2ª Promotoria de Justiça de Execução
Criminal
Processo nº 14275-74
Sentenciado: F .....
MM. Juiz(a),
Trata-se de agente submetido a medida de segurança
detentiva, atualmente internado na ATP - Ala de Tratamento Psiquiátrico
do CIR.
Em face de relatório do Conselho Penitenciário,
dando conta de irregularidades observadas na ATP em dezembro/96,
promotores de justiça em exercício na Promotoria
de Justiça de Acompanhamento da Execução
Penal, visitaram o local, em 26.08.97, e constataram que 39 (trinta
e nove) internos acham-se ali recolhidos em completa desobediência
à Constituição Federal e aos comandos do
Código Penal e da Lei de Execuções Penais,
no que se refere a cumprimento de medida de segurança detentiva.
Em conseqüência, o Ministério
Público requereu, e esse juízo já deferiu,
uma série de medidas para a interdição ou
a adequação do local às normas vigentes.
Na ocasião da visita, deparamos com a situação
de F..., que nos chamou particularmente a atenção.
Trata-se de um cidadão completamente imbecilizado, que
não apresenta qualquer periculosidade, mas que vem sendo
mantido dentro do sistema penitenciário há mais
de 29 (vinte e nove) anos. Nascido em 14.08.41, conta com
idade de 56 (cinqüenta e seis), mas aparenta muito mais.
Desde os vinte e sete anos está sob tutela penal sem qualquer
melhoria. Pelo contrário, acha-se completamente inutilizado
como ser humano.
Examinemos os principais momentos da vida intramuros
de F..., de acordo com o presente procedimento de execução
da medida de segurança.
Foi denunciado como autor de tentativa de homicídio e resistência porque, no dia 09.09.68, "num bar, junto a uma barbearia na cidade satélite de Sobradinho, munido de uma faca peixeira, com a mesma deferiu golpes em J..., só não consumando o delito de homicídio contra a pessoa da vítima, por circunstâncias alheais a sua vontade", além de que resistiu à prisão (fl. 2).
Julgado em 03.09.70, foi declarado inimputável,
mas, em razão de doença mental (esquizofrenia hebefrênica),
a sentença determinou fosse submetido a medida de segurança
detentiva pelo prazo mínimo de dois anos (fl. 79).
Na época do fato foi preso em flagrante
e recolhido ao NCB - Núcleo de Custódia de Brasília,
ali permanecendo de 10.09.68 até 05.12.68.
Ficou internado desde 05.12.68, por vários
períodos no Manicômio Heitor Carrilho, do antigo
Estado da Guanabara, e no Sanatório Espírita de
Anápolis - GO.
Nos intervalos, era recolhido ao NCB. A partir
de 01.10.76, passou a ser recolhido ao CIR (fl. 226).
Em 30.12.74, foi realizado o primeiro exame
de sanidade mental no interno após o início do cumprimento
da medida de segurança. Naquela oportunidade os peritos
concluíram que "o periciando necessita assistência
hospitalar", mas que tal assistência poderia ser
prestada em "hospital psiquiátrico comum", nada
referindo sobre eventual periculosidade (fl. 115).
Novo exame psiquiátrico aconteceu em 15.10.76,
sem que o respectivo laudo mencionasse a permanência de
periculosidade, limitando-se os peritos a afirmar que F... "é
inteiramente incapaz de entender o caráter criminoso de
qualquer ato que tenha praticado ou venha a praticar", donde
necessitar "ser internado com urgência em hospital
psiquiátrico" ou "em qualquer Casa de Repouso
desta capital" (fl. 213).
O Laudo de Exame de Sanidade Mental de fls. 249,
datado de 01.07.83, também indicava a possibilidade
da internação do sentenciando em hospital colônia,
"já que não apresenta, no momento, periculosidade
manifesta".
O Ministério Público, após
examinar a situação, concluiu, em 09.08.83,
que o interno já havia cumprido a medida de segurança
e opinou no sentido de "que o caso escapa à
ação da Justiça, e deveria receber o apoio
dos órgãos comunitários" (fl.
252).
Decidiu aguardar esse Juízo a realização
de novo exame psiquiátrico que veio a ocorrer em 23.10.84
com a seguinte conclusão:
"Trata-se de um caso de fase terminal de
um processo esquizofrênico com grave comprometimento da
personalidade. Apesar de não apresentar periculosidade
manifesta, não pode gozar dos benefícios da
liberdade vigiada por totalmente incapaz de reger sua pessoa e
bens, não podendo realizar qualquer projeto de vida."
(fl. 265, grifamos).
Em novo laudo de exame de sanidade mental (fls.
294/296), os peritos do Manicômio Judiciário Heitor
Carrilho reiteraram, em 14.8.84, a inexistência
de periculosidade, registrando indignada reflexão:
"Uma de nossas lutas perdidas foi e continua
sendo a situação de nossos pacientes oriundos da
Capital de nosso País. Verdadeira tragédia Kafkaniana
(leia-se kafkiana, segundo Aurélio) os envolve e, por extensão,
tem repercussões no corpo técnico responsável
pelo tratamento dos pacientes.
A militância no campo psiquiátrico
nos últimos vinte anos tem como objetivo a reintegração
ao sócio-familiar em tempo precoce, desde que, os subsídios
clínicos e terapêuticos nos traduzam tal assertiva.
Nos nossos pacientes de Brasília a burocracia
penal imputada pelo desterro a que são submetidos os nossos
clientes transformam, no sentido da regressão ao início
do século vigente, as estratégias terapêuticas
aplicadas.
Portanto, desta vez pedimos e não
mais opinamos enquanto peritos, para o caso em questão,
a transferência de nosso paciente para uma Instituição
da Previdência perto dos seus. Basta ao desterro, que no
caso estudado preenche os últimos 18 anos da existência
de F... nascido em 14.8.1941." (grifamos).
Os autos, após isso, foram remetidos ao
Ministério Público, em 25.11.87. A promotora
de justiça em exercício também mostrou indignação
e requereu, em 08.12.87, a imediata solução
para o caso, viabilizando-se a liberação do interno
"para não eternizar a tutela do Estado em regime
fechado" (fl. 297).
A desinternação não se deu
porque, apesar de várias diligências dentro dos autos,
não foi possível fazer contatos com parentes de
F... (fls. 304/306).
Por determinação judicial, passou-se
a verificar a existência de processo de interdição
com o fim de localizar pessoa interessada na situação
do interno, sem sucesso (fl. 340).
Relatório Social do Hospital Heitor Carrilho,
de 16.10.92, aponta:
"Diante do exposto acima, somos de opinião
de que a doença esquizofrênica em processo final
de demência, não justifica mais sua permanência
em instituição prisional. Em vários outros
laudos já foi sugerido sua transferência para um
hospital tipo colônia, por totalmente incapaz, de reger
sua pessoa" (fls. 334/335).
No Laudo de Exame Mental de fls. 332/333, datado
de 16.12.92, os peritos concluem: "mantemos e reiteramos
as admiráveis conclusões do laudo anterior de 13
de julho de 1987 (pasmem) emitidas pelo colega Dr. Álvaro
Cabral Lito Figueredo" (grifamos).
Tentativas foram feitas para internação em casas especializadas do Distrito Federal, em vão. Em conseqüência, foi determinada a transferência de F... do Hospital Heitor Carrilho para a ATP do CIR - apesar de já naquela época reconhecer-se a inadequação do local - onde se encontra desde 13.04.94 (fls. 341 a 356).
No laudo psiquiátrico de fls. 369/371,
datado de 13.07.95, concluiu-se:
"o paciente, em suas atuais condições,
necessita de um ambiente protegido que deve ser provido pelo Estado,
seu responsável legal. Frente à inexistência
de um Hospital de Custódia no Distrito Federal, as alternativas
são poucas, porém pode se recomendar o Hospital
Espírita de Psiquiatria de Anápolis (ex-Sanatório
Espírita), que dispõe de uma chácara para
a internação de pacientes crônicos, vinculados
ao Sistema Único de Saúde (SUS). A outra alternativa
seria a manutenção do paciente no próprio
Centro de Observação, porem com atendimento por
equipe interdisciplinar e com facilidades para a utilização
dos recursos laborativos do próprio presídio".
Consultado, o nosocômio de Anápolis se recusou a receber F..., por falta de vaga e também sob o argumento de que "este hospital, seguindo a linha da moderna psiquiatria, é semi-aberto, não dispondo de vigilância carcerária, típica de manicômios judiciários" (fl. 396).
A última providência constante dos
autos refere-se à juntada, em 10.04.96, de ofício
deste Ministério Público, comunicando que foram
tomadas as providências necessárias à interdição
do interno (Dist. nº 10006/96 - 6ª Vara de Família),
solicitadas por esse Juízo (fls. 401).
Esta é, em síntese, a situação
de F.... Se é que, em tão poucas linhas, se pode
resumir sofrimentos tão injustificáveis e tão
inumanos por quase trinta anos.
Formou-se aqui um círculo vicioso e kafkiano,
na feliz expressão da perícia médica. "Em
que espécie de bicho se terá tornado o homem kafkiano?"
Desde muito cedo se
reconheceu que F... não deveria ficar mais sob a tutela
penal. Mas, como seria desejável que fosse assistido por
parentes, e tais parentes desapareceram - pelo menos não
foram localizados -, também não se procurou outra
solução completa, optando-se, dentro de todo esse
tempo, pelo que era mais cômodo: deixar F... como estava,
nada importando sua condição de ser humano.
De necessitado de tratamento médico, passou
a condenado a prisão perpétua. De jovem de 27 anos
carente de encaminhamento na vida, tornou-se um completo imbecil
aos 56 anos.
O mais lastimável é que sempre se
soube que F..., ao contrário da maioria de nossos presos
e doentes mentais - quase todos muito pobres -, apesar de abandonado
pelos parentes, tem uma fonte de recursos. Era e continua sendo
aposentado do serviço público federal. Ao longo
desse tempo até acumulou pequena fortuna, do ponto de vista
da grande maioria da população. Por que esse dinheiro
não foi utilizado em seu benefício?
Procurando informações
sobre sua interdição, localizamos o Processo nº
11006/96, da Sexta Vara de Família da Circunscrição
de Brasília. Nele foi proferida sentença de interdição,
datada de 19.08.96. Designado curador o Dr. Ezequiel Santos
Moreira, da Defensoria Pública, com a missão
de representar o interdito em todos os atos da vida civil, devendo,
a cada ano, prestar contas da respectiva administração
(v. anexos). Segundo nos disse o Dr. Ezequiel também ele
procurou meios para abrigar F... mas não conseguiu.
É intolerável a persistência
dessa monstruosidade!
Da mesma forma que outras situações
irregulares de medida de segurança - muito menos graves
- já foram solucionadas (Processos nºs. 31313-96,
relativo a Romildo Paulino dos Santos, e 27013-92 de Divino Antônio
da Silva), também aqui é imperiosa a imediata solução.
Em termos da legalidade da manutenção
de F... dentro do sistema, a resposta negativa se impõe
à toda evidência. Apesar da injustificada indeterminação
temporal da medida de segurança, tal indeterminação
só tem um escopo: verificar se a periculosidade, inicialmente
presumida do agente, se acha presente ao final do período
fixado na sentença (aqui, de dois anos). Em caso positivo,
deverão ser feitos exames anuais para a mesma verificação,
ou em qualquer tempo antes disso, para possibilitar a liberação
do interno. Assim dispunha o art. 81 do Código Penal original
e, da mesma forma, determina o art. 97 redigido pela reforma de
1984.
Sem contar o tempo em que F..., ao invés
de cumprir medida de segurança, esteve preso, a realidade
é que, a partir de 05.12.68 foi mantido sob internação
compulsória. Ou seja, em 04.12.70, dever-se-ia ter-lhe
aplicado a detração penal - prevista, então,
no art. 34 (atual art. 42) do Código Penal -, uma vez que
se achava vencido o período inicial fixado na sentença,
de dois anos. E, em conseqüência, obrigatoriamente
deveria ter sido realizado o exame psiquiátrico para verificar
a cessação de periculosidade.
Tal não havendo acontecido, a partir de
então sua detenção tornou-se ilegal.
Ainda que assim não fosse, a partir de
pouco tempo após 30.12.74 - época do primeiro exame
psiquiátrico, realizado fora de época como os subsequentes
- deveria F... ter sido liberado do sistema penal. E o mesmo deveria
ter ocorrido ao longo do tempo, a cada exame psiquiátrico,
em 15.10.76, 01.07.83, 14.08.84, 23.10.84, 16.10.92, 16.12.92
e 13.07.95.
Mas, sob o pressuposto de não ter F...
para "onde ir", optou-se pelo mais cômodo, apesar
dos vários gritos de alerta existentes nos autos.
Assim, Excelência, não há
maior justiça que se possa fazer a esse homem - seja pela
ilegalidade de sua detenção, seja pelo reconhecimento
de que a tutela penal não conseguiu recuperá-lo
-, senão proclamar que o sistema penal errou no trato de
sua situação. E assim reconhecendo, proceder à
sua imediata soltura das garras dessa cruel e violenta engrenagem
pública, muito distanciada, na prática, do discurso
legislativo.
Não há porque deixar de fazer isso
- como sempre aconteceu - ao argumento de não se saber
de como encaminhar a situação após a soltura.
Essa é uma responsabilidade do Estado e,
em especial, do Poder Executivo. É dever do Estado prestar
assistência social ao egresso - incluindo-se a saúde
e a orientação para a vida extramuros -, nos termos
dos arts. 10 e 25 da Lei de Execução Penal.
Dessa forma, em tese, Ministério Público
e Judiciário deveriam preocupar-se apenas em encaminhar
o interno liberado ao Serviço Social do Governo local.
Mas, no afã de colaborar para uma solução
sem maiores traumas para o interno, já tão injustamente
traumatizado, este órgão procurou entendimentos
com a Gerência de Assistência Social da Secretaria
da Criança e Assistência Social do DF, na pessoa
de Dra. Margareth Nicolau Alves da Costa, que, muito solícita,
reuniu, para debater este e outros casos semelhantes as seguintes
pessoas: Dr. Augusto César de Farias Costa, Psiquiatra,
Coordenador de Saúde Mental/SES-DF, Dra. Lara Regina
Rocha Fernandes, Psiquiatra/COSAM -SES-DF, Marlene de Fátima
Azevedo Silva, Coordenadora de Projetos/GAS-SECRAS, Clealdo
Leite Magalhães, Assessor da CORDE-DF/SEG, e Maria
das Dores Costa Matos, Diretoria de Operações/FSS-DF.
Daquela reunião, realizada em 09.09.97,
na presença do curador de F..., Dr. Ezequiel Santos Moreira,
ficou muito claro que não há qualquer problema intransponível
para que os órgãos estatais envolvidos possam cuidar
deste e de outros casos semelhantes.
Na presente hipótese, a participação
deverá consistir, sobretudo, na preparação
do interno para a saída do CIR, eventual localização
de parentes, bem como a forma que se dará seu futuro tratamento
fora do presídio. Para isso, faz-se necessário definir,
no entanto, onde poderá ficar hospedado o futuro egresso.
Neste particular, demonstrou o curador a disposição
de resolver o assunto, apontando, dentre possíveis soluções,
a locação de uma casa próxima ao local de
tratamento e a contratação de pessoa que possa ali
acompanhá-lo, tudo dentro das possibilidades financeiras
do interditado.
Diante do exposto, o Ministério Público requer:
1. a imediata declaração da extinção da medida de segurança imposta a F...;
2. o estabelecimento do prazo de 45 (quarenta e cinco) dias, justificadamente prorrogáveis por igual lapso de tempo, para que os Serviços Social e de Saúde Mental, devidamente acompanhados pela Assessoria Psicossocial dessa VEC, promovam os mecanismos necessários para a preparação da saída de F... do CIR, bem como para a definição do futuro tratamento extramuros;
3. o estabelecimento do mesmo prazo previsto na letra anterior para que o Dr. Ezequiel Santos Moreira, curador, viabilize os atos de gestão necessários a dar conseqüência à liberação de F...;
4. a determinação ao Diretor do CIR para que facilite a ação de técnicos e do curador para que a efetiva liberação do egresso se efetive dentro do prazo referido nas letras anteriores;
5. a comunicação da decisão tomada ao Exmo. Juiz de Direito da 6ª Vara de Família da Circunscrição Especial de Brasília, para as medidas que julgar adequadas ao acompanhamento do interditado (processo nº 11006/96);
6. a intimação da Defensoria Pública para ciência da decisão.
Promotor de Justiça