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Corte de água por motivo de inadimplência é inconstitucional

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Agenda 19/05/2008 às 00:00

9. O CONTROLE DIFUSO DA CONSTITUCIONALIADE

Reveste-se de legalidade constitucional, portanto, em face dos princípios supra mencionados e na continuidade da eficácia do contrato, a suspensão do fornecimento de água potável?

Aliás, tal ato não fere os princípios da universalização, integralidade e abastecimento de água adequado à saúde pública previstos no artigo 2º, I, II e III, da Lei 11.445/07?

É possível, por fim, preservar a saúde e viver com dignidade sem água potável?

Se a Lei não responde expressamente, caberá ao julgador, amparado no principio constitucional da dignidade da pessoa humana e no princípio da função social do contrato de fornecimento de água potável, reconhecer o abuso do direito da concessionária ao suspender o fornecimento de água potável, colocando em risco a saúde e dignidade do usuário. Sem prejuízo, evidentemente, do reconhecimento da prática de ato ilícito, a teor do artigo 187, do novo CC, e da indenização pelo dano moral. Com efeito, além da privação da água, o consumidor ainda é submetido ao constrangimento, perante sua comunidade, de ter seu domicílio violado por agentes da concessionária do serviço.

Afinal de contas, esta é a missão do jurista, conforme lição de Juarez Freitas:

[...] captar a mensagem para o seu tempo, não lhe cabendo acautelar-se em elucubrações vãs, na ânsia de interpretar fossilizados textos legais, em função de suas vírgulas ou reticências. Não pode limitar-se a uma postura estática na defesa de uma ordem senil, que não assimila o impacto das exigências sociais. Ao contrário, o jurista tem de colocar seu pensamento e sua cultura a serviço de uma missão evangelizadora no objetivo de desfazer a rede de peias arquitetadas pelo egoísmo em sua voracidade autofágica de lucro. [17]

Efetivamente, quem deixa e pagar o "recibo [18]" da água no final do mês é a população mais carente e se assim o fez é porque não teve alternativa: a comida ou a água, o aluguel ou a água, a prestação ou a água, a "conta de luz" ou a água, etc.

E assim, ao ser impedido ao consumo de água potável, o Estado estará impelindo a pessoa humana ao consumo, incluindo o asseio pessoal e a preparação de comida, de água sem tratamento adequado, visto que não poderá sobreviver sem água, submetendo-o a diversas patologias de origem hídrica, conforme tabela em anexo.

Por fim, a água segundo a Declaração Universal dos Direitos da Água, "é a seiva do nosso planeta. Ela é a condição essencial de vida de todo ser vegetal, animal ou humano. Sem ela não poderíamos conceber como são a atmosfera, o clima, a vegetação, a cultura ou a agricultura. O direito à água é um dos direitos fundamentais do ser humano: o direito à vida, tal qual é estipulado do Art. 3 º da Declaração dos Direitos do Homem." [19]

Em conclusão, o artigo 40, V, da Lei nº 11.445, de 05 de janeiro de 2007, que permite a interrupção do fornecimento de água potável ao consumidor inadimplente, fere o artigo 1º, III, da Constituição Federal e, por conseqüência, também o artigo 196, da Constituição Federal, ao eximir-se o Estado Brasileiro da responsabilidade constitucional de garantir saúde a todos e da promoção de políticas que visem a redução do risco de doença.

Isto posto, em exercício do controle difuso da constitucionalidade, o Juizado de Defesa do Consumidor da Comarca de Conceição do Coité, nega a aplicação da referida por norma por absoluta inconstitucionalidade, atendendo ao disposto no artigo 6º da Lei Estadual nº 10.845/07, Lei de Organização e Divisão Judiciária da Bahia, que dispõe:

"OS JUÍZES TOGADOS PODERÃO, NO EXERCÍCIO DO CONTROLE DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADE, NEGAR APLICAÇÃO ÀS LEIS QUE ENTENDEREM MANIFESTAMENTE INCONSTITUCIONAIS."


10. O JULGAMENTO

O autor, viúvo e aposentado, demonstrou através de faturas anteriores um consumo módico de água (de 06 a 23 m3 de água) e a requerida não justificou o absurdo consumo, com referência ao mês 03/2007, de 85 m3 no valor de R$ 261,14 (duzentos e sessenta e um reais, quatorze centavos).

Por tudo o mais que dos autos consta, JULGO PROCEDENTE a ação pra declarar, como de fato declaro, a inexistência de débito do autor com relação à cobrança objeto da ação.

Pelos fundamentos supra mencionados, reconheço que a suspensão de fornecimento de água perpetrada pela acionada, abusando ilicitamente de seu direito, causou constrangimento moral absolutamente desnecessário, ilegal e, sobretudo, inconstitucional ao autor.

Por isso mesmo, fica condenada ao pagamento de indenização por dano moral no valor de R$ 4.100,00 (quatro mil e cem reais), equivalente a 10 (dez) salários mínimos, com incidência de correção monetária e juros legais desde a data do referido infortúnio.

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Conceição do Coité, 11 de março de 2008

Bel. Gerivaldo Alves Neiva

Juiz de Direito


NOTAS

01 O Rio das Tripas não existe mais. Na verdade, foi canalizado e sobre o seu leito situa-se a atual Rua JJ Seabra, também conhecida como Baixa dos Sapateiros, imortalizada na canção de Ary Barroso. Segundo o historiador Cid Teixeira, no entanto, explicando os esquisitos nomes de ruas e bairros de Salvador, no site http://www.cidteixeira.com.br/Template.asp?Nivel=00030007&IdEntidade=187> acesso em 27.11.07, "o Rio das Tripas está lá, a Baixa dos Sapateiros não existe, ela é um rio canalizado, você anda por cima do extradorso da abóbada que cria a Baixa dos Sapateiros, o Rio das Tripas está lá."

02 SOARES, Ricardo Maurício Freire. A nova interpretação do Código Brasileiro de Defesa do Consumidor. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 83

03 MORAES, Maria Celina Bodin de. Coord. Princípios do Direito Civil Contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 15.

04 Op. cit. p. 78.

05 BARLETTA, Fabiana Rodrigues. A Revisão Contratual por excessiva onerosidade superveniente à contratação positivada no Código de Defesa do Consumidor. in Princípios de Direito Civil-Constitucional. Coord. TEPEDINO, Gustavo. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, pg. 289.

06 CALIXTO, Marcelo Junqueira. O Princípio da Vulnerabilidade do Consumidor. in Princípios do Direito Civil Contemporâneo. Coord. MORAES, Maria Celina Bodin de. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 355.

07 NICOLAU, Gustavo Rene. Implicações práticas da boa-fé objetiva. In. Direto Contratual. Temas atuais. Coord. HIRONAKA, Giselda e TARTUCE, Flávio. São Paulo: Método, 2008. p. 115.

08 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 212.

09Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.

Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.

Art. 423. Quando houver no contrato de adesão cláusulas ambíguas ou contraditórias, dever-se-á adotar a interpretação mais favorável ao aderente.

10 TARTUCE, Flávio. Função Social dos Contatos: do Código de Defesa do Consumidor ao Código Civil de 2002. São Paulo: Método, 2007. p. 244.

11 FACHIN, Luiz Edson. Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 284.

12 CARDOSO, Vladimir Mucuri. O abuso do direito na perspectiva civil-constitucional. in Princípios do Direito Civil Contemporâneo. Coord. MORAES, Maria Celina Bodin. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 61.

13 http://www.uniagua.org.br/website/default.asp?tp=3&pag=curiosidades.htm> acesso em 27.11.07

14 http://www.tratabrasil.org.br/ >acesso em 27.11.07

15 Contratos. 12ª ed. Forense. Rio de janeiro. 1990. p 190

16 Direito Administrativo Brasileiro. 22ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1997. p 304.

17 FREITAS, Juarez. As grandes linhas da filosofia do direito. Caxias do Sul: Educs, 1986. p.119.

18 No caso da Bahia, o documento emitido pela EMBASA – Empresa Baiana de Água e Saneamento S.A. é intitulado "Nota Fiscal/Conta de Água e/ou Esgoto", mas a população convencionou chamá-lo simplesmente de "recibo de água."

19Em 22 de março de 1992 a ONU (Organização das Nações Unidas) instituiu o "Dia Mundial da Água", publicando um documento intitulado "Declaração Universal dos Direitos da Água". Eis o texto que vale uma reflexão:

1.- A água faz parte do patrimônio do planeta. Cada continente, cada povo, cada nação, cada região, cada cidade, cada cidadão, é plenamente responsável aos olhos de todos.

2.- A água é a seiva de nosso planeta. Ela é condição essencial de vida de todo vegetal, animal ou ser humano. Sem ela não poderíamos conceber como são a atmosfera, o clima, a vegetação, a cultura ou a agricultura.

3.- Os recursos naturais de transformação da água em água potável são lentos, frágeis e muito limitados. Assim sendo, a água deve ser manipulada com racionalidade, precaução e parcimônia.

4.- O equilíbrio e o futuro de nosso planeta dependem da preservação da água e de seus ciclos. Estes devem permanecer intactos e funcionando normalmente para garantir a continuidade da vida sobre a Terra. Este equilíbrio depende em particular, da preservação dos mares e oceanos, por onde os ciclos começam.

5.- A água não é somente herança de nossos predecessores; ela é, sobretudo, um empréstimo aos nossos sucessores. Sua proteção constitui uma necessidade vital, assim como a obrigação moral do homem para com as gerações presentes e futuras.

6.- A água não é uma doação gratuita da natureza; ela tem um valor econômico: precisa-se saber que ela é, algumas vezes, rara e dispendiosa e que pode muito bem escassear em qualquer região do mundo.

7.- A água não deve ser desperdiçada, nem poluída, nem envenenada. De maneira geral, sua utilização deve ser feita com consciência e discernimento para que não se chegue a uma situação de esgotamento ou de deterioração da qualidade das reservas atualmente disponíveis.

8.- A utilização da água implica em respeito à lei. Sua proteção constitui uma obrigação jurídica para todo homem ou grupo social que a utiliza. Esta questão não deve ser ignorada nem pelo homem nem pelo Estado.

9.- A gestão da água impõe um equilíbrio entre os imperativos de sua proteção e as necessidades de ordem econômica, sanitária e social.

10.- O planejamento da gestão da água deve levar em conta a solidariedade e o consenso em razão de sua distribuição desigual sobre a Terra.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

. Corte de água por motivo de inadimplência é inconstitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1783, 19 mai. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/jurisprudencia/16850. Acesso em: 11 mai. 2024.

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