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Confraria municipalista:

ensaio panorâmico sobre a Lei n. 14.341/2022

Agenda 04/07/2022 às 16:15

Com a regularização da associação municipal abre-se oportunidade aos gestores locais que não possuem representação parlamentar oriunda de suas cidades para fazer lobby em conjunto perante o Congresso Nacional.

No dia de 18 de maio de 2022, foi promulgada a Lei n. 14.341/2022. Esta lei disciplina a associação de municípios para a realização de objetivos de interesse comum de caráter político-representativo, técnico, científico, educacional, cultural e social (art. 1º). A nosso ver, está regulamentada a confraria municipalista.

Etimologicamente, confraria é a junção do prefixo com + frade (irmão), juntos, numa tradução livre: vamos juntos, irmão! Refiro-me à etimologia partindo do pressuposto: caminhar juntos ecoa os brados da fraternidade: o terceiro vértice da revolução francesa.

Um exemplo de confraria municipal é a atual FNP Frente Nacional de Prefeitos, entidade que agrega municípios a partir de 80 mil habitantes ou de regiões metropolitanas. Doravante, com a regulamentação promulgada, municípios menores, muitos dos quais sobrevivem as duras penas com o orçamento limitado sob a dependência de repasse do fundo nacional dos municípios (CR, 159, inciso I, b), a partir de lei poderão juntar-se para constituir associação político-representativa para persecução dos fins previstos no art. 1º, da r. norma.

A saber, a FNP desempenhou um trabalho fundamental durante a pandemia.

Os municípios que integram a FNP formado por lideranças dos mais variados matizes ideológicos do campo político, puderam multiplicar forças políticas com o fito de garantir a vacina contra o vírus da COVID-19, assim como dialogar e constituir ações de enfretamento na e da pandemia, com respeito a autonomia dos entes federativos (23, II, CR/88), garantindo de forma concreta o respeito ao direito fundamental à vida e à incolumidade pública, conforme restou assentado no aresto do STF, ADIN n. 6341.

A novel lei permite a associação municipalista apenas para fins não econômicos, observados os requisitos do art. 2º:

I - constituição da entidade como:

a) pessoa jurídica de direito privado, na forma da lei civil; ou

b) (vetado);

II - atuação na defesa de interesses gerais dos Municípios;

III - obrigatoriedade de o representante legal da associação ser ou ter sido chefe do Poder Executivo de qualquer ente da Federação associado, sem direito a remuneração pelas funções que exercer na entidade;

IV - obrigatoriedade de publicação de relatórios financeiros anuais e dos valores de contribuições pagas pelos Municípios em sítio eletrônico facilmente acessível por qualquer pessoa;

V - disponibilização de todas as receitas e despesas da associação, inclusive da folha de pagamento de pessoal, bem como de termos de cooperação, contratos, convênios e quaisquer ajustes com entidades públicas ou privadas, associações nacionais e organismos internacionais, firmados no desenvolvimento de suas finalidades institucionais, em sítio eletrônico da internet facilmente acessível por qualquer pessoa.

Destaque na nova lei: somente os gestores públicos que estiverem no curso de mandato ou recém-saído do cargo é que poderão representar à frente da entidade, consoante dispõe o inc. II. Quanto a vedação do inc. II, trata-se de uma cautela para evitar o uso da associação para fins político-partidário contra aquele(a) que vier estar à frente da nação amanhã ou depois, conforme consta do inc. II, do art. 4º, da r. lei.

Outra observação é a proibição de atuação político-partidária e religiosa, inc. II, do artigo 4º. Fundamental essa vedação expressa, inclusive para impedir assédio de líderes religiosos que buscam na política partidária satisfazer interesses antirrepublicanos, a exemplo da anistia bilionária dada pelo Congresso Nacional com aval da presidência da república (ano 2020) em favor de templos religiosos inadimplentes com o fisco quanto ao recolhimento da CSLL (contribuição social sobre o lucro líquido).

É proibido o recebimento de contraprestação financeira, salvo o pagamento de verbas de natureza indenizatória estritamente relacionadas ao desempenho das atividades associativas, inc. III, do art. 4º;

E, a proibição do art. 6º, que fixou quarentena de 180 dias para contratação como empregado ou fornecedor ou prestador de serviços à associação municipalista, assim ementada; vejamos:

inc. III - vedação à contratação, como empregado, fornecedor de bens ou prestador de serviços mediante contrato, de quem exerça ou tenha exercido nos últimos 6 (seis) meses o cargo de chefe do Poder Executivo, de Secretário Municipal ou de membro do Poder Legislativo, bem como de seus cônjuges ou parentes até o terceiro grau.

Sendo a r. associação uma reunião de entes federativos autônomos congregados em torno de um escopo comum, não se poderia imaginar outro caminho senão a submissão de todas despesas/gastos e contas à fiscalização dos Tribunais de Contas.

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Quanto à forma jurídica da associação, os municípios poderão constituir associação para fins não econômicos, segundo o modelo previsto no inc. I, do art. 41, do Código Civil de 2002, Lei n. 10.406/2002, com esteio na alínea a, do inc. I, do art. 2º, da lei em comento.

Conforme consta da CRFB/88, em seu art. 30, inc. I, a finalidade associativa terá como escopo tutelar o interesse comum municipal no campo da educação, esporte e cultura. Neste ponto, a dúvida teleológica que surge da redação do inc. III, do art. 3º, é que entre as questões de competência municipal entra também a saúde, não contemplada no r. verbete, verbis: III - desenvolver projetos relacionados a questões de competência municipal, como os relacionados à educação, ao esporte e à cultura. Ora, se o fim colimado são questões municipalistas, dar-se-á interpretação teleológica para sanar essa e outras dúvidas legislativas que advirão quanto o alcance da norma.

O interesse geral (II, art. 2º) previsto na lei não deixa ser outra coisa senão o interesse local já previsto na CRFB/88, inc. I, art. 30. O escopo-final da norma é a melhoria da qualidade de vida dos munícipes por meio da associação municipalista; o meio para a consecução desse fim, é garantir que os serviços públicos devem permitir que o homem se desenvolva nos níveis intelectual e espiritual (Béjar Rivera, 2016, p. 21), elevando a condição financeiro-econômica, espiritual e moral na vida dos citadinos.

Não podemos deixar de comentar a importância da r. regulamentação associativa sob interesse comum (art. 1º), principalmente no que se refere ao disposto no art. 3º, inc. IV - manifestar-se em processos legislativos em que se discutam temas de interesse dos Municípios filiados. Considerando que muitos municípios vivem do FPM Fundo de Participação dos Municípios (art. 159, inciso I, b, CRFB/88), com a regularização da associação municipal, exsurge a oportunidade a esses gestores locais que não possuem representação parlamentar oriunda de suas cidades, a fazer lobby em conjunto perante o Congresso Nacional, conforme previsto no inc. IV, alhures.

Ora, convém recordar que, no final do ano de 2019, o min. da Economia, Paulo Guedes, encaminhou proposta de Emenda à Constituição, conhecida como pacto federativo, visando desvincular todas as receitas com saúde e educação; a proposta também visava extinguir municípios com até 5 (cinco) mil moradores, que não possui autonomia financeira; se levada a cabo, extinguiria quase oitocentos municípios, sem contar os milhares de cargos públicos e tudo que estiver interligado.

O Brasil possui 5.570 municípios. Deste total, 1253 tem até cinco mil habitantes e, deste total, setecentos e sessenta e nove arrecadam menos de 10% de suas receitas. 769 é o número de cidades que poderiam ser extintas.

Voltando à confraria municipalista: a reunião em torno de interesses comuns é antiga na história humana, Fustel de Coulanges no clássico A Cidade Antiga nos diz que a cidade e urbe não eram palavras sinônimas entre os antigos. A cidade era associação religiosa e política das famílias e das tribos; e a urbe era o local de reunião, o domicílio e, sobretudo, o santuário dessa associação (Coulanges, 2009, p. 111). Que as cidades nascem da união das tribos, com as famílias e as fátrias, a princípio, todas independentes, por força do culto religioso que cada qual prestava, porém, uma vez decididos reunir-se sob o interesse comum de que cada qual respeitaria o culto da outra, dessa união nasceu as cidades.

Da lição de Foulanges aprendemos que as cidades nascem a partir do respeito a crença comum do próximo, e, uma vez respeitando-o, mutuamente, dá-se origem às cidades como corpus político organizado para os fins de promover aquilo que Aristóteles chama de vida boa.

O ser humano é dialogal, dado à abertura; nesse sentido, a lei n. 14.341, de 18 de maio de 2022 é um convite ao diálogo, sem o qual, não há democracia que resista. Nesse sentido, recordemo-nos duma máxima do saudoso senador Tancredo Neves, não são homens que disputam, são as ideias. É isso, são os diálogos que se embatem!

A respeito do diálogo como ponte para construção de caminhos para as crises, Paulo Freire na sua Pedagogia da Esperança disse:

Na percepção dialética, o futuro com que sonhamos não é inexorável. Temos de fazê-lo, de produzi-lo, ou não virá da forma como mais ou menos queríamos. É bem verdade que temos de fazê-lo não arbitrariamente, mas com os materiais, com o concreto de que dispomos e mais com o projeto, com o sonho por que lutamos (Freire, 2019, p. 141).

Considerações derradeiras: anote-se que a lei entrou em vigor na data da sua publicação; e, segundo, as atuais associações municipalistas terão o prazo de 2 (dois) anos para se adaptar à luz da normativa epigrafada.


Referência bibliográfica

Béjar Rivera, Luis José. Uma aproximação à teoria dos serviços públicos. 1ª ed., São Paulo: Editora Contracorrente, 2016.

Freire, Paulo. Pedagogia da esperança. 25ª ed., Rio de Janeiro/São Paulo: Paz & Terra, 2019.

Sobre o autor
Lucas Gabriel Pereira

Advogado (criminal e administrativo), especialista em Direito Municipal - ética e efetivação de direitos fundamentais pela FDRP/USP-Ribeirão; presidente do Conppac (Conselho de Preservação do Patrimônio Cultural de Ribeirão Preto), ex-representante da 12ª Subseção da OAB-SP na Câmara Municipal de Ribeirão Preto/SP (2019) e ex-presidente da Comissão dos Direitos das Pessoas com Deficiência da 12ª Subseção da OAB do Estado de São Paulo (2019-2021).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PEREIRA, Lucas Gabriel. Confraria municipalista:: ensaio panorâmico sobre a Lei n. 14.341/2022. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6942, 4 jul. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/98973. Acesso em: 22 dez. 2024.

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