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Ocorrência policial: tiro nas costas X tiro pelas costas –

atuação legítima ou execução?

Agenda 11/08/2022 às 16:15

Apresentamos algumas das variáveis complexas que não podem ser ignoradas ao se analisar ocorrências policiais, sob o ponto de vista do enquadramento penal de condutas.

INTRODUÇÃO

Ocorrências policiais despertam a atenção, geram discussões e audiência na mídia, são as principais fontes de notícias nos veículos de imprensa. Para tratar do assunto são chamados diversos especialistas, geralmente jornalistas, sociólogos, juristas, todos teóricos da segurança pública, alguns com sólida base de estudos doutrinários, mas sem qualquer estudo baseado em ciência policial ou de combate, estatísticas ou mesmo análises da realidade das ocorrências reais.

Alguns desses especialistas são até oriundos de corporações policiais, no entanto, raramente tiveram forte atuação em campo e emitem opiniões que carecem de conceitos técnicos científicos, quando não estão contaminados por ideologias pessoais ou do órgão de mídia que representam.

Felizmente, começam a despontar no Brasil diversos estudos e profissionais sérios, geralmente integrantes da segurança pública ou de órgãos de persecução penal, que buscam entender a atividade policial como uma ciência e passam a apresentar análises com bases em pesquisas científicas e experiências coletadas a partir de ocorrências reais, buscando apresentar soluções viáveis e justas para estas ocorrências.

Já comentamos em outros artigos sobre o problema da análise de ocorrências policiais envolvendo armas de fogo quando realizada por profissionais estritamente juristas, inclusive Delegados de Polícia e Oficiais Militares, ou pseudo-especialistas, que conhecem a atividade policial apenas por meio de filmes e seriados.

O Promotor de Justiça do Estado do Mato Grosso do Sul e instrutor de tiro Luciano Anechini Lara Leite, também colunista do portal infoarmas, apresenta diversos artigos em que, com grande maestria, faz a junção de conceitos jurídicos e de balística, uso legal da arma de fogo e atuação policial, criticando o oportunismo dos especialistas que buscam exarar seus palpites sem qualquer base técnica, científica ou mesmo pesquisas de campo acerca da realidade policial e/ou da violência no Brasil.

Eventual conclusão de terceiros sobre desnecessidade do emprego da arma de fogo contra agressor armado, da desnecessidade de disparo de arma de fogo, questionando até mesmo a sede de lesões provocadas, tudo isso estará fora de contexto se não analisado com base na balística e realidade dos treinamentos policiais, não passando sempre de palpite quando não conectadas a esses conhecimentos técnicos. (grifo nosso) (LEITE, Luciano Anechini Lara. A falácia do só pode atirar depois de tomar tiro (Ou pior depois de atingido), 2022)

A Fobia Universal Humana e o Policial

O Tenente-Coronel Dave Grossman, militar americano, e Loren W. Christensen, especialista em autodefesa, em um profundo estudo publicado no livro On Combat, no qual foram entrevistados diversos policiais e militares que se envolveram em ocorrências onde tiveram que lutar por suas vidas, descrevem o que chamaram de Fobia Universal Humana. Entende-se como fobia um medo exagerado, irracional, incontrolável, desproporcional de um objeto, ser vivo, ou mesmo um evento.

O estudo destaca que uma parcela de aproximadamente 15% da população possui algum tipo de fobia (cobras, aranhas, baratas, escuro, locais apertados, etc.). Significa que, se em um local com um grupo de indivíduos forem colocados alguns desses elementos, cerca de 15% das pessoas que estão naquele ambiente irão apresentar um comportamento em escala fóbica. No entanto, o mesmo estudo informa que, se um indivíduo entra em um local com uma arma de fogo, ou uma faca, e passa a atirar ou golpear as pessoas, 98% desse público irá apresentar este comportamento fóbico, irracional.

Quando a violência nos atinge, nos destrói, nos quebra. A maioria de nós se aproxima de um cachorro estranho que encontramos por aí com a expectativa de que ele poderia nos morder. Igualmente, a maioria de nós espera que cobras ataquem. Isso é o que elas fazem! Mas nós não esperamos que um dentre os milhões de americanos com os quais interagimos durante a vida tente nos matar. Nós não podemos conduzir nossas vidas simplesmente esperando que todo ser humano com que nos encontramos possa tentar nos matar (tradução nossa) (GROSSMAN, Dave. 2012, p. 25/26)

Sabendo que há pessoas dispostas a atentar contra a vida de outras, pelos mais variados motivos, foram criados órgãos para lidar com essa fobia universal humana, alguns deles, principalmente militares e policiais, vão ao limite, enfrentando esta fobia, in loco, colocando em risco a própria vida, seja em confrontos bélicos armados, seja no combate a criminalidade.

A proximidade destes profissionais com o risco de vida e a possiblidade de serem confrontados a qualquer momento exige que entendam o combate, o funcionamento do corpo humano e suas reações físicas e fisiológicas. Este conhecimento se faz necessário para que se compreenda como se dá o processo de tomada de decisão, de forma a minimizar o risco de perder a própria vida ou a de terceiros que se encontrem no cenário de crise.

Uma vez que policiais e soldados avançam em direção à Fobia Humana Universal, movendo-se intencionalmente para este domínio, onde outros seres humanos tentarão feri-los ou matá-los, é vital que eles entendam esse reino e entendam o combate. Assim como o bombeiro entende o fogo, o guerreiro deve entender o combate. (tradução nossa) (GROSSMAN, Dave. 2012, p. 19)

O processo de tomada de decisão abrange desde a fase cognitiva, reações psicológicas e fisiológicas, até a fase em que são acionados os músculos responsáveis pela ação motora que vai trazer ao mundo fático, a decisão tomada.

A análise de ocorrências desta natureza, aos olhos daqueles que não compreendem a influência destes aspectos nos indivíduos que atuam no cenário de crise, gera diversas confusões e conclusões equivocadas.

Por este motivo é que não só profissionais que lidam diretamente com a fobia humana universal devem conhecer esse assunto, mas também, todos os profissionais que lidam com os processos de análises de ocorrências envolvendo combates, como juízes, promotores, jornalistas e aqueles que pretendem realizar análises sobre ocorrências envolvendo agressões humanas possivelmente letais.

Cabe destacar que o policial que se envolve em um combate, além de se preocupar com o agressor, para não ser lesionado, morto e não incidir em excesso deve, ainda, observar o ambiente em sua volta, uma regra de segurança denominada controle de alvo ou consciência situacional, ou seja, o agente da lei não se preocupa apenas com o agressor, mas também com eventuais outros agressores, familiares, curiosos, posição dos demais policiais, e com efeitos colaterais que um disparo pode gerar.

O controle de alvo abrange na realidade o monitoramento de todo o ambiente que circunda o sítio da ação policial, o que não se confunde com a simples identificação da ameaça em si. As responsabilidades legais e morais impostas ao trabalho policial exigem que outros elementos encontrados naquele ambiente sejam considerados passíveis de sofrerem os efeitos colaterais da ação (SOUZA, Roger Sherman Ferreira de. 2021, p. 369)

Atividade Policial e Tempo de Reação

Gaylan Warren, pesquisador do Laboratório Forense Internacional de Columbia, publicou um estudo chamado Reaction Time - Lethal Force Encounter Shooting Scene Considerations, no qual buscou verificar qual o tempo que um policial leva para reagir a um estímulo advindo de um agressor. O estudo comprovou que há um lapso temporal para que um agente da lei, quando confrontado, possa reconhecer a ameaça, optar dentre as decisões que lhe estão disponíveis no momento, e iniciar uma ação motora de reação, ou seja, há duas fases, uma mental, que exige análises situacionais e decisões, e uma fase física, que demanda o acionamento muscular que irá externalizar a reação contra a agressão. Toda esta demanda de energia física e mental exige um tempo para ser concluída, e este tempo é mesurável.

A conclusão do estudo comprovou cientificamente o que já se podia concluir de forma empírica, a ação é mais rápida que a reação.

Verificou-se que, para iniciar uma reação o cérebro do policial passa pelas seguintes etapas: percepção, análise e avaliação da ameaça, planejamento da reação, para só então iniciar a ação motora que efetivamente resultará na reação. Por óbvio, ainda que tudo ocorra numa fração de segundos, a ação iniciada pelo agressor sempre estará à frente da reação do policial.

Durante as pesquisas, foram feitos testes com policiais que deveriam efetuar disparos após reconhecer uma ameaça. Lembrando que os policiais já tinham ciência de que deveriam efetuar o disparo e se trata de um ambiente controlado.

Foram realizados testes, em cenários simples e complexos, em que os policiais já ficavam com o dedo na tecla do gatilho, no outro, com o dedo fora dele, que é o protocolo de segurança recomendado para se evitar disparos não intencionais. Os resultados foram os seguintes:

Situação

Reação/Cenário simples

Reação/Cenário complexo

Dedo na tecla do gatilho

0,576 segundos

1,26 segundos

Dedo fora da tecla do gatilho

0,888 segundos

1,576 segundos

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O mesmo estudo foi realizado por Dennis Tueller ao definir a regra dos 21 pés (cerca de 7 metros) como sendo a distância mínima que o policial deve manter de um agressor que porta uma faca. Esta é a distância média que um indivíduo consegue percorrer e o policial conseguiria efetuar, ao menos 1 disparo contra ele antes de ser golpeado.

Os estudos de Gaylan Warren abrangem diversas outras hipóteses em que os policiais mantém suas armas em outras posições, como coldre, tem que se deslocar antes de efetuar o disparo, porém, neste artigo, os tempos mencionados são os que mais nos interessam.

Vincent J. M. Di Maio, médico-legista americano, detentor de diversas premiações e especialista em ferimentos provocados por arma de fogo, na obra: Gunshot Wounds: Pratical Aspects of Firearms, Ballistics and Forensis Techniques, destaca a hipótese em que um médico-legista se depara com um caso em que o policial relata ter disparado contra um agressor prestes a ataca-lo, porém, o ferimento está localizado nas costas ou lateral do corpo analisado. Fato comum em ocorrências policiais.

O autor destacou o estudo desenvolvido por Ernest J. Tobin, Coordenador de Treinamento de Armas de Fogo no Centro de Treinamento de Segurança Pública da Geórgia, e Martin L. Fackler, Consultor de Balística de Ferimento, Hawthorne, Flórida, que mensurou o tempo mínimo para que um policial, com a arma em punho e apontada na direção do alvo, efetue um disparo.

Foram abordadas duas situações, a primeira na qual o policial permanecia com o dedo já na tecla do gatilho, o tempo médio de resposta para que o policial efetuasse o disparo contra uma ameaça foi de 0,365 segundos. Na segunda, com o dedo no guarda-mato, o tempo registrado foi de 0,677 segundos.

Em seguida, foram feitas filmagens em que voluntários tiveram que girar, o mais rápido possível, seus corpos em seu próprio eixo. Os tempos médios registrados foram de 0,310 segundos para que um indivíduo efetuasse um giro de 90º no próprio eixo, e de 0,676 segundos, para um giro de 180º.

Podemos então estabelecer as seguintes relações:

Condição

Reação

Giro 90º

Giro 180º

Dedo na tecla do gatilho

0,365 segundos

0,310 segundos

0,676 segundos

Dedo fora da tecla do gatilho

0,677 segundos

Portanto, perfeitamente possível que nesta fração de segundos, em que um agressor atua contra um policial e se vira, seja para fugir, seja para buscar uma melhor posição para continuar o ataque, ele seja atingido na lateral do corpo, ou mesmo nas costas pelo disparo efetuado pelo agente da lei.

Lembrando que as academias de polícia e qualquer instituição pública ou privada que ensine o manuseio de armas de fogo, por protocolo de segurança, recomenda que o operador/atirador somente leve o dedo até a tecla do gatilho após a decisão de efetuar o disparo.

TIRO NAS COSTAS E TIRO PELAS COSTAS

É preciso distinguir a situação de um tiro nas costas e um tiro pelas costas, para então conseguir avaliar as consequências jurídicas destas situações.

O Delegado de Polícia, professor da disciplina de sobrevivência policial e instrutor e de tiro da Academia de Polícia Civil do Estado de Santa Catarina, Allan Antunes Marinho Leandro, em sua obra Armas de Fogo e Legítima Defesa: A Desconstrução de Oito Mitos, citando o renomado professor Rogério Greco apresenta uma distinção entre estes conceitos:

Conceitualmente, as definições tiro nas costas e tiro pelas costas diferenciam-se na medida em que o primeiro (tiro nas costas) ocorre de acordo com a movimentação dos agentes envolvidos no conflito, sem evidenciar necessariamente um ataque inesperado, abrupto.

Por sua vez, o tiro pelas costas caracteriza-se quando há um ataque súbito, dificultando em muito e até impossibilitando a defesa da pessoa atingida. (LEANDRO, Allan Antunes Marinho. 2016, p. 85)

Analisando o conceito, não há dificuldade em se perceber que o tiro nas costas está acobertado pela excludente de ilicitude, legítima defesa ou estrito cumprimento do dever legal, conforme se verá adiante.

Já o tiro pelas costas poderá, conforme o caso concreto, caracterizar homicídio qualificado, geralmente pelo recurso que dificultou ou impossibilitou a defesa do ofendido, previsto no art. 121, §2º inciso IV do Código Penal.

Com base nos conceitos apresentados e nos estudos que demonstraram a possibilidade um indivíduo conseguir virar-se totalmente antes que o policial possa efetivamente pressionar o gatilho de sua arma, inegável que tais circunstâncias devem ser consideradas antes de se afastar a incidência de excludentes de ilicitude e, de plano, acusa-lo de execução, como normalmente ocorre. Afinal, o brocardo jurídico in dubio pro reo deve ser aplicado indistintamente, inclusive aos policiais ou atiradores, e não apenas aos criminosos contumazes.

Estes conhecimentos e sua aplicação na análise e julgamento de casos concretos são essenciais para se evitar decisões injustas e esdrúxulas como a proferida na ADPF 635 pelo Supremo Tribunal Federal, que proibiu operações policiais e uso de helicópteros em favelas no Rio de Janeiro:

Como estabelece o Princípio 9, o uso intencional letal de arma de fogo só pode ser feito quando estritamente indispensável para proteger a vida. E, nessas circunstâncias, é necessário, ainda, que o agente do Estado (a) identifique-se inequivocamente como tal; e (b) alerte que irá utilizar a arma de fogo, dando tempo para que a pessoa respeite o comando, salvo quando, pelas circunstâncias concretas, tal aviso aumente os riscos para outras pessoas ou seja nitidamente sem propósito. (STF. ADPF 635 MC/RJ. Min. Rel. Edson Fachin, Tribunal Pleno. Julg 18/08/2020. DOU 02/06/2022)

Nota-se que a decisão não possui qualquer amparo técnico ou científico de estudos da atividade policial. Se um agressor conseguiria, mesmo com o policial já com a arma em punho e apontada para ele, até mesmo virar-se totalmente, em menor tempo poderia levantar o braço e efetuar um disparo de arma de fogo. Na melhor das hipóteses, tanto o policial quanto o criminoso seriam atingidos na troca de tiros, o que não é aceitável do ponto de vista do agente da lei.

Os Ministros da Suprema Corte basearam suas decisões estritamente em doutrinas jurídicas teóricas, e claramente, influenciados por produtos midiáticos, como filmes e seriados hollywoodianos.

Caso o policial busque respeitar todos estes mandamentos, irá morrer antes mesmo de terminar de dizer POLÍCIA..., sequer teria tempo de avançar para os demais itens de identificação indicados pelos ministros. O mundo real é muito mais complexo e diferente daquele observado em frente telas de TV e, principalmente, das situações hipotéticas relatadas em doutrinas jurídicas escritas por aqueles que ignoram os estudos sobre a ciência policial.

TIRO NAS COSTAS x TIRO PELAS COSTAS ATUAÇÃO LEGÍTIMA OU EXECUÇÃO?

Verificada a possibilidade de um policial, com a arma em punho, apontada para um agressor, em um cenário de crise, vir a atingi-lo na região das costas, cabe agora, verificar as consequências jurídicas desse fato.

Primeiramente, destacamos que o policial, quando atende uma ocorrência com agressores ou criminosos que colocam ou podem colocar suas vidas ou a vida de terceiros em risco, nunca atua com animus necandi, ou seja, com dolo de matar, mas sim com dolo de fazer cessar a agressão ou possível agressão.

A atividade policial é complexa e ocorrências podem evoluir para situações de sobrevivência em questão de milissegundos. O tempo de que dispõe o agente da lei para tomar uma decisão que irá afetar sua vida, ou terminar com ela, é extremamente exíguo.

Exceção, quando um agente da lei atua para efetivamente ceifar a vida de um agressor é o caso do atirador de precisão policial, que dentre suas diversas funções, uma delas é o tiro de comprometimento. No entanto, mesmo este disparo, conforme ensina o Delegado de Polícia do Estado de São Paulo, Felipe de Moraes:

Em realidade, o tiro de comprometimento realizado pelo atirador de precisão policial tem como objetivo a preservação da vida ou integridade física da pessoa agredida injustamente por outrem (MORAES. Felipe de. 2022, p. 102)

Um policial não mata um criminoso, o termo técnico correto é neutraliza uma ameaça, sendo que essa neutralização pode gerar a morte do agressor, mas esta não é desejada. Portanto, fica nítido que não se pode admitir o entendimento de que o policial, em uma ocorrência em que ocorreu o evento morte, atuou com dolo direto. Também não se pode dizer que houve o dolo eventual, pois, como explanado, em momento algum se está assumindo o risco de matar, o objetivo das condutas, desde o início, é neutralizar uma ameaça, fazer cessar uma agressão ou possível agressão.

Existe, ainda, na doutrina, divergência quanto a excludente de ilicitude que estaria presente no caso do policial que dispara contra um agressor.

Prevalece o entendimento de que, na maioria das vezes, estará caracterizada a legítima defesa, vez que mesmo o policial estará diante de todos os seus requisitos, agressão injusta, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem, conforme previsto no artigo 23 inciso II, combinado com artigo 25 do Código Penal.

Confirmando este entendimento, a Lei 13.964/19, incluída pelo chamado de pacote anticrime, incluiu no artigo 25 do Código Penal, o parágrafo único: Observados os requisitos previstos no caput deste artigo, considera-se também em legítima defesa o agente de segurança pública que repele agressão ou risco de agressão a vítima mantida refém durante a prática de crimes.

Outra corrente entende que o um policial ao atuar contra um agressor, mesmo que em seu horário de folga, está amparado pela excludente do estrito cumprimento do dever legal, combinando a interpretação conjunta dos artigos 144 da Constituição Federal, o artigo 301 do Código do Processo Penal e artigo 23 inciso III primeira parte do Código Penal.

O Promotor de Justiça, Luciano Anechini Lara Leite, apresenta de forma cristalina, a incidência desta excludente de ilicitude na conduta policial.

O dever de agir previsto no artigo 301 do CPP, aliado à obrigação da garantia da ordem pública previsto no artigo 144 da Constituição Federal levam a clara convicção de que o agente de segurança que vislumbra uma ocorrência com potencial dano a terceiros não tem opção de não agir, ele tem obrigação legal em fazer cessar a agressão, conforme os estudos acima mencionados. grifo nosso (LEITE, Luciano Anechini Lara. A falácia do só pode atirar depois de tomar tiro (Ou pior depois de atingido), 2022)

A principal consequência quando adotado este entendimento é que a excludente do estrito cumprimento do dever legal não possui requisitos subjetivos, vez que o exercício das obrigações do cargo de natureza policial e a situação flagrancial obrigam a atuação do agente da lei, sendo circunstancias objetivamente verificáveis, restando apenas a análise de eventual excesso.

Inclusive, há entendimento de quê, não agindo, salvo impossibilidade absoluta, poderá o policial responder pelo crime ocorrido na modalidade omissiva, previsto no artigo 13 §2º e incisos do Código Penal, ou mesmo estará praticando o crime de prevaricação, previsto no artigo 319 do Código Penal.

A eles não é dada opção, eles tem o dever de agir como garantes da segurança pública que são, e por isso podem até responder por crime omissivo comissivo em caso de inação. Por não outra razão possuem a prerrogativa do porte funcional e devem estar com armas e algemas 24h por dia. (LEITE, Luciano Anechini Lara. A falácia do só pode atirar depois de tomar tiro (Ou pior depois de atingido), 2022)

Vencido o elemento subjetivo que poderia levar ao afastamento das excludentes de ilicitude, e as correntes doutrinárias acerca de quais delas seriam aplicáveis, legítima defesa ou estrito cumprimento do dever legal, cumpre destacar algumas situações em que um agressor pode ser atingido na região das costas e estas excludentes estarão plenamente caracterizadas.

São situações que estão abrangidas pela excludente de ilicitude mesmo quando o tiro atinge as costas do agressor (rol exemplificativo):

Note que há situações em que há disparos nas costas e mesmo disparos pelas costas, embora mais raros, em que estaremos diante da excludente de ilicitude.

Algumas situações podem gerar dúvidas e merecem comentários, é o caso de o agressor ser perseguido pelo policial e da quantidade de disparos efetuada.

São diversos os casos em que o agressor, após confrontado, aparentemente foge da reação policial ou da própria vítima e é perseguido, sendo efetuado disparos contra ele.

Aos olhos leigos, daqueles que não tem noções das inúmeras interações físicas, fisiológicas, das interferências dos treinamentos (ou ausências deles) e da mentalidade de combate, do policial, da vítima e do próprio criminoso, de plano, já se chegaria há uma conclusão, básica e mais simples, de que o dolo era de matar e houve uma execução.

Tais circunstâncias não podem ser ignoradas pelo profissional sério, ao analisar o caso.

Em atividades de tamanha complexidade como um tiroteio, aonde precisamos sobreviver, não poderemos calcular friamente as ações a serem desenvolvidas. Tudo ocorrerá em questões de segundos e nosso corpo estará sendo totalmente influenciado pelos estressores do combate, em que qualquer ação errada custará as nossas vidas. (VASCONCELOS, Cleidson. A polêmica do tiro na região das costas do oponente, 2020)

Ocorre que, não se pode exigir do policial ou da vítima que reage, que considere a mera fuga do agressor como uma desistência do intento criminoso e fim da ameaça. Não se sabe a real intenção do criminoso que, em tese, empreende fuga, que pode estar buscando uma melhor posição para revidar a reação ou uma janela de oportunidade para contra-atacar. Ainda, no caso do policial, que tem a obrigação legal de garante, como o agressor permanece armado e não há como saber qual a sua intenção, deve considerar que a agressão a si e a terceiros não cessou, e merece repressão, devendo perseguir e neutralizar a ameaça.

Roger Sherman Ferreira de Souza, mestre em planejamento e políticas públicas e especialistas em policiamento comunitário e perícia criminal destaca em seu artigo, Tiro Policial Defensivo: Uma Breve Reflexão Sobre Aspectos Conceituais e Doutrinários:

As características pessoais do agressor, sua origem social, suas motivações, a extensão dos danos pretendidos ou quaisquer outras informações de ordem sociológica, ideológica ou psicológica não estão ao alcance da vítima no momento do ataque, por isso não se pode exigir dela qualquer julgamento mais criterioso nesse sentido. (SOUZA, Roger Sherman Ferreira de. 2021, p. 375)

Diferente seria o caso em que o agressor, ao ser confrontado, abandona a arma, seja arma de fogo ou um instrumento contundente ou cortante, e empreende fuga, nesse caso, por óbvio, se perseguido, não há qualquer justificativa para disparos contra ele pelas costas, vez que desarmado, não mais representa ameaça a vida ou integridade física dos envolvidos, devendo ser capturado.

Outra situação que gera confusão quando analisada por indivíduos ignorantes no assunto ciência policial, é acerca da quantidade de disparos efetuadas contra um agressor.

Já discorremos de forma mais profunda sobre o assunto em outros artigos ao tratar da Doutrina da resposta não convencional e a Regra de Tueller, aos quais remetemos o leitor que pretende obter mais informações.

A doutrina de resposta não convencional, normatizado como protocolo de atuação em casos de confrontos com arma de fogo, e já incorporado nos currículos das academias de polícia no Brasil, ensina, a partir de pesquisas científicas fundamentadas principalmente na balística terminal que, ao reagir fazendo uso de arma de fogo contra uma ameaça, devem ser desferidos quantos disparos forem necessários até que se tenha certeza de que a ameaça foi neutralizada.

A neutralização da ameaça geralmente é obtida quando o agressor vai a solo e não mais esboça intenções de continuar o ataque. Vale destacar que, mesmo no solo, é possível que o agressor continue a efetuar disparos contra o policial ou terceiros.

O policial civil e médico Dr. Sérgio F. Maniglia, integrante do Grupo de Operações Especiais TIGRE da Polícia Civil Paranaense, e referência no Brasil em atendimento hospitalar tático APH tático trata da complexidade da neutralização de um agressor no capítulo sobre balística terminal aplicada, na obra Balística para Profissionais do Direito.

Incapacitar um ser humano é tão complexo como o próprio corpo. É necessária uma série de fatores para atingir esse objetivo e os próprios fatores mudam de relevância a cada caso concreto. Fatores fisiológicos e psicológicos do atirador e do agressor, e a escolha do armamento e munição também contribuem para o resultado final. (MANIGLIA, Sérgio F, 2020, p.162)

Note que o termo não convencional remete ideia de que não se pode convencionar um número objetivo, fixo de disparos, vez que foi comprovado que a técnicas antigamente difundidas aos policiais como protocolo de atuação, como o Double tap e a noção de Stopping power, foram comprovadamente consideradas mitos e abandonadas.

Além disso, quando um indivíduo é atingido por disparos de arma de fogo, impossível ao policial antecipar o momento de cessação da agressão em razão de diversos fatores, como o calibre da arma, localização do disparo, penetração do projetil, atuação de descargas hormonais como a adrenalina e até mesmo a mentalidade de combate, representada pela vontade do agente baleado em continuar lutando e que varia de pessoa para pessoa, não obedecendo a um padrão de comportamento. Não por menos, o Delegado de Polícia e professor de armamento, munição e tiro da Academia de Polícia Civil de Santa Catarina denomina este ramo de estudo, a balística terminal, de balística do caos.

Não seria exagero denominarmos este ramo da balística de balística do caos, em face da absoluta imprevisibilidade de como um ser humano se comportará ao ser atingido por um projétil expelido por uma arma de fogo. (CUNHA NETO, João da. 2020, p. 24)

Diversos outros mitos sobre armas de fogo foram esclarecidos, sugerimos a leitura da obra Armas de Fogo e Legítima Defesa: A Desconstrução de Oito Mitos do Delegado de Polícia, Allan Antunes Marinho Leandro.

Este protocolo de atuação também já está incorporado na doutrina jurídica, Rogério Greco, Procurador de Justiça no Ministério Público de Minas Gerais e atual Secretário de Estado de Justiça e Segurança Pública de Minas Gerais já expões em sua obra Atividade Policial: aspectos penais, processuais penais, administrativos e constitucionais:

Já o tiro nas costas, deve ser compreendido como um disparo fruto da movimentação natural do combate, tipo no caso em que um meliante, ao atirar em uma pessoa vem a vira-se, e como a pessoa já empreendia a sua legítima defesa, pode ser que ocasionalmente, ao realizar múltiplos e rápidos disparos no centro de massa do oponente, sendo esse os procedimentos normatizados nos protocolos de sobrevivência em confrontos armados, atinja sem o propósito para tal, as costas do mesmo grifo nosso (GRECO, Rogério. 2016, p. 207)

Percebe-se que as consequências resultantes deste tipo de ocorrência está mais âmbito de controle do agressor do que do agente da lei, pois é ele quem vai optar, ou não, por obedecer aos comandos policiais e impedir que a situação evolua para uma luta pela sobrevivência, que pode ser letal para os envolvidos.

A forma com que a obrigação de prender em flagrante será realizada depende muito mais da intenção de ser preso do agressor do que da vontade do agente policial em usar a força letal em caso de enfrentamento repita-se ele não tem opção de, mesmo não querendo, deixar de agir. (LEITE, Luciano Anechini Lara. A falácia do só pode atirar depois de tomar tiro (Ou pior depois de atingido), 2022)

CONCLUSÃO

Ocorrências policiais podem evoluir rapidamente para situações de sobrevivência, vez que o alvo da atuação policial, ao ver sua liberdade ameaçada, pode ir até as últimas consequências para evitar ser capturado.

Cabe ao agressor decidir qual o nível de uso diferenciado da força será aplicada pelos agentes da lei, vez que, obedecendo aos comandos policiais, a ocorrência tende a reduzir a tensão entre os envolvidos.

Pesquisas científicas comprovaram ser perfeitamente possível que o agressor seja baleado nas costas mesmo quando já abordado pelo policial, vez que o tempo de reação do agente da lei é inferior a ação do criminoso. Como consequência, não se pode afastar, de plano, a incidência das excludentes de ilicitude. A ação sempre é mais rápida que a reação.

Verificou-se a distinção doutrinária acerca dos termos tiro nas costas e tiro pelas costas e mencionadas algumas situações comuns em ocorrências policiais em que tais circunstâncias serão verificadas e a conduta estará plenamente justificada.

Por fim, o policial, ainda que durante a folga, atua para proteger o patrimônio, a vida e a integridade física das pessoas. Embora seja uma profissão de risco, principalmente no Brasil, isto não significa que o agente da lei deve sacrificar a sua vida para proteção desses bens jurídicos. Para defender direitos de outrem, primeiro, o policial deve estar vivo.

O direito de defender sua vida quando alguém está tentado matá-lo é tão antigo que se relaciona com a historia da humanidade. Não existe lei escrita pelos homens que impeça uma pessoa de lutar para salvar a própria vida (OLIVEIRA, Humberto Wendling Simões de. 2019, p. 225)


BIBLIOGRAFIA

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GRECO, Rogério. Atividade Policial: aspectos penais, processuais penais, administrativos e constitucionais. 7. ed. Niterói. Impetus, 2016.

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LEANDRO, Allan Antunes Marinho. Armas de Fogo e Legítima Defesa: A desconstrução de oito mitos. 1º Ed - Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016.

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Sobre o autor
Tiago Gonçalves Escudero

Sobre o autor: Ex-Militar da Força Aérea, onde atuou no Batalhão de Infantaria. Atuou, ainda, como advogado em São Paulo, e posteriormente como Analista (Assistente Jurídico) no Ministério Público do Estado de São Paulo, principalmente, no Grupo de Combate à Lavagem de Dinheiro e Delitos Econômicos - GEDEC. Atualmente, é Delegado de Polícia Civil no Estado de Santa Catarina.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ESCUDERO, Tiago Gonçalves. Ocorrência policial: tiro nas costas X tiro pelas costas –: atuação legítima ou execução?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6980, 11 ago. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/99626. Acesso em: 22 dez. 2024.

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