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Os direitos fundamentais à vida e auto-determinação frente ao problema do aborto:

o enfoque constitucional de Ronald Dworkin

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Agenda 30/05/2007 às 00:00

4. A intervenção estatal no âmbito das liberdades jusfundamentais

A esse respeito, cabe destacar que o conceito de "pessoa" como status a ser conferido a um feto, por exemplo, revela-se extremamente difuso, dificultando sua explicitação com respeito aos diversos âmbitos onde se deseje aproximá-lo, já seja o científico, filosófico, religioso ou jurídico.

No caso em apreço, a décima quarta emenda da Constituição norte americana determina que nenhum estado negará a nenhuma pessoa a igual proteção da lei, mas não há nenhuma remissão ao feto como tal. No caso do direito brasileiro, esta questão também não é tratada nesses termos, na Constituição, remetendo-se ela à lei civil.

Assim, o artigo 2º do Código Civil afirma que, embora a personalidade civil da "pessoa" comece com o seu nascimento com vida, confere-se o direito à vida ao nascituro.

Portanto, também aqui não há uma declaração de status de pessoa ao feto, mas por uma espécie de ficção da lei, o nascituro tem o seu direito resguardado. O problema de tal determinação legal é o de que ela se encontra muito mais voltada a uma dimensão religiosa do que moral ou de direito, nos termos a seguir explanados.

Segundo Dworkin, certas pessoas, por motivos teológicos, entendem que, no momento da concepção, Deus provê ao feto de uma alma racional, sendo que ele passa a ter um direito moral à vida. Entretanto, quase a totalidade daqueles que defendem tal ponto de vista (teológico) também admitem que ele não é relevante para a interpretação constitucional, pois esta defende a rígida separação entre Estado e Igreja e, portanto, a laicidade estatal faz com que argumentos doutrinários de cunho religioso não possam ter validade jurídica. Assim sendo, tais pessoas poderiam admitir, mesmo sem abandonar tais convicções religiosas, que o feto não é uma pessoa constitucional.

A partir desse ponto, desenha-se mais nitidamente o desfecho da argumentação de Dworkin a respeito do problema do aborto e sua relação com a interferência estatal face às liberdades individuais, ao circunscrever esta questão referente ao valor da vida em toda a sua complexidade, como um valor religioso embora o sentido de religião necessite uma melhor explicitação.


5. O papel da religião no âmbito da existência humana e do Estado

Para tanto, o autor coloca como premissa a afirmação de que a crença da maioria das pessoas no valor inerente da vida humana é uma crença essencialmente religiosa. Se, de uma parte, muitos acreditam que as crenças, para serem consideradas de natureza religiosa, devem pressupor a fé em uma divindade pessoal, de outra parte, algumas formas de budismo e hinduismo não consideram, como base da sua crença, a fé em um ser supremo de tal natureza.

Em tal caso, ao descartar-se a idéia de um ser superior e metafísico como fundamento de toda qualquer crença tida como religiosa, tornam-se necessários outros critérios para classificar uma dada crença como tal. Segundo Dworkin, a resposta para tal problema remete a uma classificação menos rigorosa de tais tipos de crenças, e dessa forma, então, uma dada crença será considerada como sendo de natureza religiosa ao perguntar-se se ela é semelhante, em conteúdo, às crenças inequivocamente religiosas.

Aqui também torna-se relevante evidenciar que certas convicções sobre valores existenciais, tais como o valor intrínseco da vida humana e sua inviolabilidade, por exemplo, serão considerados como valores religiosos, independente do seu defensor crer em algum deus ou estar filiado a alguma seita ou credo de fé.

Em termos mais precisos e transpondo, então, tais critérios para a crença de que o valor da vida humana transcende seu valor com respeito à criatura de cuja vida se trate e, portanto, que a vida humana é impessoal e objetivamente valiosa, esta revela-se, então, uma crença religiosa, creia ou não em Deus o seu defensor.

É por essa razão que, segundo Dworkin, a religião ou qualquer religião assume a função de responder à mais aterradora característica da vida humana, qual seja, a de que é necessário viver a vida e enfrentar a morte sem razão alguma para acreditar que a própria vida e, menos ainda o modo de se viver, fazem alguma diferença.

O questionamento de natureza existencial sobre o fato da vida humana ter alguma importância intrínseca ou objetiva, já sofreu vários tipos de problematizações teóricas. Mas, no entender de Dworkin, tal questão crucial não pode ser respondida através da observância de um certo tipo de código de conduta ou mesmo, a partir de uma dada teoria da justiça.

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Isso ocorre pelo fato de que não são as respostas a tais questões que irão tornar os seus seguidores, pessoas mais seguras, livres, determinadas ou prósperas. Também não são tais condicionantes as que auxiliarão os seus destinatários a cumprirem sua natureza humana, na medida em que, o problema da existência é ainda mais profundo pois perquire o porquê de todas essas indagações.

É por tais razões que pode-se, então, estabelecer uma relevante diferença entre as crenças e diversas concepções sobre a importância intrínseca da vida humana e, de outra parte, as convicções de caráter secular sobre moral, equidade e justiça o que leva à conclusão de que ordens tais como o Direito encontram-se alheias a tais questionamentos existenciais.

A partir de tais constatações, torna-se possível atingir o cerne desta argumentação, vale dizer, a constatação de que âmbitos tais como o da Moral ou Direito referem-se mais a problemas tais como servir, conciliar ou resolver interesses antagônicos entre pessoas e dificilmente irão refletir concepções particularistas sobre as razões de interesses humanos terem importância intrínseca ou se chegam a possuí-la.

Para embasar tais conclusões, Dworkin remete-se, de forma específica e breve, ao pensamento de John Rawls, por ser ele o formulador da teoria de justiça que fundamenta a sua concepção a esse respeito.

Segundo Rawls, tanto a sua como outras teorias sobre a justiça diferenciam-se, significativamente, dos - por ele chamado - "esquemas religiosos" ou "éticas abrangentes". Assim é que a diferença fundamental entre tais âmbitos é a de que as teorias políticas ou da justiça não pressupõem nenhuma opinião sobre as razões de ser intrinsicamente importante que a vida tenha continuidade e prospere, embora tais teorias sejam, efetivamente, compatíveis com um grande número de opiniões dessa natureza.

Em síntese, pode-se dizer que um Estado verdadeiramente laico, embora deva ter entre as suas atribuições os problemas atinentes à moral social, política e justiça, não faz parte da sua esfera de atuação os âmbitos das convicções pessoais, filosóficas ou religiosas, onde residem os questionamentos a respeito do valor da vida e seus fundamentos existenciais.

É por assumirem um grau tão elevado de importância pessoal, que tais questionamentos não podem ser remetidos à potestade estatal ou mesmo regulados pelos mecanismos institucionais de controle social. Ao contrário disto, um dos deveres mais fundamentais do governo que são reconhecidos pelas democracias ocidentais, desde o século XVIII, reside em assegurar o direito de que as pessoas possam viver de acordo com suas próprias convicções religiosas.

A vida consciente, nos termos já referidos, como vida humana que é, deve ser e é protegida constitucionalmente como direito fundamental, mas, de igual forma, os direitos e garantias constitucionais, dentro de uma visão estrutural e pragmática, protegem o direito à autonomia procriadora, como decorrência mais elementar dos direitos de liberdade.


6. Referências Bibliográficas

DWORKIN, Ronald. Los Derechos em Serio. Barcelona: Ariel. 1989

___________ O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes. 1999

___________ Uma Questão de Princípio. São Paulo: Martins Fontes. 2000

___________ Domínio da Vida. São Paulo: Martins Fontes. 2003

RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. São Paulo: Martins Fontes. 2002.

Sobre o autor
Luiz Henrique Urquhart Cademartori

mestre em Instituições Jurídico-políticas e doutor em Direito do Estado pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), pós-doutor em Filosofia do Direito pela Universidade de Granada (Espanha), professor do programa de mestrado em Ciência Jurídica e da graduação em Direito da Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI), consultor do INEP e SESu–MEC para avaliação de cursos de direito no território nacional, assessor jurídico do Centro de Controle de Constitucionalidade (CECCON) da Procuradoria de Justiça de Santa Catarina, autor de várias obras e artigos sobre Direito Público.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Os direitos fundamentais à vida e auto-determinação frente ao problema do aborto:: o enfoque constitucional de Ronald Dworkin. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1428, 30 mai. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9950. Acesso em: 7 nov. 2024.

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