do Deputado Daniel Silveira.

Os temas são, sem dúvida, dignos de maior e mais aprofundado desenvolvimento. No entanto, a dedicação e o rigor exigidos para tal tarefa deixo a outra pessoa, enquanto direciono meus esforços para a produção de novos artigos sobre os problemas da Justiça, do Direito e do Poder Judiciário, analisados sob as perspectivas da filosofia, da história e da teologia — quem sabe até da literatura.

O simples elencar das características da graça, conforme São Tomás de Aquino, já sugere a necessidade de um estudo mais detalhado de cada um desses aspectos para futuros trabalhos, ainda na ótica do Doutor Angélico.

A tradição kantiana do Direito, por sua vez, oferece boas soluções para alguns dos problemas mais urgentes dessa ciência. A discursividade e a ideia de comunidade de comunicação são condições indispensáveis para a aplicabilidade do ordenamento jurídico aos casos concretos que nele se confrontam. Acusar o Presidente da República de "passar uma mensagem" aos Ministros do Supremo Tribunal Federal, por meio do decreto gracioso, parece revelar um intento de fomentar antipatia ou desavença institucional com efeitos potencialmente graves. Como bem destaca Eric Voegelin, a decisão judicial é um símbolo da ordem ou da desordem de uma sociedade.

Por outro lado, o olhar platônico de São João da Cruz sobre os problemas causados pela matéria à alma nos faz compreender a mortificação como um requisito essencial para a concessão de medidas que, como eu denominei, são desaprisionadoras. No caso de Daniel Silveira, a prisão e a execução da pena caracterizam-se por um chamado à exclusão e à solidão, o que contraria os apetites desordenados que se voltam para as coisas criadas. Se solto um apenado ou eximo um condenado do cumprimento de sua pena, é porque vejo nele a contrição necessária para viver normalmente em sociedade. Caso contrário, não concedo o indulto individual.

Deixo-vos, enfim, com este modesto texto/artigo.

Sobre o autor
Eric Hugo Albuquerque de Araújo

Advogado. Pós-graduando em Psicologia Forense no Sistema Penal. Membro-associado do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARAÚJO, Eric Hugo Albuquerque. Graça ou indulto individual: discussão acerca do seu objeto. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6921, 13 jun. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/98507. Acesso em: 16 mar. 2025.

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