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Corte de água por motivo de inadimplência é inconstitucional

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Agenda 19/05/2008 às 00:00

Em cuidadoso estudo, sentença defende a inconstitucionalidade do art. 40, V, da Lei nº 11.445/2007, que autoriza a suspensão do fornecimento de água potável por concessionária do serviço público em virtude da falta de pagamento.

Poder judiciário

Juizado Especial Cível

Comarca de Conceição do Coité – BA.

Processo Número: 0680/07

Autor: J L O

Réu: Embasa

Suspensão do fornecimento de água potável. Concessionária do serviço público. Inconstitucionalidade do artigo 40, V, da Lei nº 11.445, de 05 de janeiro de 2007. Vedação ao retrocesso. Controle difuso. Violação da dignidade da pessoa humana e princípios consumeristas. Abuso de Direito. Imprescindibilidade da água para uma vida digna. Divergência na jurisprudência do STJ. Falsa antinomia. Dano moral. Indenização.

Dispensado o Relatório. (Lei 9.099/05, art. 38)

Pretende o autor, alegando o corte indevido no fornecimento de água, a declaração de inexistência de débito e indenização por dano moral. Juntou os documentos comprobatórios da existência do contrato de fornecimento de água, bem como da "execução de suspensão de fornecimento de água."

Não houve conciliação.

Em audiência de instrução e julgamento, a requerida ofereceu defesa por escrito e defendeu a legalidade de sua conduta, inclusive citando decisão do STJ, e culpa exclusiva do autor, visto que "encontrava-se inadimplente o que permitiu à Embasa o corte no fornecimento do serviço."

O fundamento da presente decisão é a inconstitucionalidade da norma que autoriza a suspensão do fornecimento de água potável ao consumidor, mesmo em mora, por afronta ao princípio constitucional da Dignidade da Pessoa Humana, em vista da imprescindibilidade da água potável para uma vida digna, além de violação dos princípios da boa-fé objetiva, vulnerabilidade do consumidor, função social do contrato e abuso do direito, previstos no Código de Defesa do Consumidor e Código Civil Brasileiro.

Defende-se também o exercício do controle difuso da constitucionalidade e a possibilidade de não aplicação da norma manifestamente inconstitucional, a adoção do princípio da vedação ao retrocesso, bem como a promoção do debate acerca da divergência jurisprudencial no STJ em vista de uma falsa antinomia entre interesse da coletividade e o direito do consumidor.

Irrelevante, por conseqüência, a discussão sobre a falta de pagamento da fatura ou cobrança de valor exorbitante, conforme veremos adiante.


1 – A DEPENDÊNCIA DA TORNEIRA

Embora lentamente, o Brasil vem avançando a cada dia sobre a problemática do saneamento básico. Entretanto, as regiões mais pobres do país, conseqüentemente onde também está a população mais carente, ainda sofrem com a falta de saneamento básico.

Além disso, é precário ainda o serviço de esgotos e o tratamento de dejetos sanitários, que ainda são canalizados para rios e mananciais de todas as espécies.

Este comportamento sádico de depredação do meio-ambiente é herança cultural de nossos antepassados portugueses, que em apenas dois anos poluíram o Rio das Tripas [01] na primeira capital do Brasil, Salvador, conforme observado por Eduardo Bueno na deliciosa obra A Coroa, a Cruz e a Espada - Lei, Ordem e Corrupção no Brasil Colônia:

"O abate de gado se dava no Curral do Conselho, como então se chamava o matadouro. Esse abatedouro ficava em uma baixada nos arredores da porta de Santa Luzia, no limite sul da cidade, próximo ao local onde, mais tarde, surgiu o mosteiro de São Bento, justo nas nascentes daquele que, em função dos dejetos decorrentes dos abates, ficou conhecido como Rio das Tripas. Não é de surpreender que, cerca de dois anos depois da construção do Curral do Conselho, o curso d’água que banhava Salvador já estivesse poluído." (p 119 e 120).

O que se vê, atualmente, é a completa dependência da torneira para o abastecimento doméstico de água potável, seja nas grandes cidades como em pequenas cidades do interior.

Os mananciais estão poluídos, as "cacimbas" não existem mais, os riachos secaram, os açudes recebem os dejetos do esgotamento sanitário, tornando absolutamente inviável o consumo de água proveniente dessas fontes.

A ação depredatória do homem implicou, lamentavelmente, na absoluta dependência da torneira com "água encanada" para realização de uma vida digna no que se refere à ingestão desse elemento imprescindível ao corpo humano.


2 - A nova lei do saneamento básico

A Lei nº 11.445, de 05 de janeiro de 2007, que estabelece diretrizes nacionais para o saneamento básico, adota como princípios fundamentais do serviço público de saneamento básico, dentre outros:

I - universalização do acesso;

II - integralidade, compreendida como o conjunto de todas as atividades e componentes de cada um dos diversos serviços de saneamento básico, propiciando à população o acesso na conformidade de suas necessidades e maximizando a eficácia das ações e resultados;

III - abastecimento de água, esgotamento sanitário, limpeza urbana e manejo dos resíduos sólidos realizados de formas adequadas à saúde pública e à proteção do meio ambiente;

Com a mesma preocupação conceitual, define a "universalização" como a ampliação progressiva do acesso de todos os domicílios ocupados ao saneamento básico. Por fim, define o saneamento básico como o conjunto de serviços, infra-estrutura e operacionalização do abastecimento de água potável, esgotamento sanitário e limpeza urbana, sendo estes assim definidos:

a) abastecimento de água potável: constituído pelas atividades, infra-estruturas e instalações necessárias ao abastecimento público de água potável, desde a captação até as ligações prediais e respectivos instrumentos de medição;

c) esgotamento sanitário: constituído pelas atividades, infra-estruturas e instalações operacionais de coleta, transporte, tratamento e disposição final adequados dos esgotos sanitários, desde as ligações prediais até o seu lançamento final no meio ambiente;

d) limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos: conjunto de atividades, infra-estruturas e instalações operacionais de coleta, transporte, transbordo, tratamento e destino final do lixo doméstico e do lixo originário da varrição e limpeza de logradouros e vias públicas;

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Como se vê, existe sintonia entre a realidade do saneamento básico do país e a nova Lei: reconhecendo a deficiência do serviço, prevê a universalização do acesso, a integralidade das ações e o abastecimento de água e esgotamento sanitário como complementos da saúde pública e proteção do meio-ambiente.

Em conseqüência, também em harmonia, sobretudo, com o princípio da dignidade da pessoa humana e com o disposto no artigo 196, da Constituição Federal, que estabelece a saúde como direito de todos e dever do Estado, garantindo mediante políticas sociais e econômicas que visem a redução do risco de doença.

2.1. A PREVISÃO LEGAL PARA O CORTE

Apesar dos princípios fundamentais elencados no artigo 2º da lei nº 11.445/07, o artigo 40 prevê a possibilidade de interrupção no serviço por motivo de inadimplemento do usuário do serviço de abastecimento de água, do pagamento das tarifas, após ter sido formalmente notificado.

Art. 40. Os serviços poderão ser interrompidos pelo prestador nas seguintes hipóteses:

I - situações de emergência que atinjam a segurança de pessoas e bens;

II - necessidade de efetuar reparos, modificações ou melhorias de qualquer natureza nos sistemas;

III - negativa do usuário em permitir a instalação de dispositivo de leitura de água consumida, após ter sido previamente notificado a respeito;

IV - manipulação indevida de qualquer tubulação, medidor ou outra instalação do prestador, por parte do usuário; e

V - inadimplemento do usuário do serviço de abastecimento de água, do pagamento das tarifas, após ter sido formalmente notificado.

§ 1º As interrupções programadas serão previamente comunicadas ao regulador e aos usuários.

§ 2º A suspensão dos serviços prevista nos incisos III e V do caput deste artigo será precedida de prévio aviso ao usuário, não inferior a 30 (trinta) dias da data prevista para a suspensão.

§ 3º A interrupção ou a restrição do fornecimento de água por inadimplência a estabelecimentos de saúde, a instituições educacionais e de internação coletiva de pessoas e a usuário residencial de baixa renda beneficiário de tarifa social deverá obedecer a prazos e critérios que preservem condições mínimas de manutenção da saúde das pessoas atingidas.

Adotando a teoria do "morde e assopra", o parágrafo terceiro do citado artigo observa que a suspensão do fornecimento de água a usuário residencial de baixa renda beneficiário de tarifa social deverá obedecer a prazos e critérios que preservem condições mínimas de manutenção da saúde das pessoas atingidas.

A Lei, no entanto, não define a forma da notificação, não estabelece qual o prazo de notificação para o usuário residencial de baixa renda e também não indica como preservar as condições mínimas de saúde dos atingidos. Quem vai lhe fornecer água potável enquanto perdurar a interrupção? E se contrair alguma doença por motivo de consumo de água poluída, quem é o responsável?

Por fim, não esclarece também a Lei à cerca da quantidade de meses em atraso, ou a quantidade de tarifas não pagas, que possam ensejar a suspensão no fornecimento. A interpretação literal remete ao reconhecimento de mais de um mês de atraso, sendo que cada mês representa um pagamento, vez que a lei menciona, expressamente, "tarifas". Da mesma forma, por "notificação formal" entende-se a correspondência enviada ao endereço do consumidor com Aviso de Recebimento.

Esta permissão, no nosso entender, não está em sintonia com o fundamento da República Federativa do Brasil, disposto no artigo 1º, III, da Constituição Federal.

2.1.1. A VEDAÇÃO AO RETROCESSO

Quer parecer que esta permissão representa verdadeiro retrocesso com relação ao fundamento republicano da dignidade da pessoa humana ou mesmo a utilização da superada teoria da "reserva do possível."

Ora, sendo fundamento da república, a dignidade da pessoa humana não pode ser alvo de violação através de norma infraconstitucional, conforme nos ensina Ricardo Maurício Freire Soares:

"Deve-se reconhecer, contudo, em nome do compromisso ético do direito com a justiça, o primado da vedação ao retrocesso em face do argumento da reserva do possível, de molde a concretizar a força normativa e eficacial do princípio da dignidade da pessoa humana, potencializando a interpretação mais compatível como os valores e fins norteadores do sistema constitucional brasileiro." [02]

Do exposto, uma legislação infraconstitucional que permite a suspensão do fornecimento de água potável ao consumidor, considerando a inexistência de alternativa, a essencialidade do serviço e a imprescindibilidade da água para uma existência digna, significa verdadeiro retrocesso em relação ao fundamento da república e não pode ser amparado pelo Poder Judiciário.

Da mesma forma, não há que se falar em "reserva do possível", visto que o princípio norteador do saneamento básico é a "universalização do serviço" e é obrigação da concessionária do serviço público oferecer tal serviço com regularidade e sem interrupção.


3. Dignidade da pessoa humana

Antes de adentrarmos na discussão da principiologia consumerista, convém destacar o princípio maior, base principal de todo o ordenamento pátrio, que é a DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA.

De fato, a Constituição Federal de 1988 estabeleceu com fundamento da República a dignidade da pessoa humana. (artigo 1º, III, CF).

Como objetivos fundamentais da República, o artigo 3°, também no inciso III, indicou a erradicação da pobreza e da marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais.

Ou seja, a dignidade da pessoa humana é o "fundamento" e a erradicação da pobreza, da marginalização e redução das desigualdades são os "objetivos" do Estado brasileiro.

Não há que se falar, portanto, em regulamentação ou definição através de normas infraconstitucionais, visto que aqui se refere a princípios normativos norteadores da própria República Brasileira. Não se pode esperar, portanto, que o legislador sem poder constituinte determine a entrada em vigor, vamos dizer assim, dos "fundamentos" e dos "objetivos" da República.

Maria Celina Bodin de Moraes, professora de titular de Direito Civil da Uerj, defendendo o caráter normativo dos princípios constitucionais e sua absorção pelo Direito Civil, em texto publicado na obra Princípios do Direito Civil Contemporâneo [03], leciona:

"O princípio constitucional visa garantir o respeito e a proteção da dignidade humana não apenas no sentido de assegurar um tratamento humano e não degradante, e tampouco conduz ao mero oferecimento de garantias à integridade física do ser humano. Dado o caráter normativo dos princípios constitucionais, princípios que contém os valores éticos jurídicos fornecidos pela democracia, isto vem a significar a completa transformação do Direito Civil, de um direito que não mais encontra nos valores individualistas de outrora o seu fundamento axiológico."

Pode-se dizer, por conseqüência, que mesmo uma legislação destinada a estabelecer diretrizes nacionais para o saneamento básico não pode se desviar dos princípios constitucionais que norteiam a República, dado o seu caráter normativo.

O professor Ricardo Maurício Freire Soares, defendendo uma nova interpretação do Código Brasileiro de Defesa do Consumidor, coloca a dignidade da pessoa humana como norma embasadora de todo o sistema constitucional, informando as prerrogativas e garantias fundamentais da cidadania, no plano da sociedade civil e do mercado de consumo. [04]

Além da proclamação da eficácia normativa do princípio da dignidade da pessoa humana, o referido professor defende também a plena eficácia jurídica nas relações públicas e privadas:

"Com efeito, na condição de princípio constitucional de evidente densidade axiolóxica e teleológica, deve se reconhecer a força normativa da dignidade da pessoa humana, dotada de plena eficácia nas relações públicas (efeitos verticais entre Estado e indivíduos) e privadas (efeitos horizontais entre particulares), seja na perspectiva abstrata do direito objetivo, seja na dimensão concreta de exercício das faculdades dos consumidores." (op. cit. p. 81).

É possível, adiantando a conclusão desse nosso estudo preliminar, a vida digna sem água potável?

Não estaria o fornecedor da matéria básica à existência humana violando gravemente o fundamento da República ao suspender, mesmo em mora do devedor, o fornecimento de água potável?


4. PRINCIPIOLOGIA CONSUMERISTA

Segundo o Professor Ricardo Maurício Freire Soares, que defende uma nova interpretação do Código Brasileiro de Defesa do Consumidor, são basilares para o direito do consumidor, dentre outros, os seguintes princípios: transparência (CDC, art. 4º, caput); vulnerabilidade (CDC, art. 4º, I); igualdade (CF, art. 5º, caput); boa-fé objetiva (CDC, art. 4º, III, parte final); repressão eficiente a abusos (CDC, art. 4º, VI); harmonia do mercado de consumo (CDC, art. 4º, caput e III); equidade contratual (CDC, art. 47) e confiança. (op. cit. pp. 89 a 101)

Para deslinde de nossa causa, abordaremos a seguir alguns desses princípios, além de outros que o caso exige.

4.1. VULNERABILIDADE DO CONSUMIDOR

O artigo 4º, I, do Código de Defesa do Consumidor, que trata da Política Nacional de Relações de Consumo, reconhece, expressamente, a condição de vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo. Segundo a doutrina [05], esta vulnerabilidade pode ser classificada da seguinte forma:

a) Técnica – quando o consumidor não possui conhecimentos específicos sobre o objeto que está adquirindo ou sobre o serviço que lhe está sendo prestado;

b) Científica – a falta de conhecimentos jurídicos específicos, contabilidade ou economia;

c) Fática ou sócio-econômica – quando o prestador do bem ou serviço impõe sua superioridade a todos que com ele contrata, fazendo valer sua posição de monopólio fático ou jurídico, por seu grande poder econômico ou em razão da essencialidade do serviço.

Além disso, sabe-se que atualmente a maioria dos contratos de consumo é de "adesão", onde o fornecedor do serviço já possui um contrato padrão previamente elaborado, cabendo ao consumidor apenas aceitá-lo em bloco sem discussão, seja em face da sua vulnerabilidade técnica, seja em face da falta de alternativa.

No caso específico, pelo menos em relação à empresa fornecedora do serviço na Bahia (Embasa), o consumidor solicita o serviço e submete-se às condições e preços que não tem conhecimento prévio.

Por fim, o princípio da vulnerabilidade do consumidor não pode ser visto como mera intenção, ou norma programática sem eficácia. Ao contrário, "revela-se como princípio justificador da própria existência de uma lei protetiva destinada a efetivar, também no plano infraconstitucional, os princípios e valores constitucionais, em especial o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), da isonomia substancial (art. 5º, caput) e da defesa do consumidor (art. 5º, XXXII)." [06]

Além da efetiva vulnerabilidade sócio-econômica, a suspensão do fornecimento de água potável com consumidor, mesmo em mora, conduz à pior das vulnerabilidades do ser humano: sua saúde física e psíquica.

4.2. BOA-FÉ OBJETIVA

No ensinamento de Carlos Maurício Freire Soares, "o Código de Defesa do Consumidor elevou a boa-fé-objetiva à condição de conduta obrigatória pelo art. 4º, III, parte final, consagrando um dos seus princípios fundamentais. A boa-fé foi prevista não como mera intenção, mas como imperativo objetivo de conduta, exigência de respeito, lealdade, cuidado com a integridade física, moral e patrimonial." (op. cit. p. 95).

Diferentemente da boa-fé meramente subjetiva, vinculada mais ao estado psicológico com contratante, a boa-fé objetiva remete ao conceito de padrões aceitáveis de comportamento, ou seja, um standard jurídico.

Com relação às conseqüências para o contrato, Gustavo Rene Nicolau, leciona:

"A boa-fé objetiva, por seu turno, não se revela por conta de uma investigação psíquica do indivíduo, não tem ligação com a ignorância ou ciência do agente em determinada relação. A boa-fé objetiva, ao contrário, é um padrão concreto de conduta reta, proba, íntegra, zelosa que os contratantes devem guardar entre si, sob pena de – não o fazendo – estarem em última análise descumprindo o contrato." [07]

Por conseqüência, entendemos que a boa-fé objetiva, em contrato de fornecimento de água potável, remete necessariamente à compreensão de que o comportamento exigível socialmente do fornecedor, inclusive em cumprimento do princípio da solidariedade, será sempre da continuidade do serviço, apesar da mora do consumidor.

4.3. Função Social do Contrato

Na teoria contemporânea do Direito das Obrigações, impõe-se uma mudança radical na leitura da disciplina das obrigações, que não pode mais ser considerada apenas como garantia do credor: "a obrigação não se identifica no direito ou nos direitos do credor; ela configura-se cada vez mais como uma relação de cooperação [...] A cooperação, e um determinado modo de ser, substitui a subordinação e o credor se torna titular de obrigações genéricas ou específicas de cooperação ao adimplemento do devedor." [08]

Doutrinariamente, tem-se como superada a tese de que o contrato tem como finalidade principal a segurança jurídica. Mais que isso: o contrato deve ter como finalidade principal a pessoa humana e os interesses da coletividade, ou seja, uma função social.

Adotando esta nova forma de ver as relações jurídicas, o novo Código Civil limita a liberdade de contratar à função social do contrato e, além disso, observa aos contratos a adoção aos princípios da boa-fé e probidade, bem como a interpretação favorável ao aderente no caso de cláusula ambígua ou contraditória. [09]

Segundo o professor Flávio Tartuce [10], "o Código Civil Brasileiro de 2002 é o único dispositivo que condiciona a liberdade contratual (ou a liberdade de contratar) à função social do contrato." Daí, o grande desafio de preencher o conteúdo do que seja a função social dos pactos.

Contribuindo de forma excepcional, o professor Tartuce nos ensina:

"Dessa forma e sem prejuízo de novos entendimentos doutrinários sobre o tema, a importância da inovação esse princípio é grandiosa, uma vez que já trouxe ao nosso sistema civil a idéia de abrandamento da força obrigatória dos contratos, afastando cláusulas que colidem com os preceitos de ordem pública e buscando a igualdade substancial entre os negociantes. O seu principal enfoque é justamente equilibrar as relações jurídicas, sem preponderância de uma parte sobre a outra, resguardados os interesses do grupo social também nas relações de direito privado." (op. cit. p. 261).

Há quem defenda, não se pode negar, a eficácia apenas interna da função social dos contratos, restringindo sua aplicação apenas aos contratantes ou à investigação da causa do próprio contrato. De outro lado, a exemplo de Flávio Tartuce, a idéia de função social está relacionada com o conceito de finalidade e não se pode afastar o seu fundamento constitucional, principalmente em relação à dignidade da pessoa humana. (op. cit. pp. 249 e 250).

No caso de um contrato de fornecimento de água tratada, onde de um lado figura uma concessionária do serviço público, geralmente monopolizadora do serviço, e, de outro lado, um consumidor absolutamente dependente, inclusive para sua própria sobrevivência, do bem oferecido, não se vê qualquer indício de igualdade substancial e equilíbrio entre as partes contratantes. Sequer igualdade formal, aliás.

De outro lado, adotando-se a teoria da dupla eficácia – interna e externa – da função social do contrato, não se pode olvidar que no caso em estudo, ou seja, o impedimento legal ao acesso à água potável, que esta cláusula contratual, sem dúvida, fere a dignidade da pessoa humana o princípio da função social entre os contratantes.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

. Corte de água por motivo de inadimplência é inconstitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1783, 19 mai. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/jurisprudencia/16850. Acesso em: 18 nov. 2024.

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