Nos autos do Recurso Especial nº 1.977.119-SP1, cujo relator foi o Ministro Rogério Shietti Cruz, ficou assentado que
“não é preciso ser dotado de grande criatividade para imaginar – em um país com suas conhecidas mazelas estruturais e culturais – o potencial caótico de se autorizar que cada um dos 5.570 municípios brasileiros tenha sua própria polícia, subordinada apenas ao comando do prefeito local e insubmissa a qualquer controle externo. Ora, se mesmo no modelo de policiamento sujeito a controle externo do Ministério Público e concentrado em apenas 26 estados e um Distrito Federal já se encontram dificuldades de contenção e responsabilização por eventuais abusos na atividade policial, é fácil identificar o exponencial aumento de riscos e obstáculos à fiscalização caso se permita a organização de polícias locais nos 5.570 municípios brasileiros”.
Ora, a manifestação do Superior Tribunal de Justiça, por meio da unanimidade de sua Sexta Turma, sagrou-se como uma advertência ao Ministério Público brasileiro acerca da falta de controle externo sobre as atividades da Guarda Civil Metropolitana.
Nesse diapasão, o Parquet do Estado de São Paulo, de forme eficiente, expediu a Resolução nº 1.516/2022-CPJ, de 22 de agosto de 2022, para criar o Grupo de Atuação Especial da Segurança Pública e Controle Externo da Atividade Policial em seu âmbito, além de estabelecer outras providências.2
Outrossim, em seu artigo 1º, a Resolução instituiu, no âmbito das Promotorias de Justiça da Comarca da Capital e das demais Comarcas sedes de Departamento Estadual de Execução Criminal, o Grupo de Atuação Especial da Segurança Pública e Controle Externo da Atividade Policial (GAESP), a ser instalado primeiramente na Capital e depois, gradativamente, nas demais sedes, como órgão de coordenação e execução das atividades de tutela coletiva da segurança pública e controle externo da atividade policial, integrado por Promotores de Justiça indicados pelas Promotorias de Justiça e designados pelo Procurador-Geral de Justiça, com prejuízo de suas atribuições normais, incumbindo-lhe a atribuição, em especial, “em relação à atividade de guarda municipal, considerando que não se trata de atividade policial, será feita a fiscalização do estrito cumprimento do disposto no art. 144, § 8º, da Constituição Federal”.
Destarte, se configura medida tomada a bom tempo, haja vista que as Promotorias de Justiça têm olvidado, malgrado as decisões dos tribunais judiciários, que as atividades exercidas pelas Guardas Municipais não se caracterizam como Polícia Ostensiva, atribuição típica da Polícia Militar, conforme o artigo 144, § 5º, da Constituição Cidadã.
Nada obstante, agora o posicionamento albergado pelo Tribunal da Cidadania se torna posição institucional do MP paulista.
Evidentemente, não se trata de extinção da Guarda Civil, mas de fiscalização de suas atribuições nos estritos limites da Constituição da República, a qual todas as demais normas e agentes públicos devem obediência e respeito.
Ademais, tanto as Secretarias de Segurança Pública, como as respectivas Corregedorias municipais, conforme temos visto, não tem adotado nenhuma postura em relação a essa deturpação da atuação da Guarda Metropolitana, o que faz com que seja necessária a criação de um controle externo específico.
Nesse sentido, a Lei Suprema estabelece, em seu artigo 129, inciso VII, como função institucional do órgão ministerial, o controle externo da atividade policial, na forma prevista em lei complementar.
De seu turno, a Lei Complementar Federal nº 75 de 20 de maio de 1993, a qual dispõe sobre a organização, as atribuições e o estatuto do Ministério Público da União, em seu artigo 9ª, prescreve que o controle externo da atividade policial por meio de medidas judiciais e extrajudiciais podendo, para tal fim, ter livre ingresso em estabelecimentos policiais ou prisionais, ter acesso a quaisquer documentos relativos à atividade-fim policial, representar à autoridade competente pela adoção de providências para sanar a omissão indevida, ou para prevenir ou corrigir ilegalidade ou abuso de poder, requisitar à autoridade competente para instauração de inquérito policial sobre a omissão ou fato ilícito ocorrido no exercício da atividade policial e promover a ação penal por abuso de poder.
Por outro lado, tais disposições são aplicáveis aos Ministérios Públicos Estaduais por força do artigo 80 da Lei Federal nº 8.625 de 12 de fevereiro de 1993 (Lei Orgânica Nacional do Ministério Público).
De resto, conforme posição do Conselho Nacional do Ministério Público3:
Passados mais de 30 anos da Constituição Federal de 1988, a atribuição do Ministério Público de promover o controle externo da atividade policial ainda é tema relevante, atual e que demanda reflexões. Como decorrência do desenho estabelecido constitucionalmente para a persecução penal e o sistema de justiça criminal, com especial ênfase à independência do Ministério Público em face dos demais Poderes (em especial, o Executivo, onde se situam as Polícias), o controle externo da atividade policial atribuído ao Ministério Público presta-se como missão de responsabilização em casos de eventuais abusos e de indução de práticas e iniciativas que materializem uma política criminal de Estado compromissada com os direitos humanos. A atenção aos direitos humanos, vale sempre rememorar, dirige-se tanto aos cidadãos que sofrem eventuais ações criminosas e de risco quanto àqueles que sofrem a ação persecutória do Estado. (g. n.)
De forma semelhante, o Ministério Público do Estado de Minas Gerais afirma4:
A atividade policial é indispensável para a promoção da segurança pública e, portanto, para a efetivação dos direitos fundamentais, devendo sempre se pautar pelo respeito ao interesse público. Nesse sentido, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 estabeleceu como função do Ministério Público o exercício do controle externo da atividade policial. A finalidade principal do controle externo da atividade policial – exercido privativamente pelo Ministério Público – é busca por um serviço de segurança pública que seja prestado com eficiência e respeito a todos os cidadãos. Preferencialmente, compete ao Ministério Público atuar de forma preventiva, resolutiva e em cooperação com os órgãos estabelecidos pelo art. 144, da CF, para promoção do direito subjetivo, social e complexo à segurança pública. Significa também que compete ao Ministério Público atuar repressivamente quanto às práticas de ilegalidades e omissões, responsabilizando em diversas esferas os integrantes das forças policiais e equiparados (art. 144, da CF), que no exercício da atividade de polícia atuem contrariamente ao arcabouço jurídico, extrapolando os limites definidos para o uso da força ou normas de probidade. (g. n.)
Portanto, a fiscalização ministerial ocorrerá sobre a Lei Federal nº 13.022 de 8 de agosto de 2014 (Estatuto Geral das Guardas Municipais) e sua compatibilidade com a Lei Maior, haja vista que a GCM, a despeito de estar incluída num conceito amplo de segurança pública, não faz parte dos órgãos da segurança pública, cujo rol é taxativo.
Nesse sentido, na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.575-PR5, a Suprema Corte deixou assentado, ao tratar da possibilidade de criação da Polícia Cientifica do Estado, que “o art. 50 da Constituição do Estado do Paraná, na redação originária, embora faça menção ao órgão denominado de ‘Polícia Científica’, por si só, não cria uma nova modalidade de polícia, como órgão de segurança pública, mas apenas disciplina órgão administrativo de perícia”.
Dessa forma, a partir de agora e de forma gradual, conforme consta no normativo, pelo menos no Estado de São Paulo, os órgãos de execução do Ministério Público passarão a fiscalizar as operações da Guarda Municipal, de forma a evitar a usurpação de funções de outros órgãos de segurança pública e eventuais nulidades em ações penais, tendo em vista que no Estado Democrático de Direito (art. 1º, caput, da CF), todos devem respeito às leis do país.
Nada obstante, mesmo ausente qualquer norma emanada da instituição ministerial regulamentando o tema, é função institucional do Ministério Público zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados na Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia.
Além disso, e de acordo com as competências ínsitas ao controle externo da laboração policial, os agentes municipais que violarem o princípio da legalidade (art. 37, caput, da CF) poderão sofrer ação penal por abuso de poder.
1 EMENTA: RECURSO ESPECIAL. TRÁFICO DE DROGAS. ATUAÇÃO DAS GUARDAS MUNICIPAIS. BUSCA PESSOAL. AUSÊNCIA DE RELAÇÃO CLARA, DIRETA E IMEDIATA COM A TUTELA DOS BENS, SERVIÇOS E INSTALAÇÕES MUNICIPAIS. IMPOSSIBILIDADE. PROVA ILÍCITA. VIOLAÇÃO DOS ARTS. 157 E 244 DO CPP. RECURSO PROVIDO.
2 Disponível em: https://mpsp.mp.br/web/guest/w/do-23-08-2022 Acesso em: 27/8/2022.
3 Disponível em: https://www.cnmp.mp.br/portal/publicacoes/12399-o-ministerio-publico-e-o-controle-externo-da-ativida Acesso em: 27/8/2022.
4 Disponível em: https://www.mpmg.mp.br/portal/menu/areas-de-atuacao/direitos-humanos/controle-externo-da-atividade-policial/ Acesso em: 27/8/2022.
5 EMENTA: Ação direta de inconstitucionalidade. Emenda nº 10/01 à Constituição do Estado do Paraná. Prejudicialidade do julgamento da Emenda, em razão do trânsito em julgado da ADI 2616 que tratava do mesmo tema. Efeito repristinatório da redação originária da norma. Constitucionalidade da criação de um órgão autônomo de perícia. 1. Ação direta proposta em face do art. 50 da Constituição do Estado do Paraná, em sua redação original, e dos seus arts. 46 e 50, com a redação dada pela Emenda Constitucional nº 10/01, os quais criaram um novo órgão de polícia, a “Polícia Científica”. 2. Prejudicialidade do julgamento referente à EC nº 10, aqui também questionada, uma vez que a Corte já se pronunciou, a uma só voz, pela procedência da ADI nº 2.616, já transitada em julgado. 3. Em virtude do efeito repristinatório da declaração de inconstitucionalidade nos processos de controle concentrado, com a declaração de inconstitucionalidade formal do art. 50 da Constituição estadual, na redação a ele conferida pela EC nº 10/01 (nos termos da ADI 2616), subsistirá a redação originária do art. 50 da Constituição estadual, que, apesar de praticamente idêntica àquela conferida pela Emenda Constitucional nº 10/01 ao caput do art. 50, é norma originária da Carta do Estado do Paraná e, por isso, não incide no vício de iniciativa, sendo necessária sua análise em relação ao conteúdo material do art. 144 da Constituição Federal. 4. Não ofende o § 4º do art. 144 da Constituição a estruturação de um órgão composto por peritos criminais e médicos legistas, separado da Polícia Civil e autônomo. O art. 50 da Constituição do Estado do Paraná, na redação originária, embora faça menção ao órgão denominado de “Polícia Científica”, por si só, não cria uma nova modalidade de polícia, como órgão de segurança pública, mas apenas disciplina órgão administrativo de perícia. Nada impede que o referido órgão continue a existir e a desempenhar suas funções no Estado do Paraná, não precisando, necessariamente, estar vinculado à Polícia Civil. 5. Ação direta julgada prejudicada na parte referente à Emenda à Constituição do Estado do Paraná nº 10/2001, e conferindo-se interpretação conforme à expressão “polícia científica”, contida na redação originária do art. 50 da Constituição Estadual, tão somente para afastar qualquer interpretação que confira a esse órgão o caráter de órgão de segurança pública.(DJE de 16/11/2020)