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De bombom envenenado a bilhetes ameaçadores, as histórias de juízes jurados de morte

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Agenda 09/04/2019 às 16:00

Dos mais de cem juízes ameaçados no país em 2017, 76 viviam sob proteção.

De bombom envenenado a bilhetes ameaçadores, as histórias de juízes jurados de morte

Fonte: Agência Pública

Resumo:Dos mais de cem juízes ameaçados no país em 2017, 76 viviam sob proteção; a Pública entrevistou quatro deles em diferentes estados para saber dos impactos na sua rotina e de suas famílias

Por Texto: Anna Beatriz Anjos | Infográficos: Bruno Fonseca

Bilhetes, mensagens de áudio, e-mails, ligações telefônicas interceptadas, conversas de bar e até uma inofensiva caixa de bombons. As ameaças a juízes país afora assumem variadas formas, umas mais inusitadas que outras.

Sobre seus alvos, é possível afirmar que a maioria (88%) trabalha na Justiça Estadual e quase metade (47%) está lotada em varas de competência criminal. Essa era a realidade dos 110 magistrados vítimas de tentativas de intimidação em 2017, segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Desse total, 34 não contavam com proteção fornecida pelas autoridades, e os outros 76 receberam segurança em forma de escolta, veículos blindados ou coletes à prova de balas, por exemplo.

Os números são parte do Diagnóstico da Segurança Institucional do Poder Judiciário, lançado em setembro do ano passado. Esse é o segundo estudo do gênero realizado pelo CNJ: o primeiro, de junho de 2016, contabilizou 131 juízes em situação de risco à época – no entanto, o órgão não descreve no relatório os tipos mais comuns de ameaças.

Como será explicado adiante, foi a partir de 2011, quando a juíza Patrícia Acioli foi morta com 21 tiros em frente à sua casa, em Niterói (RJ), por policiais militares ligados às milícias, que a segurança de magistrados passou a ser padronizada nos tribunais e as ameaças, monitoradas pelo CNJ.

A reportagem da Pública ouviu depoimentos de quatro juízes de diferentes regiões do país. De Rio de Janeiro, Roraima, Alagoas e Piauí, Paraná, os magistrados contam como as ameaças impactaram suas vidas a ponto de a casa de um deles ser “transformada em um bunker”, ou como viver com escolta reduziu a vida social e interferiu bruscamente na privacidade, uma realidade comum a todos os entrevistados.


10 estados com maior proporção de juízes ameaçados em 2017 (número de ameaças a cada mil magistrados)


Rio de Janeiro – “Para Dr. Felipe, um fraternal abraço”, dizia o recado na caixa aberta pelo Esquadrão Antibombas

No fim de janeiro, quando a reportagem esteve em Magé, na Baixada Fluminense, o juiz Felipe Carvalho Gonçalves da Silva cumpria seus últimos dias de trabalho na Vara da Infância e Juventude da cidade. Ele havia acabado de ser promovido e estava de mudança para Belford Roxo, na mesma região, onde agora ocupa a Vara Criminal. As audiências daquela quarta-feira estavam prestes a começar quando uma promotora estadual exclamou: “Esse aí é ameaçado desde que entrei no Ministério Público!”.

Na magistratura há 12 anos, Gonçalves iniciou a carreira em Macaé e depois foi transferido para Maricá, ambas cidades no litoral do Rio. Nesta última, também atuava na Vara Criminal quando usou escolta pela primeira vez, em janeiro de 2015, mas de maneira preventiva. Ele determinou a prisão de integrantes de uma quadrilha de tráfico de drogas que planejava matar um delegado e outro juiz do município, e o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, diante da gravidade do caso, decidiu lhe conceder a medida protetiva: um policial militar que o acompanhava à paisana 24 horas por dia, além de um carro blindado para que se deslocasse diariamente de sua casa, em Niterói, até o Fórum. Essas medidas, de acordo com o CNJ, eram utilizadas por 35% e 31% dos juízes ameaçados em 2017, respectivamente.

Isso não impediu que ocorressem ações para intimidá-lo. “Logo depois, comecei a receber ameaças por carta, por e-mail. Os e-mails e as cartas foram disparados para vários órgãos – CNJ, Ministério Público, Corregedoria do TJ-RJ – noticiando que uma outra quadrilha tinha um plano para me matar. Essa quadrilha foi praticar um homicídio em Maricá e matou a pessoa errada. Na fuga, a placa do carro que estavam dirigindo caiu e o veículo foi interceptado na estrada. Os indivíduos foram presos, e então comecei a receber cartas dizendo que essas pessoas iam me matar. Foi logo depois do início da escolta – no mês seguinte, ou dois meses depois”, relembra.

Gonçalves garante que até encarou a situação com naturalidade – “sempre achei que fosse possível isso acontecer um dia” –, mas o sinal de alerta soou mesmo assim. “Tenho muitos familiares em Maricá e fiquei preocupado com eles. Meu padrinho, que vive lá, ficou quase um mês sem dormir. Todo mundo fica com medo, não só de acontecer alguma coisa comigo, mas de ser atingido de alguma forma.” As ameaças influenciaram também seu pai, que tinha um imóvel de veraneio na cidade e “colocou câmeras na casa toda”. “Todo mundo sabia que o juiz da cidade era parente das pessoas que residiam ali. Vira uma bola de neve, a sensação de insegurança foi se propagando.”

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Em maio de 2015, o magistrado conseguiu uma transferência para Magé – a mudança o deixou sem escolta –, mas continuou à frente da Vara Criminal de Maricá enquanto um juiz substituto não chegava. Dividir-se entre as duas funções não durou muito tempo. No mesmo mês, uma nova e ousada ameaça aconteceu. “Chegou uma caixa pelos Correios e eu achei suspeito. Não conhecia o remetente e a caixa vinha da Baixada Fluminense. Como essa quadrilha que havia praticado a execução em Maricá era da Baixada Fluminense também, desconfiei. Comuniquei à divisão de segurança do Tribunal [de Justiça do Rio], que mandou policiais. Os policiais também acharam por bem não abrir a caixa, chamaram o Esquadrão Antibombas e, dentro, havia bombons e um cartão com a mensagem ‘para Dr. Felipe, um fraternal abraço'”, descreve. Os bombons foram enviados para perícia e se constatou que continham substância compatível a veneno de rato. Segundo Gonçalves, a suspeita da polícia, que investiga o caso, é que uma pessoa prejudicada pelo grupo criminoso tenha disparado os e-mails e enviado os bombons justamente para incriminá-lo.

Diante do acontecido, o Tribunal de Justiça entendeu que o juiz estava em situação de risco, por isso, além de retomada da escolta, determinou que ele passasse a atuar somente em Magé. A medida protetiva cessou novamente alguns meses depois, em agosto daquele ano, mas por pouco tempo: na cidade, Gonçalves julgou casos envolvendo crimes de políticos locais e, logo no início de 2016, mandou prender dois ex-prefeitos por desvio de dinheiro público. Foi quando, pela terceira vez, o tribunal decidiu lhe designar proteção, e o magistrado voltou a utilizar o veículo blindado da instituição e a ser acompanhado por um policial militar todos os dias. Posteriormente, a medida foi reforçada, e até hoje ele é seguido diariamente por dois agentes, que se revezam em turnos com uma segunda dupla. Em seu caso, os seguranças são policiais militares lotados no próprio Tribunal de Justiça fluminense, que tiveram que passar por um processo de seleção para prestar esse tipo de serviço a autoridades.

Como ele se sente depois de quase dois anos e meio tendo seus passos meticulosamente observados? “A gente acostuma a andar escoltado, é natural, o ser humano acaba se adaptando. Mas sua privacidade e sua rotina são afetadas por isso. Vou sair para trabalhar, tenho que marcar para a escolta ir me pegar. Se for para algum lugar mais complicado, tenho que marcar para a escolta ir me pegar”, responde. “Não tenho a rotina de sair para comprar um pão. Assim como não tenho uma rotina de sair para almoçar, almoço no gabinete todos os dias, muito eventualmente saio para almoçar. Não quero ter uma rotina, não quero que as pessoas saibam que almoço em determinado lugar.”

No dia em que recebeu a reportagem, o juiz abriu uma exceção e almoçou em um restaurante localizado a dois minutos de caminhada do Fórum. Mesmo assim, foi seguido pelos seguranças, que o aguardaram na porta do estabelecimento. De fato, para onde ele vai, a escolta vai atrás, sempre à paisana e com postura discreta. Bacharel e mestre em direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), Gonçalves é doutorando em processo penal na mesma instituição. Frequentemente viaja à capital para assistir às aulas, mas nunca sozinho. “Vou para a universidade e a escolta fica lá fora me esperando”, diz.

A Pública também acompanhou a ida do magistrado ao Rio para participar de sua cerimônia de promoção na sede do Tribunal de Justiça, no centro da cidade. De carro blindado, os policiais o levaram de Magé ao local e o esperaram do lado externo, até que o evento acabasse. Questionada se gostaria de dar seu depoimento sobre o trabalho que desempenha, a dupla preferiu não se manifestar.


“Minha esposa não fala para ninguém que é casada com juiz”

Não é só sobre a vida do magistrado que se fazem sentir os efeitos da rígida rotina de cuidados com a segurança: a família também sofre com a situação. A esposa e os filhos de Gonçalves vivem com ele em Niterói, em um condomínio fechado, e utilizam um veículo particular também blindado. “Meus familiares não têm escolta, então eles evitam sair de casa. Nunca vieram a Magé. Minha esposa não fala para ninguém que é casada com juiz, meu filho não sabe – ele tem 6 anos. Acha que os policiais são meus amigos”, revela. “Quando ele tiver um pouquinho mais de maturidade, a gente vai explicar qual o trabalho do pai.”

Para além das medidas formais de proteção, Gonçalves enumera outras que ele mesmo incorporou ao dia a dia para se sentir mais resguardado. “Qual a primeira coisa que marca a sua identidade? O documento, a carteira funcional. Eu não ando com a minha carteira funcional tem anos, apesar de ter orgulho do que faço. Tenho que esconder que sou juiz”, declara. “Todo caminho que vou percorrer eu estudo; faço questão de colocar meu filho para estudar em uma escola por onde eu não tenha que passar por nenhum local de risco. Enfim, todos os passos são pensados. Com o tempo fica automático, mas no início você fica meio paranoico.”

Com a proximidade do carnaval, ele confidencia que adorava ir a blocos de rua, mas deixou de fazê-lo depois que vieram as ameaças. Para encontrar os amigos, só se for no condomínio onde vive. E novas relações passam por um crivo rigoroso. “Agora está todo mundo envolvido com alguma coisa, não se sabe mais quem é quem, então você não se permite uma aproximação das pessoas. Sou muito seletivo nas amizades. Até as pessoas você tem que estudar. Mas foi o que escolhi para mim, fiz concurso para isso, não posso reclamar.” Questionado se o preço não é muito alto, não hesita. “Gosto do que faço, acho que faço bem, e acho que é uma função necessária. Além disso, o Estado está me provendo segurança. Se não estivesse, aí repensaria.”


Perfil dos magistrados ameaçados em 2017

Bruno Fonseca/Agência Pública

Dos 110 juízes sob ameaça em 2017 identificados por pesquisa do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)


Roraima – “Meu filho tem 3 anos e não sabe o que é brincar numa praça”

Em 2014, em investigações do Ministério Público e da Polícia Federal, foram interceptadas ligações telefônicas de integrantes do PCC com ameaças à juíza Graciete Sotto Mayor Ribeiro, à época na Vara de Execução Penal, em Boa Vista, Roraima, o segundo estado com mais juízes ameaçados, segundo o relatório do CNJ.

“Não vá com essa mulher não, que eu estou a fim de matar ela”, disse por telefone o integrante do PCC à sua companheira, que pretendia procurar a juíza para pedir que não impusesse ao marido o regime disciplinar diferenciado (RDD), mais restrito, fato que motivou a tentativa de retaliação.

Ela se lembra bem de como se sentiu quando foi comunicada sobre o acontecido: “Cai um pouquinho o seu chão. Não envolve só a sua vida, você pensa na sua família, nos seus amigos mais chegados, que estão no seu entorno, porque, numa situação dessa, a gente fica preocupado não só da gente ser atingido, mas de isso atingir também a terceiros”.

A juíza, que na época já era acompanhada por um policial, teve a escolta reforçada por mais um agente e recebeu um carro blindado para se locomover. “Muda tudo: você não pode mais sair de casa, não pode visitar os amigos. É de casa para o trabalho. Você perde a sua privacidade porque está acompanhada por alguém o tempo todo. Eles são discretos, ficam distantes para você poder conversar com as pessoas, mas você não pode ficar sozinho, ir ao supermercado, fazer nada”, descreve. “Num primeiro momento, demora um pouco para cair a ficha. Acho que senti mais depois dos dois primeiros meses, que é quando você verifica que sua vida mudou totalmente para uma rotina de casa-trabalho, trabalho-casa, e você se dá conta de que perdeu alguns prazeres, como ir para um restaurante, ir para um barzinho.”

Medidas de segurança pessoais, além das formais, precisaram ser tomadas. “Moro numa casa, tenho vários cachorros, cerca elétrica, pago uma empresa para fazer o monitoramento eletrônico, monitoramento das motos o tempo todo. Já tinha esse investimento anterior, mas reforcei ainda mais depois das ameaças – aumentei o número de câmeras, por exemplo”, enumera. Isso tudo teve consequências não apenas práticas, mas também psicológicas. “Lembro de ocasiões em que eu chorava desesperada não por causa da ameaça, mas porque eu queria respirar, queria minha vida de volta.”

Enquanto era juíza de execução penal, seu nome continuou aparecendo em bilhetes encontrados em presídios como parte de listas de pessoas juradas de morte. Por isso, apesar de ter conseguido uma transferência – desde 2016 é titular da Vara de Crimes contra Vulneráveis –, o acompanhamento continua até hoje. Em 2015, engravidou e deu à luz um menino. Embora tenha ocorrido em meio ao estresse gerado pelas restrições de liberdade, ela conta que a gestação foi justamente o que lhe “deu o suporte que estava precisando naquele momento para seguir”. “Fiquei muito tranquila, apesar de ser uma gravidez de risco devido à minha idade – engravidei quando já ia fazer 45 anos.”

A criança, porém, não escapa aos procedimentos de segurança. “Meu filho tem 3 anos e não sabe o que é brincar numa praça, embora aqui em Boa Vista tenhamos praças maravilhosas e um espaço urbano bonito. Mas, por conta de segurança, a gente não pode ir. Mesmo quando me disserem ‘não há mais nenhuma ameaça contra a sua pessoa’, não vou levá-lo.”

Mesmo com todos os sacrifícios e mudanças, Graciete afirma que nunca cogitou arrefecer sua atuação enquanto magistrada. “A gente não pode mostrar para eles, em um primeiro momento, que estamos sabendo das ameaças, e, em um segundo momento, que vamos mudar a atitude profissional por conta das ameaças. As ameaças não vão nos pressionar para que não façamos nosso trabalho.” Mas não se esquece do que precisou abrir mão para seguir na profissão. “Hoje vou a poucos eventos – apenas os da magistratura – e sempre verifico o local primeiro: se for fechado, vou, se for aberto, não. Tudo isso é retirado. São pequenas coisas. Por exemplo, a ida ao cinema é um escarcéu, porque cinema tem um horário, então a pessoa pode te ver entrando e sabe seu horário de saída. São pequenas coisas que no dia a dia a gente não pensa, mas, quando vamos para a restrição, percebemos que éramos felizes e não sabíamos.”

Um prazer específico do qual sente falta? “Ir à barraquinha tomar um tacacá. Isso tudo você retira, não tem mais como fazer.”

Sobre a autora
Agência Pública

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